28 Setembro 2022
Em maio deste ano, Enrique J. Díez Gutiérrez publicou um artigo no El Salto intitulado Pedagogía antifascista o barbarie que esboçava algumas das linhas centrais do seu novo livro, cujo objetivo centra-se em propor alternativas para construir uma pedagogia inclusiva, democrática e do bem comum diante da ascensão do fascismo e da xenofobia, sob o título contundente de Pedagogía antifascista (Ed. Octaedro, 2022).
Conversamos com Enrique sobre as ideias que expõe em seu livro e aquelas que defendeu ao longo da sua extensa carreira na docência, mas também no ativismo social e político por ocasião da apresentação do livro em La Enredadera, em Mérida, no último dia 16 de setembro.
Enrique J. Díez Gutiérrez é professor da Faculdade de Educação da Universidade de León, Espanha.
A entrevista é de Raúl Gijón, publicada por El Salto, 23-09-2022. A tradução é do Cepat.
Por que a memória histórica democrática ainda é uma matéria pendente na maioria dos livros escolares?
Efetivamente. A memória histórica continua sendo uma matéria pendente no currículo escolar. Quando fui assistir, com meus alunos, o documentário O silêncio dos outros fiquei espantado porque parte deles comentou na saída da sessão: “Ninguém havia nos explicado nada disso”. Algo que também a diretora do documentário explica. Surpreende-me a “falta de memória”, o desconhecimento da repressão franquista ou da luta dos maquis, porque a História da Espanha é uma matéria que se ensina em todos os centros educativos, e também durante dois cursos (4º ano do Secundário e 2º ano do Bacharelado).
De fato, na Espanha sabe-se mais sobre o nazismo do que sobre o franquismo. Após uma exaustiva pesquisa sobre os livros didáticos escolares, constatamos que a memória histórica daquele período permanece invisibilizada, ocultada e até distorcida em grande parte do material curricular utilizado pelos alunos. Os livros didáticos ainda estão acobertando, silenciando ou escondendo significativamente essa parte da história. Além disso, como dizem os estudantes, esse tema costuma se passar “na ponta dos pés” nas escolas de ensino médio por medo de gerar discussões. Especialmente agora com a pressão do grupo da extrema direita Vox com sua censura parental.
Mas o mais preocupante é que não há vontade política para corrigir esse “memoricídio” educacional. Na LOMLOE (a nova lei orgânica da educação de 2020), “o holocausto judeu” aparece como conhecimento básico – que todos os estudantes espanhóis devem estudar e conhecer –, mas nada sobre o “holocausto espanhol”. No novo Real Decreto da ESO (Educação Secundária Obrigatória) 4º da ESO, que acaba de ser aprovado, não se faz a mínima referência à ditadura, ao regime franquista, à repressão, aos maquis, à luta antifranquista, ao movimento de recuperação da memória histórica… Ou seja, elimina-se a memória histórica democrática da nova Educação Secundária Obrigatória. Acho que, se um único aluno terminar o período da educação obrigatória sem saber disso, é uma verdadeira tragédia em pleno século XXI. Estamos fazendo algo errado no sistema educacional. E o Ministério da Educação tem grande responsabilidade nisso.
Com este caldo de cultivo do fascismo, onde fica o bem comum, a solidariedade e a comunidade?
Se o neoliberalismo autoritário defendido por este neofascismo que cresceu em Espanha e em toda a Europa se caracteriza por algo, em claro contraste com o fascismo clássico, é a sua apologia ao “livre mercado” e a supressão radical de tudo o que é público, social e comunitário, tudo o que envolve a defesa dos bens comuns, da solidariedade e do apoio mútuo que têm permitido à espécie humana sobreviver e avançar para uma maior coesão, justiça e equidade social.
A educação neoliberal está configurando um novo sujeito, o sujeito neoliberal. O capitalismo conseguiu que a história neoliberal seja vista como uma condição natural da humanidade. Somos educados para “escolher livremente”, inclusive desejar, pertencer ao sistema. É a nova política do “consentimento” e da “livre escolha”, os dois novos eixos do neoliberalismo emocional que assentam a eficiência desse sistema no processo socioeducativo de interiorização do próprio sistema.
O panóptico (pós)moderno é voluntário. O que o capitalismo percebeu na era neoliberal, argumenta o filósofo Byung-Chul Han, é que não precisava ser duro, mas sedutor. Passado o tempo da conquista pela força, chega a hora do controle pela persuasão. A ‘McDonalização’ é mais profunda e duradoura na medida em que o dominado não tem consciência de sua dominação. Por essa razão, para qualquer império que queira perdurar, o grande desafio consiste em domesticar as almas.
A classe trabalhadora nunca teria se “convertido” espontaneamente ao modelo neoliberal somente pela propaganda do modelo. Foi necessário instalar, “através de uma estratégia sem estratégias”, os mecanismos da educação do “espírito”. O passo inicial consistiu em inventar o “ser humano do cálculo” individualista que busca o máximo interesse individual. Baseia-se em um discurso que alega que a busca do interesse próprio é a finalidade do ser humano e que naturaliza as relações de concorrência e mercado. Não se trata mais de melhorar o coletivo com um esforço comum, mas da capacidade e do talento individual para escolher corretamente a melhor oportunidade, pois o objetivo do ser humano passa a ser realizar-se a si mesmo frente aos outros.
É a pedagogia do egoísmo enquadrada na ideologia do êxito, da pessoa “que não deve nada a ninguém”, que, efetivamente, gera a desconfiança, inclusive o ódio, para com os pobres, “que são preguiçosos”, os velhos, “que são improdutivos e um fardo”, os imigrantes, “que tiram o trabalho”, ou os estudantes com dificuldades que exigem a atenção dos professores e “tiram o tempo que deveria ser dedicado a mim”. Mas tem um efeito bumerangue, uma vez que todos sentem a ameaça de um dia se tornarem inúteis, como eles.
Surge, assim, o novo sujeito empreendedor em consequência dos dispositivos de aprendizagem, submissão e disciplina, tanto econômicos e midiáticos, como culturais, educacionais e sociais. A pedagogia neoliberal produz um tipo de subjetividade determinada, estimulada por uma pedagogia do egoísmo constante. Porque educar para o empreendedorismo é muito mais do que ensinar certas técnicas e conhecimentos; é aprender a ter muita clareza sobre as regras do capitalismo para ser vencedores.
A ideologia neoliberal tornou-se assim a “razão instrumental” do capitalismo contemporâneo que estrutura e organiza não apenas as ações dos governantes, mas também a conduta dos próprios governados. Isso explica por que, apesar das consequências catastróficas a que as políticas neoliberais levaram, nos últimos 30 anos estas estejam cada vez mais ativas.
Em seu livro, você também faz uma crítica à “psicologia positiva”, o coaching e os livros de autoajuda como um bálsamo contra esse darwinismo competitivo que está sendo promovido atualmente. Por quê?
Ser empreendedor tornou-se uma tendência. O empreendedor uberizado é a atual figura heroica da nova “classe aspiracional”, pois aguenta sem dormir e à base de cafeína para trabalhar como se fosse dono da empresa, mas sendo remunerado como um estagiário, assumindo todo o risco, sem seguro ou descanso, mas feliz e contente por já não ser mais “classe trabalhadora”, mas empreendedor inteligente. Dessa forma, engendra-se o animal laborans, que se autoexplora e acredita ser livre.
A pressão está se tornando insuportável: se você não empreender, não é ninguém. Você é responsável por construir seu próprio futuro. Diante do colapso do modelo de emprego estável e da precarização organizada como sistema, o risco e a responsabilidade são transferidos para cada indivíduo, tornando as próprias vítimas culpadas da situação que sofrem: “O desemprego é alto porque faltam empreendedores”.
Esta ideologia do empreendedorismo vem acompanhada da ideologia do pensamento positivo, o complemento necessário para ajudar a adaptar-se à exploração e sentir-se um colaborador livre, através de técnicas de coaching emocional. A “ciência da felicidade”, que tem servido para gerir a frustração de grandes contingentes da população afetada pelas demissões em massa, está instalada nas pedagogias educacionais com a psicologia positiva e manuais do tipo Paulo Coelho para aprender a mudar a percepção, ao invés de mudar as condições de vida. Métodos que incentivam a servidão voluntária. O fracasso, nos é dito, é um problema de atitude pessoal: a crise é uma oportunidade.
É como o filme Jogos Vorazes, mas envolto em linguagem de coaching. Com uma advertência: neste novo mundo não há lugar para perdedores. O protesto e o conflito social não fazem sentido, pois as exigências autoimpostas não têm um responsável alheio. O fracasso é responsabilidade pessoal, uma patologia. Por isso, em vez de encher os sindicatos, são as consultas dos psiquiatras que estão transbordando de depressão diante do desemprego e da precariedade.
O problema é que é mais fácil escapar de uma prisão física do que sair dessa racionalidade “livremente” escolhida, pois isso significa libertar-se de um sistema de regras estabelecidas por meio de técnicas de autocontrole.
Em seu livro fala de uma nova classe social, a aspiracional, e de como a meritocracia, que incentiva a fugir e a escalar para estar no topo, a que boa parte da sociedade aspira, nos obriga a competir constantemente com os outros. Então, você acha que a educação perdeu seu papel de promover a ascensão social?
O problema é a meritocracia e a concepção de “ascensão social”. Subir para onde? Às custas de quem devemos ascender? Porque no ápice da ascensão, podemos estar todas e todos de forma equitativa? Michael Sandel explica em seu livro A Tirania do Mérito que quando as pessoas reclamam da meritocracia, muitas vezes o fazem não porque sejam contra, mas porque acreditam que está sendo praticada de maneira incorreta, que o sistema é manipulado para perpetuar os privilégios dos ricos e poderosos; que é um “ideal” que se perverteu e que “a ascensão social não funciona mais”. Mas e se o verdadeiro problema não for que não se pode garantir uma meritocracia justa, mas que o próprio ideal é falho, um projeto político vazio que evidencia uma concepção empobrecida da cidadania e da liberdade?
Porque a essência do ideal meritocrático não é a igualdade, mas a mobilidade. Não questiona a desigualdade. Apenas insiste em que ricos e pobres tenham a possibilidade, ao longo do tempo, de trocar de posição com base em seus respectivos méritos. O ideal meritocrático não é um remédio contra a desigualdade, é antes uma justificação desta.
Mas acima de tudo, a meritocracia neoliberal coloca a necessidade imperiosa de trabalhar duro, realizar-se e ter sucesso no centro da vida moderna, transformando boa parte da sociedade nessa “classe aspiracional” sempre insatisfeita e ansiosa, em constante competição e busca de rendimentos, realizações e êxitos maiores. Incapazes de constatar a valiosa contribuição para o bem comum do pessoal da limpeza de um hospital, de quem distribui o pão, da enfermeira que cuida da saúde ou do eletricista que mantém a instalação, até que chegue uma crise como a da Covid-19. A pandemia de 2020 levou a refletir, ainda que de modo fugaz, sobre o paradoxo das tarefas que contribuem para o bem comum (pediatra) e daquelas que são remuneradas pelo mercado (magnata de cassinos). Mas este último, que é remunerado pelo mercado, é quem acaba definindo o mérito e a autoestima das pessoas.
Na perspectiva hoje dominante, a igualdade aceitável é meritocrática: seria aquela que se limita a eliminar as barreiras de entrada que distorcem os mecanismos para que cada pessoa obtenha individualmente as recompensas que merece de acordo com suas habilidades, seus esforços e suas realizações. Essa abordagem não é um ideal adequado para uma sociedade justa, como argumenta César Rendueles em seu livro intitulado Contra la Igualdad de Oportunidades.
Em vez de solucionar as condições que estão na origem da desigualdade, forjamos uma política meritocrática que consiste em escapar e escalar, mantendo o sistema injusto, mas buscando ser colocado na parte de cima. Este regime tirânico da meritocracia torna muito difícil invocar esse sentido de solidariedade coletiva e obrigação mútua que supõe um projeto humano compartilhado baseado no bem comum. O que temos que repensar é a própria abordagem da “ascensão social” e começar a pensar e a conceber a educação em termos de “justiça social”.
Você afirma em seu livro que a escola pública é a única que garante essa pluralidade e, talvez por isso, esteja sendo atacada e desmantelada. O que acha que podemos fazer contra esse desmantelamento que, inclusive, partidos como o PSOE estão desenvolvendo em regiões como a Extremadura?
Está claro que existem dois modelos de educação que avançam em nível mundial em direções opostas. O primeiro é aquele que decorre da progressiva imposição do neoliberalismo em escala mundial, e é endossado pelas diretrizes de organizações supranacionais, como o Banco Mundial, o FMI, a OMC e a União Europeia. Esse modelo parte do pressuposto de que a educação é um bem individual e seu valor é basicamente econômico e que, portanto, deve estar sujeito às leis do mercado, como qualquer outra mercadoria.
A educação, assim entendida, passa a estar a serviço da economia em seu duplo aspecto: por um lado, deve ser “adaptada” às necessidades das empresas e do mundo do trabalho e, por outro, deve ser “rentável”, ou seja, gerida com critérios empresariais. São as pessoas individuais, interessadas neste negócio, aquelas que devem “investir” em educação, com a qual se tornam os novos “clientes”, com direito a escolher e a exigir resultados satisfatórios que rentabilizem seu “investimento” de forma “eficaz”: mais resultados com menos recursos. Uma boa escola é aquela que tem resultados no PISA e nos rankings. É o modelo que fomenta uma pedagogia do egoísmo neoliberal, base e substrato do fascismo social que está surgindo atualmente.
Como diz Adoración Guamán no livro que coordena, intitulado Neofascismo: la bestia neoliberal: “Os estragos causados pelo neoliberalismo (desigualdade, empobrecimento, desproteção, medo, ressentimento, desconfiança na democracia) prepararam o terreno para o surgimento de um novo fascismo que, longe de combater o neoliberalismo que o causou, se oferece a ele para levar sua hegemonia ainda mais longe”.
O outro modelo considera que a educação é um direito universal e um bem comum ao qual todos os cidadãos devem ter acesso e que a Administração tem o dever de garantir em condições de igualdade. Esse modelo considera que a educação é um fator de desenvolvimento pessoal, de emancipação social e uma das ferramentas para viabilizar uma sociedade coesa, inclusiva e justa.
Este modelo inscreve-se em todas as tradições que defendem uma escola pública, laica e inclusiva, que ofereça uma verdadeira igualdade de oportunidades e procure formar pessoas com capacidade para viver e participar de uma sociedade democrática. E concentra a sua preocupação em encontrar os conteúdos, valores e metodologias para uma educação crítica e inclusiva. O grande debate, portanto, refere-se ao futuro da nossa educação: ao encontro de qual desses dois modelos queremos caminhar?
Uma sociedade democrática deve promover a coesão social. A escola é um espaço fundamental para isso. Se queremos uma educação coesa e inclusiva, devemos começar por erradicar a principal causa da segregação educativa, os concertos educativos, e avançar para uma educação pública realmente inclusiva.
Uma pedagogia inclusiva é o melhor antídoto para a pedagogia da competição e da meritocracia, da pedagogia do egoísmo, da desigualdade e da segregação imposta pelo neofascismo neoliberal. O professor Miguel López Melero explica que ela nos abre a esperança para a construção de um projeto de sociedade e de humanização novas, onde o pluralismo, a cooperação, a tolerância e a liberdade sejam os valores que definem as relações.
O Estado deve zelar pelo bem comum e, como representante da comunidade social, o que deve fazer é melhorar todas as escolas públicas e torná-las ótimas para garantir o direito de todas e todos à melhor educação, em vez de incitar a escolher e competir.
A escola pública é a única garantia do direito universal à educação em condições de igualdade e democracia, é a que mais e melhor assegura a igualdade e a convivência democrática de pessoas de diferentes origens socioculturais; e, por isso, é a que melhor contribui para a equidade e a coesão social. Além de ser a única que se compromete com o interesse comum e o serviço público, à margem de interesses particulares ligados à doutrinação ideológica ou aos negócios econômicos.
Os concertos educativos são a principal razão da elevadíssima segregação escolar por causas socioeconômicas que se mantém na Espanha. Por isso, destinar dinheiro público para manter concertos educativos é uma garantia de desigualdade. Como diz o professor Gimeno Sacristán, por trás de muitos argumentos a favor da “livre escolha” de escolas concertadas, mais do que o fervor pela liberdade, o que os privilegiados escondem é a rejeição da miscigenação social, de poder educar seus filhos e filhas com os que não são da mesma classe social. O sistema de concertos serve às classes abastadas para se distanciarem dos alunos com diversidade e das classes mais baixas, rompendo a equidade e a coesão social.
Em suma, face ao sistema da “escolha de centro”, baseada na lógica individualista da “ética do mais forte” para obter vantagens competitivas sobre os demais, devemos apostar na lógica igualitária da pluralidade e da convivência. Para isso, necessita-se de um processo urgente de “des-concerto”, embora tenha medo de que o PSOE seja como o PP nisso, não tem vontade política para corrigir o que Felipe González consagrou: a dupla rede de centros educacionais, financiando os centros privados como uma concessão à hierarquia católica. Nisto também somos uma anomalia na Europa. Por isso, a única medida real que existe é destinar recursos públicos exclusivamente para a melhoria de todos os centros da única rede pública de forma equitativa, para garantir os melhores centros educacionais próximos de casa sem segregação.
Superado esse primeiro fator de segregação, devemos caminhar para a educação inclusiva dentro da escola pública. Isso significa ir além dos programas específicos e dos diagnósticos voltados para os alunos e suas famílias (integração) e promover mudanças estruturais nas instituições de ensino (inclusão) que eliminem toda exclusão, sem exceção.
No seu livro diz que a educação pode ser um antídoto que permite a compreensão dos valores e dos direitos humanos, para além do egoísmo, do medo e do ódio que esta praga semeia e espalha, à qual a comunidade educativa não pode ficar alheia. Devemos educar na igualdade, inclusão, justiça social e direitos humanos a partir de uma pedagogia claramente antifascista. Todos concordamos com isso. Mas como se faz?
A partir da pedagogia do bem comum. Uma pedagogia baseada nos princípios e postulados herdados do legado pedagógico comprometido com o bem comum de John Dewey, da Escola Moderna de Ferrer Guardia e da educação libertária e anarquista, da socialista de Makarenko, da antiautoritária de Neill, da popular e cooperativa de Célestin Freinet, da de Lorenzo Milani, da pedagogia libertadora de Paulo Freire, da decolonial de Catherine Walsh, da crítica de Giroux ou Apple ou da revolucionária de Peter McLaren.
Devemos analisar se o atual sistema educacional está a serviço de um projeto de libertação e justiça social, tanto pessoal como coletivo, ou se está cada vez mais orientado para a educação bancária, como diria Freire, não problematizadora, puramente instrumental e a serviço da ideologia dominante. Analisar como é possível que tanta gente de bairros populares e áreas marginalizadas tenha passado pelas salas de aula e defenda postulados e ideologias de extrema direita, patriarcais, fascistas, xenófobos, racistas, neoliberais e capitalistas, apoiando sistemas baseados no egoísmo, na lógica predatória do mais forte e da desigualdade.
Precisamos de outro modelo de educação para outro modelo de sociedade onde o neofascismo e suas doutrinas de ódio ao diferente, antifeminismo, antiambientalismo e desprezo pelos direitos humanos mais fundamentais não sejam possíveis, nem mesmo pensáveis. Um modelo de educação baseado no bem comum. Que defenda e garanta o direito à melhor educação possível para todos os seres humanos, independentemente de sua classe social, etnia, crença ou sexo. Apoiado também pelo trabalho conjunto de famílias e docentes que se esforçam para ensinar seus filhos e filhas e seus alunos que o mais importante não são os resultados, o sucesso individual, mas a solidariedade para com os companheiros e companheiras e o bem comum que enriquece a comunidade.
Por isso, Nichols & Berliner propõem como objetivo fundamental da educação: “Deveríamos ser o número um do mundo em porcentagem de jovens de 18 anos política e socialmente engajados. Muito mais importante do que nossas notas em matemática e ciências é o comprometimento da próxima geração na manutenção da democracia real e na construção de uma sociedade mais justa para aqueles que mais precisam: os jovens, os doentes, os idosos, os desempregados, os despossuídos, os analfabetos, os famintos e os sem-teto. As escolas que não conseguem produzir uma cidadania politicamente ativa e socialmente útil deveriam ser identificadas e suas taxas de fracasso divulgadas nos jornais”.
