21 Setembro 2022
O último comunicado da Secretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre o Haiti será, sem dúvida, um estudo de caso nos próximos tempos, devido à contundência com que a organização hemisférica faz uma avaliação devastadora dos últimos 20 anos de intervencionismo", considerando-o "um dos fracassos mais fortes e manifestos da comunidade internacional". Ainda mais: segundo a OEA, foi nesses últimos "20 anos de estratégia política equivocada", e sob o guarda-chuva da própria "comunidade internacional", que germinaram "as quadrilhas criminosas que hoje assediam o país", fenômeno que vamos parar a seguir.
O artigo é de Lautaro Rivara, sociólogo, doutorando em História pela UNLP e bolsista e pesquisador do IdIHCS/CONICET, publicado por Página/12, 21-09-2022.
Mas o curioso é que, com base num diagnóstico essencialmente correto, Luis Almagro defendeu, em entrevista concedida ao jornal Miami Herald, a necessidade de reocupar o país, território por onde passaram uma dezena de missões civis, policial, militar e político nos últimos 30 anos, com resultados desastrosos, se considerarmos os escândalos de violência sexual sistemática cometidos pelas tropas de ocupação; os repetidos massacres cometidos em bairros populares; e a introdução da epidemia de cólera que causou a morte de 9.000 pessoas e infectou cerca de 800.000, como reconheceu o ex-secretário-geral das Nações Unidas, Ban Kimoon.
O renovado livro de receitas intervencionista se justifica hoje no completo desastre de segurança que a nação haitiana está passando. Vários analistas mencionam o assassinato de Jovenel Moïse, ocorrido em julho do ano passado, como o início dessa espiral de violência. No entanto, não importa a variável que tomemos (a circulação de armas, o número de gangues, sua capacidade operacional e seu controle territorial, os sequestros, a prática de massacres, os assassinatos e estupros, o número de pessoas deslocadas etc.) veremos que esta é uma tendência de longo prazo que começou a se consolidar com a chegada ao poder do PHTK em 2010, um partido ainda no poder que já colocou três sucessivos chefes de Estado e/ou de governo: Michel Martelly, o próprio Moïse e agora Ariel Henry. Não foi com a retirada das tropas da MINUSTAH que essas perigosas tendências de segurança começaram a se manifestar, mas vários anos antes, sendo aprofundadas pela própria ocupação.
Como se pode deduzir do estudo do paramilitarismo e do crime organizado, esses fenômenos sociais encontram seu terreno fértil mais propício no vácuo gerado por diversos fatores: pela debilidade ou ruptura das capacidades do Estado, pelas crises econômicas agudas, pelos fenômenos da guerra civil, devido a ocupações ou conflitos de guerra internacional, devido à ocorrência de catástrofes humanitárias, etc. Ou seja, por tudo que rompe, fragiliza ou retrai o tecido social, estatal e/ou comunitário. Um tecido que, no Haiti, devido à sua extensa história anticolonial e às características absolutamente sui generis de sua sociedade, historicamente teve uma unidade e resiliência particulares.
Mas foi a "pacificação violenta" do país tentada pela MINUSTAH, que contribuiu para o cenário atual. Isso, devido a vários fatores: o processo de substituição das capacidades estatais operado pela “ocupação sem fim”; o enfraquecimento da sociedade civil haitiana graças às ações indiscriminadas de mais de 12 mil organizações não governamentais que competem, desmobilizam e captam recursos humanos locais, especialmente desde o pós-terremoto de 2010; pelas políticas econômicas neoliberais que, desde a década de 1980, destruíram os últimos vestígios da capacidade industrial, agroindustrial e agrícola do país, gerando fenômenos como o êxodo rural e a superlotação urbana, desencadeando a miséria e o desemprego; e sobretudo devido ao processo de repressão seletiva em alguns dos bairros populares da região metropolitana de Porto Príncipe, que gerou o terrível vácuo que grupos criminosos e paramilitares agora vêm preencher.
Mapa da América Central | Fonte: wikipedia
Sobre a origem desse fenômeno, algumas coisas devem ser apontadas.
A Comissão Nacional de Desarmamento, Desmantelamento e Reintegração estimou em 2019 que havia cerca de 500.000 armas ilegais em circulação no país, uma estimativa que, infelizmente, foi muito ultrapassada nos últimos anos. A primeira e óbvia maneira de cortar a espiral da violência desde suas raízes seria controlar e impedir esse fluxo, que coloca diariamente armas de grande calibre nas mãos de jovens das populações mais pobres da região metropolitana, hoje um território praticamente cercado por quadrilhas criminosas.
Considerando a cruzada intervencionista da OEA, o fim iminente do mandato do Escritório Integrado das Nações Unidas no Haiti (BINUH) e os debates abertos nos Estados Unidos sobre o que fazer com seu inquieto aliado na Bacia do Caribe, eles começarão a ressoar cada vez mais conceitos como a “responsabilidade de proteger”, o “princípio da não indiferença” e outras categorias de narrativas intervencionistas cunhadas no pós-Guerra Fria. Que, basicamente, negam ou buscam suspender os pilares jurídicos da ordem internacional desde a constituição das Nações Unidas: os direitos de soberania e autodeterminação das nações.
O problema de segurança do Haiti tem dimensões especificamente policiais e operacionais. Mas, em sua dimensão política mais ampla, o controle territorial do país jamais poderá ser retomado sem um processo eleitoral que possibilite a recomposição do poder político em autoridade legítima, considerando que não há eleições no país há seis anos, e que o poder judiciário e os poderes legislativos são virtualmente desarticulados, bem como os serviços educacionais e de saúde suspensos ou seriamente enfraquecidos. O adiamento permanente das eleições apenas enfraquecerá ainda mais o Estado e sua classe política, reduzindo ainda mais sua capacidade de manobra.
Mapa do Haiti | Fonte: wikipedia
Além disso, as políticas de choque econômico, como o aumento recentemente decretado nos preços dos combustíveis de até 100%, não serão apenas um golpe de misericórdia para a grande maioria das pessoas que lutam à beira da sobrevivência, mas também darão mais e mais mais oxigênio para a expansão e controle territorial das quadrilhas armadas, aprofundando, talvez de forma irreversível, a paramilitarização do país.
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Haiti: à beira de uma nova ocupação? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU