17 Outubro 2013
"Entre todas as estradas na Amazônia, a BR-319 é a que tem potencial de produzir maior impacto." A frase de Britaldo Soares, especialista em modelagem ambiental de mudanças no uso da terra, dá conta do tamanho do estrago que a rodovia que une Manaus (AM) a Porto Velho (RO) pode causar quando estiver toda pavimentada. A estrada, explica ele, corta a Amazônia em dois grandes blocos de floresta, cruzando uma área quase virgem. Tem grande chance de estimular o desmatamento trazendo gente de regiões que já não tem mais o que derrubar e transformar em pastagens. Pode causar um efeito em cadeia e atingir até Roraima. O resumo da ópera é que, em termos ambientais, a BR-319 tem o efeito de uma bomba. "É um grande risco", reforça o professor-titular do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais, pensando nos danos que a estrada pode causar à floresta.
A reportagem é de Daniela Chiaretti e publicada pelo jornal Valor, 17-10-2013.
A BR-319 é ícone entre as rodovias amazônicas. O que fazer com ela -e como fazer- dará o tom do desenvolvimento que se pretende para a Amazônia. A estrada corta um dos Estados mais preservados da região: o Amazonas é tão verde quanto inacessível. Os dois milhões de habitantes de Manaus vivem em uma ilha - rodeados pelo rio de um lado e pela floresta, de todos os outros. Sofrem de isolamento crônico e o asfalto na 319 é a reivindicação legítima de querer se ligar ao Brasil. O problema está na outra ponta - como o Brasil irá se ligar a Manaus e o que fará pelo caminho.
Em 1973, pelas mãos dos militares, a ligação começou a acontecer por terra, pela recém-construída BR-319. O povo ia, de carro ou de ônibus, até Porto Velho e dispersava. Chove muito naquela região e manter mais de 800 quilômetros no meio do nada não é fácil nem barato. A estrada foi abandonada, a mata tomou conta e há 25 anos é intransitável.
A BR-319 é ícone entre as rodovias amazônicas
A pavimentação da rodovia entrou no PAC e novo asfalto chegou às duas pontas. O problema são os 400 quilômetros no meio da estrada, por onde só vai quem precisa ou é meio doido. O Ministério dos Transportes queria passar logo o rolo compressor, mas em setembro de 2008, o então ministro do Meio Ambiente Carlos Minc exigiu estudo de impacto ambiental. As informações entraram no Ibama e foram consideradas fracas, exigindo complementações. Em 2009, o Ibama parou de receber o que pedia e o processo parou. Em 2013 acertaram que o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit) irá entrar com novo EIA-Rima no Ibama.
O problema está no processo, alertam cientistas e ambientalistas. Todas as rodovias abertas na Amazônia deflagraram focos intensos de desmatamento. As estradas são o eixo de uma efervescência descontrolada de rotas vicinais, num fenômeno conhecido por "desmatamento espinha de peixe". A exceção a essa regra pode ser a BR-163, um teste para o momento em que estiver toda asfaltada. Há alguns anos, quando o governo decidiu pavimentar a estrada que liga Cuiabá a Santarém, foi iniciado um projeto longo de governança que envolveu quem vive ao longo da BR-163 -fazendeiros, índios, seringueiros, assentados, agricultores -, além de governo e ambientalistas. A ideia era inverter essa lógica. Foram quase dois anos de estudos científicos, sociais, econômicos, ambientais e criação de bolsões de proteção ambiental nas margens.
"A Amazônia tem estradas que ligam um ponto ao outro sem passar pelo meio", diz o biólogo Paulo Moutinho, do Instituto de Pesquisas Ambientais (Ipam), que participou do processo da BR-163. "Todo mundo quer a estrada, também quero, não sou contra", diz, em relação à BR-319. "Sou contra estradas mal planejadas, onde o custo socioambiental não está previsto".
No caso da BR-319 há o temor que isso não esteja acontecendo. O pesquisador Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), coordena o estudo do efeito-dominó da rodovia. Em Rondônia, onde não há mais áreas a serem abertas, há uma população em busca de oportunidades e a BR-319 pode levá-la a áreas remotas e não protegidas. O asfaltamento pode fomentar a ocupação de 10 milhões de hectares de áreas da União ainda sem destino na Amazônia e o risco da floresta ser desmatada é tão grande que pode comprometer até a meta brasileira de redução de emissões de gases-estufa. Uma boa opção seria melhorar o porto de Manaus e os barcos, fazendo com que a população possa se deslocar com segurança, rapidez e qualidade até Santarém.
O governo diz que com a estrada vai poder controlar mais e melhor, do trânsito ilegal de madeira à grilagem de terras. E que a BR-319 será uma estrada-parque com postos de vigilância e passagens especiais para os animais. Isso é um capítulo à parte. Poupar ursos, lobos, camelos e cangurus de morrerem atropelados -e causarem acidentes - é desafio nos Estados Unidos, no Kuwait, na Austrália, em todo lugar preocupado em preservar vida selvagem. Em estradas da Andaluzia, na Espanha, os atropelamentos são a maior ameaça aos linces, mesmo se os técnicos se empenham em abrir túneis, construir pontes e colocar cercas. No Canadá e na Holanda constroem-se corredores de vegetação largos, sofisticados e caros para os bichos passarem sobre as rodovias. É um debate na Nova Zelândia, país de consciência ambiental elevada e que sabe ganhar dinheiro com seus recursos naturais. Ali, trajetos de estradas são ajustados para não cortar árvores seculares e o pessoal se preocupa até em evitar que sementes invasoras sejam levadas aos parques.
Não está claro como o Ministério dos Transportes transformará a BR-319 em "estrada-parque" (um conceito que vai muito além de permitir apenas o trânsito de veículos leves) e preservará a biodiversidade amazônica. O professor Britaldo Soares adianta que não é preciso se preocupar em como avisar as antas que elas terão que passar pelo túnel. "Não vai ter animal para passar nem por cima nem por baixo", diz ele. "O problema maior é o impacto indireto, a cadeia de efeitos que o asfaltamento vai disparar. No caso da 319, o impacto indireto é centenas de vezes maior do que o da estrada", continua. "Rodovias são o meio mais democrático que existe de impacto: uma vez abertas, ninguém segura ninguém."
http://www.valor.com.br/brasil/3307462/os-riscos-de-asfaltar-400-km-na-amazonia#ixzz2hycjdRUL
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Os riscos de asfaltar 400 km na Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU