26 Julho 2022
"Por enquanto, esse é o ponto de contato entre as agendas das duas cúpulas: o maior beneficiário - ainda que vítima da descortesia inicial - parece, portanto, o czar de Moscou, mais do que o sultão turco ou o persa de Teerã", escreve Riccardo Cristiano, jornalista italiano, publicado por Settimana News, 24-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há poucos dias se realizou ao vivo diante do mundo inteiro– do Oriente Médio – a grande competição entre cúpula e líderes que se detestam.
Localização de Teerã no Irã (Foto: Wikimedia Commons)
O presidente dos Estados Unidos iniciou os trabalhos do palácio real de Jeddah, na Arábia Saudita, onde o esperava o príncipe assassino Mohammad bin Salman, que Biden queria reduzir a pária internacional. Os presidentes iraniano, turco e russo se seguiram na vitrine - de Teerã - em uma cúpula de "irmãos de morte".
Se muitos notaram que Joe Biden foi recebido em Jeddah com as honras reservadas aos subsecretários estrangeiros dos países em desenvolvimento, poucos souberam acrescentar que não foi uma pequena descortesia oriental a demora que Erdogan impôs a Putin, obrigado a ficar na antecâmara, antes que o encontro bilateral entre o sultão e o czar pudesse começar em Teerã, onde os dois se juntaram mais tarde ao seu homólogo iraniano, Raisi.
Por trás dessa demora em si humilhante - infligida ao russo - estava a preocupação de Erdogan em voltar para casa de mãos vazias, especialmente na crucial questão síria, diante de sua clara aspiração de anexar 30 quilômetros quadrados do nordeste sírio, com os limítrofes territórios iraquianos, hoje em mãos curdas: de fato, não encontrou nenhum consentimento a esse respeito, nem poderia tê-lo dos outros dois.
O acordo sobre o trigo entre a Rússia e a Ucrânia, portanto, não nasceu em Teerã. No máximo, é verdade que Putin não pode simplesmente permitir-se parecer indiferente à fome dos países que estão lhe dando uma mão, ou seja, todos aqueles países do sul do mundo que não estão aderindo às sanções contra a Rússia.
Assim - logo que Erdogan voltou para casa - foi desencadeado o bombardeio de um centro de férias no norte do Iraque, onde 9 iraquianos, todos árabes, entre os quais uma menina de um ano, morreram. Ancara então agravou o quadro da situação, negando suas responsabilidades óbvias. Isso está alienando a Erdogan até mesmo o relacionamento com Mas'ud Barzani, o líder do Curdistão iraquiano que sempre foi seu aliado.
Não só isso: a ação turca foi condenada por todo o mundo político iraquiano, ciente de que a ação criminosa pode facilmente reacender o estopim do conflito entre sunitas e xiitas no Iraque. As vítimas foram justamente árabes, não curdos, como acontecia até agora devido aos ataques dos turcos: isso atiçou particularmente a população. Todos os líderes, em consequência, reagiram com veemência, cientes do risco do que comportaria uma falta de reação.
Mas não creio que Erdogan tenha reagido de tal forma ao insucesso da cúpula apenas por autêntica irritação, mas sim pela urgência de se mostrar forte - e extremamente nacionalista - aos olhos dos seus concidadãos, aqueles que em poucos meses decidirão se o confirmar presidente ou não.
Os iranianos, por outro lado, não fizeram concessões porque, depois de gastar bilhões de dólares em suas guerras de expansão imperial, sabem muito bem que a taxa de inflação em seu país já ultrapassa 52%, enquanto o custo médio de um aluguel vale mais de 70% de um salário. Portanto, se não podem mudar o quadro interno, também não podem conceder a outros os escombros que conquistaram.
Até os iranianos, imediatamente após a cúpula, pareciam nervosos. Isso é demonstrado pelo incrível incidente ocorrido com D. Moussa el-Hage, arcebispo maronita de Haifa e Jerusalém: conforme previsto pelos acordos bilaterais em vigor há muitos anos, ele atravessou a fronteira entre Israel e o Líbano com uma carga de medicamentos e 460 mil dólares em dinheiro, ou seja, as ajudas arrecadadas entre os libaneses que fugiram para Israel, para serem levadas aos seus parentes reduzidos em extrema pobreza pelo desastre econômico libanês; desta vez, porém, a Segurança Geral Libanesa - comandada por homens ligados aos pró-iranianos do Hezbollah - o colocou sob custódia, confiscou o dinheiro, os remédios e o passaporte.
D. Moussa foi interrogado durante onze horas por um agente orientado por um magistrado que por telefone desferia perguntas e que depois ditou ao oficial de segurança o relatório a ser enviado a Beirute, conforme declarado pelo próprio alto prelado. No dia seguinte, ele foi surpreendentemente recebido pelo próprio presidente Aoun, um aliado muito próximo do Hezbollah.
O patriarca maronita não hesitou em denunciar o fato como uma intimidação do Hezbollah. Por quê? De fato, o patriarca defende que o futuro presidente – maronita por lei – não pode e não deve estar alinhado com Teerã, mas deve estar ao serviço do interesse nacional expresso pela fórmula da “neutralidade ativa”.
As eleições presidenciais são esperadas no Líbano em outubro: o barulho gerado pelo comunicado de Monsenhor Moussa obrigou, portanto, Aoun - que gostaria de levar seu genro para a presidência do Líbano com a ajuda do Hezbollah - a receber o bispo no Palácio presidencial. Aoun espera assim ter salvo o acordo, apesar das exuberâncias do Hezbollah. Mas Monsenhor el-Hage relançou: "Se não me devolverem tudo, o Vaticano intervirá!" É certo que uma ação da nunciatura sobre o "presidente forte" do Líbano - aquele que afirma tutelar os cristãos libaneses - seria um fato marcante.
As ações do Hezbollah são decididas em Teerã. Mas em Teerã, de fato, eles não se sentem tranquilos. A cúpula não foi afinal tão ruim para eles, mesmo que com os russos tenham permanecido divergências sobre os interesses básicos: são países que produzem as mesmas matérias-primas.
Agora, Moscou certamente vê o Irã como um país especialista em contornar as sanções internacionais e isso é útil. Porém, a disputa iraniana com Ancara continua sendo mais profunda: da questão das barragens turcas que também garantem água ao Irã àquela do muro que Ancara construiu ao longo da fronteira comum para bloquear os refugiados afegãos que o Irã está empurrando para a Turquia. E no mesmo terreno, Teerã deve necessariamente tentar consolidar as conquistas militares nas quais investiu enormes somas.
Quem não parece nervoso hoje é o presidente sírio Assad. Isso é demonstrado pelo caso do filme chinês produzido por Jackie Chan: o filme pretende exaltar nas telas o brilhantismo da operação chinesa que resgatou muitos compatriotas do Iêmen em chamas. O filme foi financiado pelos Emirados Árabes Unidos. A história exigia um cenário adequado.
E a Síria ofereceu-o ao melhor preço disponível no mercado uma localização perfeita: trata-se de uma verdadeira favela nos arredores de Damasco, Hajar al Aswad, construída pelos Assad nos anos seguintes à perda de Golan para manter no país - da "melhor maneira" segundo o eufemismo – a população de Golan, mas apenas no aguardo de "libertá-la".
A história dessa paupérrima favela é pouco conhecida, assim como a revolta que ocorreu ali em 2011. Local de desespero e marginalização por décadas, a favela foi repetidamente atacada pelo exército sírio, mas resistiu por anos. Chegou não se sabe de onde – o ISIS, permitindo que o regime a arrasasse em 2018, conforme narrado minuciosamente pela ANSA-Med.
Como Hajar al Aswad ainda está tão devastada quanto quatro anos atrás o regime permitiu que a equipe chinesa filmasse as principais cenas da produção, intitulada Home Operation. Pouco ou nada disposto a servir aos seus cidadãos, o regime al-Assad serve, como sempre, a si mesmo e, desta vez, ao cinema chinês. A tranquilidade de Bashar é um sinal do fato de que nem em Jeddah nem em Teerã alguém se preocupou em perturbar seu status, agora permanente, de senhor das trevas sírias.
Por enquanto, esse é o ponto de contato entre as agendas das duas cúpulas: o maior beneficiário - ainda que vítima da descortesia inicial - parece, portanto, o czar de Moscou, mais do que o sultão turco ou o persa de Teerã.
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A cúpula de Teerã - Instituto Humanitas Unisinos - IHU