12 Julho 2022
Em certo dia, uma mulher instruída - para muitos, uma “privilegiada” -, entrou em contato com Remedios Zafra (Zuheros, Córdoba, 1973) para a interpelar a respeito de seu livro El entusiasmo: precariedad y trabajo creativo en la era digital, no qual denunciava a crescente exploração do voluntarismo criativo em ambientes digitais. Durante essa ligação, a mulher manifestou sua inquietação com uma vida imersa em tarefas burocráticas e de autopromoção que dificultavam sua concentração no que, supostamente, era a base intelectual de seu emprego.
Zafra parece ter identificado naquela voz o locus de um mal-estar da época: “Sua dor nascia de uma vida não mais de desempregada, mas de precária atividade incessante, que no importante (para ela sua paixão e seu futuro emancipado, mas também sua vida política), sentia neutralizada”, escreve em seu último livro, Frágiles: Cartas sobre la ansiedad y la esperanza en la nueva cultura, um ensaio em primeira pessoa que se estrutura como uma série de cartas escritas para aquela mulher, mas que, na verdade, alimenta-se da angústia de muitos trabalhadores criativos que confidenciaram a Zafra situações de precariedade e vulnerabilidade.
Pioneira dos estudos ciberfeministas, desde o início deste século Zafra vem alertando sobre como o tecnocapitalismo está moldando nossas subjetividades e criando novas formas de autogestão do eu. Ao mesmo tempo, desde seus primeiros trabalhos, Zafra - que é uma cientista titular do Instituto de Filosofia do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC) da Espanha -, mostrou-se atenta às potencialidades do digital para a experimentação artística e identitária, nutrindo-se sempre da ficção científica e da especulação teórica.
Escrito durante seu próprio processo de adaptação às consequências da síndrome de Alport, Frágiles é um registro íntimo que nos convida a parar e prestar atenção na vulnerabilidade dos outros, bem como a pensar novamente - juntos -, em meio à aceleração e o barulho do dia a dia.
A entrevista é de Íñigo Ibánez, publicada pela revista Santiago, 11-07-2022. A tradução é do Cepat.
O teletrabalho contribuiu para aprofundar a nossa fragilidade, distanciando-nos do entusiasmo inicial?
Penso que a pandemia foi ambivalente para o setor criativo. Junto com o aumento da precariedade e a pobreza de muitos trabalhadores que viram seus compromissos anulados ou seus negócios fechados, assistimos a um aumento explosivo da criação e da leitura. No confinamento, escreveu-se mais do que nunca, leu-se mais do que nunca.
Foi assim que você o viveu?
Minha sorte foi estar nesse segundo lugar, porque para mim foi um presente. Habituada a uma vida nômade, com trabalhos itinerantes e viagens frequentes, também coincidindo com um importante ponto de inflexão, que foi o processo de reabilitação que eu seguia para me adaptar a uma crescente perda de visão e audição, recluir-me em casa foi um descanso, uma oportunidade que lembro até com nostalgia, pois depois o mundo voltou a acelerar como se pouco tivéssemos aprendido.
De fato, o capítulo mais pessoal, dedicado à fragilidade dos corpos, é escrito nesse intervalo. E penso que é o mais sugestivo, pois nasce de uma vivência do tempo libertada e muito diferente da escrita “salpicada” entre trabalhos e demandas cotidianas.
Sem a presencialidade, perdeu-se qualidade no ensino das humanidades ou novas janelas também se abriram?
Sua pergunta me lembra as palavras de Deleuze, quando afirmava que não se trata de escolher uma ou outra técnica, mas “entre formas criativas e formas de domesticação”. Eu colocaria sobre a mesa esta ideia nos debates sobre a presencialidade.
Acredito que há grandes conquistas para as humanidades que podemos extrair do teletrabalho e do “quarto próprio conectado” (concentração, conforto, otimização de tempos, possibilidade de ampliar debates entre pessoas que vivem em lugares distantes), sem menosprezar aquelas que derivam da presencialidade (a empatia e a proximidade dos sujeitos, a espontaneidade, os diferentes debates e trocas que surgem em um ambiente desconectado).
Quero dizer que não seria responsável ou justo culpar a tecnologia por uma perda de qualidade, mas sim pelo fracasso de modelos que nem sempre podem ser extrapolados e que exigem ser pensados para tirar o melhor do estar juntos e o melhor do estar mediados por telas.
Mas esse potencial exibido pela internet foi igual para todos ou precisa ser lido em termos de gênero?
Enquanto muitos homens reconheceram no teletrabalho uma oportunidade para a leitura, a escrita e para fazer trabalhos com maior profundidade e tempo, era comum encontrar muitas mulheres fartas porque o vírus as havia devolvido ao passado. Com o cancelamento dos serviços sociais de cuidado e das escolas, as mulheres se viram obrigadas a assumir o cuidado dos filhos e da casa, dificultando suas possibilidades de teletrabalho e aumentando sua ansiedade.
No centro da insatisfação contemporânea estaria um novo tipo de “impostura” necessária para sobreviver que, na opinião de Zafra, estaria obrigando os trabalhadores culturais e acadêmicos a atuar como community managers de si mesmos.
Desse modo, com o “eu” transformado em um produto da vitrine digital, estaria sendo normalizado um novo “pagamento com os olhos” - ou capital simbólico - como parte do intercâmbio que supõe exibir – e promover – o trabalho em rede, em busca de audiências, seguidores, leitores, citações e influência.
“O gancho que isso supõe é perverso para quem, exposto, sente que sua obra leva uma assinatura, um assunto, anexos”, explica. “Porque no escrutínio que isso implica, nada faz com que você se sinta mais vulnerável do que o dano que os outros podem causar ao trabalho criativo e intelectual, que é valor, intimidade e sentido para nós.”
Que desafios isso representa para a academia e os trabalhadores do conhecimento?
Para o setor criativo, isto implica um passo a mais na mercantilização do sujeito e sua instrumentalização pelas indústrias digitais, que tiram proveito do tempo e os dados gerados por sua normalização. Mas também implica uma crise dos sistemas de “valor” não apoiados em lógicas acumulativas ou quantitativas, como as que predominam na internet.
Igualar o mais visto ao mais valioso é algo que ignoramos em suas consequências, pois restringe a criação de sentido (cultural, estético, intelectual, ético, reflexivo, social...) à mera criação de “audiências”. Ou seja, coloca as estratégias próprias de um capitalismo afetivo (agora capitalismo escópico) no comando da criação de valor cultural.
Assim como o filósofo australiano David J. Chalmers, considera que o metaverso reatualiza a promessa (quebrada) de ambientes virtuais onde os estereótipos de gênero e limitações físicas acabam se diluindo?
Já vivenciamos essa leitura nos anos 1990. Naquele momento, a esperança política que se projetava sobre a internet em relação à construção identitária e subjetiva falava de como a posição dos corpos atrás das telas permitiria uma derrubada do status quo de gênero e das limitações físicas. Mas isto não só não ocorreu como na virada do século os estereótipos se tornaram mais fortes, se é possível.
E nisso teve muito a ver a cessão de poder dos países e instituições cidadãs ao mercado, que desde o início dos anos 2000 fizeram a territorialização da internet como se fosse um espaço “público”, sem ser, impondo seus particulares modelos de comportamento e favorecendo um envolvimento dos sujeitos sempre sustentado em suas “imagens” da realidade, dados de monitoramento e controle. Ou seja, em uma projeção do mundo físico só alterada na ampliação do cânone, muito viável a partir da autoedição de imagem própria e do predomínio da representação mais estetizada, especialmente em redes feminizadas.
E em relação ao metaverso, qual é a sua preocupação?
Meu maior receio não é tanto como nos permitirá experimentar em nível identitário, mas se funcionará como um lugar de evasão e adormecimento crítico frente a uma realidade conflitiva (crise, precariedade, guerras), onde muitos pobres e sujeitos descontentes com suas vidas optem pela virtualidade evasiva, como já vem sendo ensaiado nos últimos anos com os videogames.
A autora irlandesa Angela Nagle, entre outros, relacionou o triunfo de Donald Trump ao extremo do politicamente correto da esquerda. Você acredita que setores reacionários estão capitalizando as lógicas algorítmicas e que certa esquerda possui alguma responsabilidade nisso?
Penso que houve uma instrumentalização das redes apoiada na fácil simplificação de discursos e em categorias como a aceleração e o excesso, que condicionam e dificultam qualquer diálogo. Quando tudo se reduz a deixar claro um posicionamento buscando manchetes, a verdade e a justiça sempre saem escaldadas. Não é possível ser justo sem tempo, e não é possível pensar sem tempo para pensar. A maior parte das opiniões mobilizadas a partir de posições enviesadas se apoiam em motivações passionais e em ideias preconcebidas (que melhor toleram a velocidade).
Se considerarmos que muitos desses debates aconteceram em plataformas como o Twitter, pensadas para a manchete e a ideia sensacionalista, ou seja, para não debater, nem para gerar um contexto de escuta, empatia, nem busca de compreensão, o diálogo se torna uma guerra, uma polarização maniqueísta onde, em minha impressão, sempre serão favorecidas as visões mais conservadoras. Se a esquerda cair nessa armadilha, como alguns caíram na cultura do cancelamento, parece-me que aprendemos pouco. Para toda mudança social requer-se mais esforço pedagógico e empático do que uma batalha campal nas redes.
A partir da psicanálise, parece haver um ressurgimento do diagnóstico cultural de “narcisismo” para explicar o comportamento online dos "millennials" e da "geração Z". Qual é a sua leitura a esse respeito?
Não é possível escolher quando é o sistema que propõe a única alternativa. Os jovens não sentem a liberdade de poder agir e ser fora dos meios de socialização que foram normalizados em suas vidas e que, entre todos, legitimamos. Apresentar-lhes um futuro sem trabalho, sem estabilidade, sem garantias sociais quando forem idosos e com um planeta em colapso, e também chamá-los de “vaidosos” porque estão nas redes, só reforça o sentimento de abuso e angústia que muitos sentem.
Surpreenderia ver os dados sobre problemas de saúde mental entre adolescentes e jovens. Nesse cenário, a tecnologia foi a única que se preparou para acolher a incerteza dos jovens quando lhes é negado um futuro melhor. Diante da falta de resposta que estamos tendo como sociedade, as telas rapidamente os envolveram.
Você também reivindica o direito ao próprio avatar, algo que poderia ser associado à máscara atrás da qual o “hater” ou “troll” se esconde. É possível participar dessas estratégias online sem alimentar discursos reacionários?
Para as lutas políticas e, mais concretamente, para as feministas, a máscara e o anonimato continuam sendo valiosos em muitas partes do mundo. Onde sua vida está em risco, quando você se manifesta livremente na esfera pública, usar uma máscara pode ajudar em uma reivindicação coletiva.
É a falta de liberdade e direitos que permite nos apropriarmos de estratégias críticas com sistemas opressivos. Por isso, não acredito que a máscara ou o anonimato devam ser estigmatizados, sem contextualizar o lugar e o momento, bem como a plataforma em que fazemos uso desses recursos.
Não esqueçamos que as regras de comportamento nas redes são marcadas pelas próprias empresas sob critérios de mercado e rentabilidade, não sob critérios éticos ou que empoderem os cidadãos, por isso não causa estranhamento que estigmatizem tudo o que saia do controle mais fácil das pessoas, com fotos e dados reais, e com docilidade anexa.
O que está em jogo no marco dessa reversível guinada ao digital?
O que está em jogo são os maiores ou menores graus de docilidade e liberdade das pessoas. Sua manipulação da máquina ou ser manipulados pela máquina. E não é pouca coisa, pois diante do esfriamento desapaixonado que nos empurra para a inércia do fazer sem pensar, já que “todo mundo faz”, existe a possibilidade de apropriação crítica e propositiva, bem como de contágio e melhora.
Portanto, está em jogo nosso silenciamento político como engrenagens de um sistema que sobrepõe o poder econômico ao poder político e cidadão, e que se vale da desativação política, estruturalmente encorajada por uma multidão de solitários diante das telas.
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“Não é possível pensar sem tempo.” Entrevista com Remedios Zafra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU