16 Setembro 2022
"O resultado da II Guerra Mundial rachou a colônia japonesa paulista. A minoria, os denominados makegumi, eram os 'derrotistas' japoneses que não nutriam o sonho de retornar à pátria mãe. De outro lado estavam os kachigumi, os 'patriotas' ou 'vitoristas', que não acreditavam na derrota do Japão e que tinham migrado ao Brasil para arrumarem a vida e retornarem ao Japão", escreve Edelberto Behs, jornalista.
Um dos casos mais impressionantes de desinformação, manipulação e fanatismo registrado no Brasil ocorreu na colônia japonesa em São Paulo, logo depois do término da II Guerra Mundial, e que vem narrado no livro de Fernando Morais, Corações Sujos (Companhia das Letras, 2000). “Corações sujos” eram os japoneses que reconheceram a vitória das forças aliadas sobre o Japão.
Em 1942, um grupo da colônia japonesa, liderado pelo coronel Junji Kikava, criou a organização Shindo Renmei, a Liga do Caminho dos Súditos. Entre a data de fundação e o término da guerra, em 1945, “a Shindo parece ter se dedicado mais ao trabalho de unificação da colônia”, e difundir o Yamatodamashii, “o espírito nipônico”, padrão de comportamento ideal que o militarismo ultranacionalista japonês adotara com doutrina, relata Morais.
Mas com o final do conflito mundial houve a derrota do Japão, o que os seguidores da Shindo Renmei não reconheceram. Afinal, o Exército Imperial jamais sofrera uma derrota em 2.600 anos de história e o imperador Hiroito era um deus, descendente de Amasterasu Omikami, a deusa do sol. Eles passaram a perseguir os “derrotistas”.
O resultado da II Guerra Mundial rachou a colônia japonesa paulista. A minoria, os denominados makegumi, eram os “derrotistas” japoneses com uma situação econômica e cultural mais elevada, falavam o português e não nutriam o sonho de retornar à pátria mãe. De outro lado estavam os kachigumi, os “patriotas” ou “vitoristas”, que não acreditavam na derrota do Japão e que tinham migrado ao Brasil para arrumarem a vida e retornarem ao Japão.
Em 20 de agosto de 1938, o presidente da República, Getúlio Vargas, emitiu decreto proibindo no território nacional publicações de jornais, revistas, folhetos em língua estrangeira sem a prévia permissão do Ministério da Justiça. Na época, circulavam cerca de duas dezenas de publicações regulares em língua japonesa, única fonte de informação dos estimados 200 mil japoneses que viviam em São Paulo.
Em 11 de março de 1942, o Diário Oficial publicou um decreto que, entre outros, determinou o fechamento das escolas japonesas. Sem essa formação, as crianças de japoneses foram privadas do aprendizado do Yamatodamashii, a doutrina do “modo de vida nipônico”, o que desagradou os pais.
Com o término da guerra, a Shindo Renmei passou a perseguir os patrícios derrotistas. Bilhetes escritos em japonês eram deixados nas casas dos makegumi que residiam na capital. No interior, a ameaça era mais sofisticada: o nome do makegumi era pintado num sotoba ou iahi – pedaço de madeira colocado no altar budista, nos velórios, onde consta o nome do falecido – e fixava o aviso na porta da casa do patrício visado.
A primeira vítima fatal da Shindo foi assassinada em dezembro de 1945. Trata-se do diretor da Cooperativa Agrícola de Bastos, Ikuta Mizobe, que em 15 de agosto de 1945 redigiu mensagem aos chefes de seção da cooperativa informando que ouvira no rádio que “o governo japonês teve que aceitar a proposta das quatro potências” vencedoras.
Mizobe fora avisado de que ele teria que “lavar a garganta”, a senha para “tu vais morrer”. Mizobe vivia em Batos, cidade que se orgulhava pelo fato de sete mil dos seus 9 mil habitantes serem japoneses. Dos sete mil, a metade contribuía para os cofres da Shindo, que tinha lá uma filial.
E o que a Shindo fazia com os recursos? Quando a polícia invadiu o escritório da organização terrorista em São Paulo, apreendeu bandeiras, mapas e fotografias, dentre elas cinco pacotes de imagens adulteradas do ato de rendição do Japão. Nelas, o general estadunidense MacArthur aparecida como derrotado. Também foram encontradas edições da revista Life em que as legendas das fotos foram substituídas por outras indicando que o Japão vencera a guerra, pacotes contendo falsos selos postais que celebravam a vitória japonesa sobre as forças aliadas, e uma nova “lista negra”, com quarenta nomes da colônia, condenados à morte por traição à pátria.
Com um receptor de ondas radiofônicas que mostra a origem do sinal emitido, a polícia sintonizou a Rádio Bastos, cuja sede nunca foi localizada. Notícias captadas pelo polícia informavam a comunidade japonesa que onze navios da esquadra inimiga tinham sido aprisionados em Manila e Okinawa; que na frente do Ural 1,5 milhão de soldados soviéticos tinha se rendido; que o ministro da Aeronáutica do Brasil, Salgado Filho, viajara a Tóquio para assinar, em nome do governo brasileiro, a rendição incondicional; que 7,5 milhões de soldados dos Estado Unidos tinham se rendido; que os japoneses capturaram 15,6 mil aviões e 6,5 mil navios, dos quais 350 estão em perfeito estado em Yuhosuka e outros 600 em Shimizu.
Informava, ainda, que “o boato de que o Japão perdeu a guerra veio dos judeus do Rio de Janeiro, que estão fugindo para São Paulo porque o povo do Rio sabe a vitória certa do Japão”. Conclamava “todos os japoneses que estão fora do Japão” a regressarem à pátria, “a fim de organizar a colonização das ilhas conquistadas no Pacífico”.
Como na época não existiam jornais impressos a cores, a Shindei aproveitou uma fotografia publicada no jornal O Globo, de uma bandeira branca com uma bola negra no centro – símbolo do Clube da Bola Preta, reduto de boêmios do Rio, que era copiada e revendida como prova da vitória do Japão, “cuja bandeira está hasteada até no Rio de Janeiro”.
Panfleto distribuído na colônia transcrevia “notícia” transmitida pela Rádio Central Militar do Japão, anunciando para 11 de setembro de 1945 a chegada, ao porto de Santos, de esquadra da Marinha Imperial encarregada do repatriamento de japoneses residentes no Brasil. Nesse dia, a rádio militar era escombro, a Marinha japonesa já havia sido dissolvida por ato administrativo de MacArthur. Ainda assim, cerca de 2 mil japoneses saíram do interior ou da capital em direção a Santos para serem repatriados.
A Shindo Renmei aliciava os matadores, também chamados de tokkotai para se integrarem aos “Batalhões do Vento Divino”. O aliciador procurava jovens com espírito vencedor e resumia o objetivo da missão que recebiam para atacar alguém que fora avisado de deixar “a garganta lavada”.
Morais relata: o aliciador informava que eles iam matar “traidores da pátria, portanto não estariam cometendo um crime, mas realizando um trabalho de ‘limpeza’ da colônia; a todo condenado deveria ser dado o direito de se suicidar, se preferisse isso a ser executado; quando todos os ‘derrotistas’ de sua lista tivessem sido executados, o grupo deveria se entregar às autoridades; quem fosse apanhado pela polícia durante uma ação deveria se entregar sem reagir, já que a organização nada tinha contra o Brasil ou os brasileiros... que ninguém deveria jamais admitir ligação alguma com a Shindo Renmei”. Muitos tokkotai se apresentaram na polícia depois de concluída a missão recebida.
Em treze meses de atuação da Shindo, revela Morais no livro Corações Sujos, 23 pessoas foram mortas pela organização e outras 147 ficaram feridas. A polícia paulista deteve, identificou e fichou 31.380 imigrantes japoneses suspeitos de manterem ligações com a organização; 1.423 foram acusados pelo Ministério Público, mas a Justiça só aceitou a denúncia de 381.
No final de 1946, o presidente da República, Eurico Gaspar Dutra, emitiu decreto considerando “elementos nocivos aos interesses nacionais” e expulsando do Brasil oitenta imigrantes acusados de serem os mandantes ou executores dos crimes cometidos pela Shindo. Nenhum desses chegou, de fato, a ser expulso do país. Recursos impetrados por advogados dos acusados protelaram a execução das penas de expulsão até meados dos anos 50. “No Natal de 1956, quando a maioria já havia cumprido pelo menos dez anos de prisão, o presidente Juscelino Kubitschek comutou as penas, colocando todos os presos em liberdade”.
Dirigido por Vicente Amorim e baseado no livro de Fernando Morais, Corações Sujos ganhou as telas do cinema. O filme estreou em 13 de outubro de 2011 no Festival do Rio, foi lançado nos cinemas brasileiros em agosto de 2012 e no Japão em julho do mesmo ano.
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Japoneses da Shindo Renmei caçam os “corações sujos” depois da II Guerra Mundial. Artigo de Edelberto Behs - Instituto Humanitas Unisinos - IHU