Em carta aberta a Lula, pesquisadores, intelectuais e ativistas digitais apontam: ciência e inteligência coletiva do país não podem continuar reféns das Big Techs. Documento propõe nove ações para um ecossistema tecnológico nacional robusto.
O artigo é de Rafael Evangelista, doutor em Antropologia Social, pesquisador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor/Unicamp), professor da pós-graduação em Divulgação Científica e Cultural (Unicamp) e membro da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits), publicado por OutrasPalavras, 16-08-2022.
Se o governo Bolsonaro persistir, por óbvio, a marcha de destruição sobre a ciência e a tecnologia continuará. Mas, mesmo com uma possível vitória progressista, os desafios são imensos. Não só vai ser preciso reconstruir muito, como o momento é de ataque das Big Techs contra as estruturas dos Estados. A Europa fala abertamente em regular e investir para garantir sua soberania digital. A China já faz isso há anos.
Entendendo o tamanho desses desafios, um grupo de professores, pesquisadores, intelectuais e ativistas escreveu uma carta dirigida ao líder nas pesquisas pelo campo da esquerda, Lula. No documento, consta um diagnóstico do quadro atual, os desafios futuros e algumas propostas pontuais a serem implementadas em caráter emergencial. No horizonte está tirar o Brasil do atual papel subalterno, restabelecendo seu papel de líder regional na adoção de políticas de tecnologia da informação que busquem pela justiça social. Leia o documento, que está aberto para novas assinaturas aqui.
As tecnologias digitais não podem servir para ampliar as desigualdades e a dependência do país ao grande capital internacional.
Nosso país não pode continuar tendo seu rumo tecnológico ditado pelas consultorias internacionais ligadas às Big Techs. As lutas no campo do desenvolvimento científico e digital não podem se resumir à mera garantia de alguns poucos direitos, “gentilmente” ofertados por plataformas e grandes empresas tecnológicas que se tornam a cada dia mais poderosas. A concentração das ofertas de tecnologia por empresas transnacionais cria uma relação de dependência que reduz a diversidade do mercado e limita as ofertas produzidas no Brasil.
Dados sensíveis e de grande valor econômico de diversos segmentos da nossa população não podem continuar sendo extraídos do país para alimentar os sistemas algorítmicos das grandes plataformas digitais, que os utilizam para nos vender produtos e serviços em condições assimétricas e abusivas. Na raiz dos arranjos de vigilância e coleta de dados, que guiam o modelo de negócio das grandes plataformas internacionais de tecnologia, estão processos de extração de conhecimentos e informações, os quais acentuam e potencializam relações de exploração do trabalho e de contratos comerciais.
Nossas universidades, e muitas escolas, entregaram suas estruturas de informação, dados, e-mails, armazenamento de interações e documentos para empresas estrangeiras, que vivem do tratamento de dados. Este cenário é um reflexo mais imediato do desinvestimento na infraestrutura e em recursos humanos na área de tecnologia de informação, gerando um cenário de dependência crescente de corporações estrangeiras no setor. Assim, o que se entende como redução de custos na utilização de serviços, mascara funestas consequências a médio e longo prazos. O conhecimento e as informações produzida pelos cientistas brasileiros hoje correm pelas veias fechadas que irrigam o coração das empresas de tecnologia do Vale do Silício, colocando em grande risco a produção científica e o ecossistema tecnológico do país.
É preciso romper com a crença neoliberal de que não importa mais ser desenvolvedor e inventor de tecnologias, de que o importante é ser um bom comprador de serviços e produtos. Cabe ao Brasil se inserir internacionalmente de maneira soberana, desenvolvendo de forma plena as capacidades e as potencialidades de sua população. A agenda de transformação digital brasileira precisa ser orientada ao bem-estar e ao florescimento humano de seus cidadãos, assim como ao enfrentamento da desigualdade, do racismo algorítmico e dos novos meios de segregação.
Não podemos nos contentar com o bloqueio tecnocientífico de nossas capacidades criativas. Temos que colocar no centro de nossa proposta a expansão da tecnodiversidade, da luta contra o epistemicídio, do desbloqueio da inventividade de nosso povo.
Temos consciência da profunda crise que assola o país e dos desafios orçamentários diante da política de terra arrasada implementada pelo governo atual.
Por isso, propomos algumas poucas, mas imprescindíveis medidas que atuem nesse cenário, com o efeito de energizar e potencializar nossos arranjos tecnocientíficos voltados ao digital:
1- Criar uma infraestrutura federada para a hospedagem dos dados das universidades e centros de pesquisa brasileiros conforme nossa LGPD.
2- Formar, nessa infraestrutura federada, frameworks para soluções de Inteligência Artificial, seja para o setor público ou privado.
3- Incentivar e financiar a criação de datacenters que envolvam governos estaduais, municípios, universidades públicas e organizações não-governamentais, que permitam manter dados em nosso território e aplicar soluções IA que estimulem e beneficiem a inteligência coletiva local e regional.
4- Promover a instalação, no MCTI, de equipes multidisciplinares para a prospecção de tecnologias e experimentos tendo como princípios a tecnodiversidade e em busca de promover avanços em áreas estratégicas ao desenvolvimento nacional. Em articulação com o MEC, promover também a formação de recursos humanos criando mecanismos para que permaneçam no setor público de maneira a nos afastar da dependência das grandes corporações.
5- Incentivar e financiar a criação de arranjos tecnológicos locais para desenvolver soluções que visem superar a precarização do trabalho trazidas pelas Big Techs.
6- Garantir recursos para apoiar e financiar a criação de cooperativas de trabalhadores, que possam desenvolver e controlar plataformas digitais de prestação de serviços, assim como outros arranjos que evitem a concentração de poder tecnológico, tanto em empresas estrangeiras como nacionais.
7 – Lançar um extenso programa interdisciplinar de formação, inclusive ética, e de permanência de cientistas e técnicos, implantando e financiando centros de desenvolvimento para a criação e desenvolvimento de soluções de IA, de automação, robótica, computação quântica, desenvolvimento local de chips, redes de comunicação de alta velocidade entre outros.
8 – Utilizar o poder de compra da União para incentivar o atendimento das necessidades tecnológicas do país, bem como fomentar soluções interoperáveis com software livre, e outras formas abertas de desenvolvimento e compartilhamento de tecnologia.
9 – Resgatar e recuperar a Telebras, organizando um levantamento dos bens reversíveis que estão subvalorizados e em poder das teles e implementando uma política de redução das assimetrias e desigualdades digitais. Esta pode ser feita em parcerias de modo coordenado com estados, municípios e organizações não-governamentais, com tecnologias consolidadas mas também desenvolvendo opções de conexão inovadoras.
A extração de dados do país gera perdas econômicas que poderiam ser evitadas. Segundo relatório da consultoria RTI chamado The Impact of Facebook’s U.S. Data Center Fleet 2017–2019, para cada US$ 1 milhão em despesas de capital em data centers foram gerados US$ 954 mil adicionais em massa salarial (labor income) e US$ 1,4 milhão em PIB. Além disso, para cada US$ 1 milhão em despesas operacionais em data centers, a economia norte-americana registrou US$ 1,3 milhão adicionais na massa salarial e US$ 2,2 milhões em PIB. É perceptível que a extração de dados da sociedade brasileira drena a base de negócios para fora do país, desprepara nossas infraestruturas digitais e enfraquece as possibilidades de treinamento de modelos de aprendizado de máquina controlados por empreendedores e organizações brasileiras.
Atualmente, segundo pesquisa do Observatório Educação Vigiada, 79% das Instituições Públicas de Ensino Superior do país têm seus e-mails institucionais alocados em servidores privados, localizados fora do país, e que são gerenciados por empresas envolvidas no lucrativo mercado de coleta, análise e comercialização de dados pessoais. A Google (Alphabet, Inc.), o maior player desse mercado, armazena 72% dos e-mails institucionais das universidades públicas do país.
Nós acreditamos que esse cenário aponta para uma situação de extrema vulnerabilidade em relação à segurança da produção científica e tecnológica do Brasil. A maior parte das comunicações acadêmicas e de pesquisa produzidas nas instituições públicas brasileiras estão em data centers fora de seu controle institucional, boa parte nos Estados Unidos da América, alimentando um sistema de inteligência e lucros a partir de análise de dados que fragilizam nossa soberania e a própria autonomia universitária.
Sergio Amadeu da Silveira – UFABC
Rafael Evangelista – Unicamp
Leonardo Ribeiro da Cruz – UFPA
Jerônimo Pellegrini – UFABC
Marta M. Kanashiro – Unicamp
Nelson De Luca Pretto – UFBA
Marcos Dantas – UFRJ
Daniel Miranda Machado – UFABC
Eduardo Guéron – UFABC
Bruno de Vasconcelos Cardoso – UFRJ
Henrique Parra – Unifesp
Rodolfo Avelino – INSPER
Tarcízio Silva – UFABC
Fernanda Bruno – UFRJ
Rodrigo Firmino – PUCPR
Filipe Saraiva – UFPA
Carlos Vogt – Unicamp (ex-reitor e ex-presidente da Fapesp)
Alcides Peron – Unicamp
Letícia Cesarino – UFSC
Diego Vicentin – Unicamp
Miguel Said Vieira – UFABC
Paulo Meirelles – UFABC
Tel Amiel – UnB
Carolina Cantarino – Unicamp
Marcelo Buzato – Unicamp
Flávia Lefèvre Guimarães – Coalização Direitos na Rede
Daniel Queiroz – UFRGS
André Lemos – UFBA
Edmea Santos – UFRRJ
Lynn Alves – UFBA
Laymert Garcia dos Santos – Unicamp
Claudete Alves – UFBA
Ivana Bentes – UFRJ
Débora Abdala – UFBA
Vinicius Ramos – UFSC
Fábio Malini – UFES
Laís Silveira Fraga – Unicamp
Maria Helena Bonilla – UFBA
Anna Bentes (LAVITS)
Mauro Cavalcante Pequeno – UFCE
Alessandra dos Santos Penha – UFSCar
Janaína do Rozário Diniz – UEMG
Henrique Antoun – UFRJ
Douglas Esteves – Laboratório Hacker de Campinas
Andrea Lapa – UFSC
Beá Tibiriçá – Coletivo Digital
Wilken Sanches – Coletivo Digital
Joyce Souza – UFABC
Amanda Yumi Ambriola Oku – Garoa Hacker Clube
Paulo José Lara – Lavits
Jader Gama – FUNBOSQUE/Pará
Aracele Lima Torres – Unifesp
André Filipe de Assunção e Brito – Ativista
Simone Lucena – UFS
Rafael Grohmann – UNISINOS
Alexandre Costa Barbosa – Núcleo de Tecnologia do MTST
Renata Gusmão – Tecnocríticas
Brenda Cunha – CDR
Messias Guimarães Bandeira – UFBA e Digitalia
Lula Pinto – Unicap
Sarita Albagli – IBICT
Gisele da Silva Craveiro – USP
Karina Menezes – UFBA
Rafael H. Bordini – PUCRS
Maria Helena Silveira Bonilla – UFBA
Bia Barbosa – representante do 3o setor no CGI.br
Marcos Vinicius Ferreira Mazoni – FGV
João Cassino – BB Tecnologia e Serviços
Jonas Valente – Oxford Internet Institute
Ewout ter Haar – USP
Andrea Harada – Sinpro Guarulhos
Salete Noro – UFBA
Priscila Gonsales – Iniciativa Educação Aberta – Instituto Educadigital
Bruna Mendes – UFABC
Eugenio Trivinho – PUC-SP
Diego Vergaças de Sousa Carvalho – Núcleo de Tecnologia do MTST
Deivi Lopes Kuhn – Calango Hacker Clube
Alan Freihof Tygel – Cooperativa EITA
Daniel Tygel – Cooperativa EITA
Rosana Kirsch – Cooperativa EITA
Lucas Lago – Cooperativa EITA
Fábio Piovam – Cooperativa EITA
Victor Ferreira – Cooperativa EITA
Alessandra Silveira – Cooperativa EITA
Bianca Rubim – Cooperativa EITA
Giovani Hober Ghiggi – Cooperativa EITA
Camilla de Godoi Pacheco – Cooperativa EITA
Pedro Henrique Gomes Jatobá – Cooperativa EITA
Leonardo Lazarte – Inn (aposentado)
Marijane Vieira Lisboa – PUCSP
Alexandre Garcia Aguado – IFSP
Nelson Lago – USP
Geisa Santos Silva – Coletivo Periféricas