Neste trabalho é necessário combinar o pessimismo da razão com o otimismo da vontade. Paulo Freire dizia que “a educação é sempre um ato político, enquanto ato humanista e libertador na luta pela emancipação”. O que nos compromete com a emancipação são as responsabilidades compartilhadas que estamos dispostos a assumir coletivamente. Comprovamos isso durante a pandemia: sem ajuda mútua, sem cooperação, sem solidariedade e justiça social, estamos condenados à extinção como espécie e como planeta. Não nos esqueçamos disso.
Devemos prosseguir rumo a um modelo educativo que contribua para o bem comum de todos os estudantes e de toda a comunidade educativa e social, que promova a formação de pessoas mais iguais, mais livres, mais críticas e mais criativas. Lúcio Aneu Sêneca, no século IV antes de nossa era, afirmou: “Muitas coisas não ousamos empreender por parecerem difíceis; entretanto, são difíceis porque não ousamos empreendê-las”. Temos que ousar sonhar. Está em jogo o futuro de nossos filhos e filhas e da sociedade como um todo.
Os elementos-chave da pedagogia antifascista que propõe em seu livro requerem meios e recursos, mas as comunidades autônomas se recusam a redirecionar os investimentos em educação para esses aspectos. Como podemos convencer os responsáveis pela educação de que esses investimentos são necessários? Existe algum estudo ou experiência que apoie a necessidade de expandir e diversificar o corpo docente?
Em maio de 2020, o sindicato Comissões Operárias elaborou um relatório onde estimava que a força de trabalho a nível estatal deveria aumentar em cerca de 33% e investir 5.151.474.000 euros para a contratação de 165.191 docentes de diferentes especialidades para que as razões (ratios) sejam substancialmente reduzidas, não sendo superiores a 15 alunos por sala de aula, especialmente nas fases do infantil e ao longo da escolaridade obrigatória. Uma medida fundamental para poder propor uma educação verdadeiramente inclusiva que permita uma atenção efetiva à diversidade.
A única maneira de convencer os dirigentes educacionais da necessidade de um financiamento escandaloso da educação pública, e não destinar nossos impostos às armas ou a resgatar os bancos e fundos financeiros que são responsáveis por crises e especulações, são a nossa mobilização nas ruas e os nossos votos. Enquanto não houver uma maioria de representantes públicos, de governantes políticos, que estejam a serviço do bem comum e da justiça social, isso será impossível nesta democracia representativa que temos.
Enquanto se mantiver a impunidade da corrupção e o conluio político de alguns dirigentes partidários que acabam nos conselhos de administração das grandes empresas (energéticas, midiáticas, tecnológicas, financeiras, etc.), uma justiça que “é feita para ladrões de galinha”, como disse o presidente do Supremo Tribunal da Espanha, e permite a impunidade dos grandes fraudadores e dos bilionários, e enquanto tivermos poderes midiáticos que deixaram de ser um controle do poder e um serviço ao bem comum, regendo-se unicamente pelo lucro das empresas que as controlam e difundindo uma visão a serviço dos poderes econômicos e entorpecedora da crítica e da análise, dificilmente a maioria da população acreditará ou terá esperança de que possa haver justiça social, que será possível sair do modelo neoliberal, do pensamento único e do capitalismo genocida que está matando o planeta e a solidariedade da espécie.
Por isso, como você comentava, o antídoto que nos resta, o único remédio contra a barbárie do neoliberalismo e do neofascismo é a educação. Uma educação para o bem comum para fazer frente ao ódio, ao racismo, à intolerância e ao assédio à democracia. Fazer Pedagogia, com letra maiúscula, em todos os tempos e lugares. Nos centros educativos e fora deles, na sala de aula e das ágoras públicas.
A comunidade educativa não pode ficar alheia à barbárie. Nem à barbárie planetária da mudança climática, nem à barbárie econômica da exploração social, da injustiça estrutural e dos saques internacionais, mas tampouco à barbárie social e ideológica representada pelo neofascismo. A verdadeira munição para este modelo não são apenas as balas de borracha ou o gás lacrimogêneo; é o nosso silêncio e a nossa indiferença cúmplice.
Por isso, levanto na última parte do livro a necessidade de uma Pedagogia do Compromisso: “O professor, a professora lutando, também está ensinando”. Frase que nos lembra professores que, por um lado, como membros da classe trabalhadora também fazem parte da população que se envolve social e politicamente na conquista de um mundo mais justo e melhor e que, portanto, devem defender na rua e nos espaços públicos, com o resto da sociedade, os valores e princípios que proclamam nas nossas salas de aula; e, por outro lado, que o nosso exemplo seja também uma referência, como educadores, para os mais jovens e para o resto da sociedade. Oferecendo com nosso compromisso com os alunos oportunidades de entender e vivenciar como a política, o poder e a responsabilidade funcionam em e através deles, tanto dentro como fora das escolas.
As propostas que você faz em seu livro são radicais, no sentido de que vão às raízes do que seria um modelo de educação realmente antifascista e antineoliberal, mas também propõem uma Pedagogia Decolonial, um outro tipo de educação que descolonize o saber. Poderia explicar brevemente em que consiste sua proposta?
O supremacismo, o etnocentrismo e o racismo que o neofascismo demonstra não é apenas em relação aos migrantes ou estrangeiros pobres (aporofobia), mas também em relação àquelas culturas e povos que considera inferiores. É a herança do colonialismo que ainda perdura não apenas nas relações e práticas internacionais, mas também na mentalidade de uma parte da sociedade do Norte ocidental. Daí o constante apelo do neofascismo a um passado mítico ligado ao império colonial, que adjetivam como “conquistado”, criando assim uma realidade alternativa ao ocorrido. Omitindo e negando o saque, a destruição, a exploração e a violência que este modelo de colonialismo extrativista e genocida representou em todos os continentes onde se impôs.
Por isso, é necessário promover uma pedagogia decolonial insubmissa em todos os centros educativos. Uma ‘outra’ educação que valorize e redimensione as diferentes expressões culturais, sociais e filosóficas não do Norte ocidental em igualdade de condições, legitimando e valorizando os saberes das culturas tradicionalmente subordinadas e esquecidas. Supõe uma mudança de ótica, de olhar, de lógica, de paradigma não colonial, nem colonializado. Uma educação em chave intercultural crítica a partir de uma perspectiva decolonial. Como estão fazendo as novas pedagogias indígenas zapatistas.
A pedagogia decolonial, que tem seus antecedentes nas ideias de Frantz Fanon e Paulo Freire, garante um verdadeiro diálogo de saber inter e transdisciplinar horizontal e recíproco, que reconhece pluralidades de ser, pensar, conhecer, sentir, perceber, fazer e viver diferentes daquelas já impostas pelo Ocidente a partir da sua lógica do capital, da racionalidade ocidental e até mesmo do seu antropocentrismo.
Propõe, numa perspectiva crítica, não apenas desmascarar as perspectivas hegemônicas do discurso ocidental, mas também patrocina a práxis transformadora e insurgente daqueles que anseiam por uma “outra” sociedade do “bem viver”. Um ancestral sumak kawsay (Bem Viver), inspirado na tradição indígena, entendido como o equilíbrio entre “pensar bem, sentir bem para fazer bem com o objetivo de conseguir a harmonia com a comunidade, a família, a natureza e o cosmos”, buscando o equilíbrio com a natureza na satisfação das necessidades (“tomar apenas o necessário”) frente ao mero crescimento econômico, em sintonia com a pedagogia do decrescimento.
Vamos ver se finalmente aprendemos a lição. E superamos o dogma neoliberal e o sistema econômico capitalista e caminhamos para um sistema econômico e ideológico baseado no bem comum, na cooperação, na justiça social, na equidade e na solidariedade. Esperamos que a saída desta crise seja “uma oportunidade” para isso. Que aprendamos de uma vez por todas que o capitalismo e a ideologia neoliberal que o sustenta são tóxicos para a espécie e para o planeta. E que, sem ajuda mútua, sem cooperação, sem solidariedade e justiça social, estamos condenados à extinção como espécie e como planeta.
Por isso, como comunidade educativa devemos educar para a igualdade, a inclusão, a justiça social, o bem comum e os direitos humanos a partir de uma pedagogia claramente antifascista. Sem fazer concessões ou meias medidas. Não se pode ser democrata sem ser antifascista.
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“Não se pode ser democrata sem ser antifascista”. Entrevista com Enrique Díez Gutiérrez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU