"Motoboys fazem refeições alheias circularem pelas cidades, mas amargam uma dieta deletéria à saúde: ultraprocessados, sal e açúcar – quando há. Enfrentar o inferno precarização também requer uma urgente virada agroecológica", escreve Susana Prizendt, arquiteta e urbanista, da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida (CPCAPV) e do MUDA-SP, em artigo publicado por Outras Palavras, 31-05-2022.
Maio é o mês em que se recorda a abolição da escravidão no Brasil. Em um dia 13 deste mês, no ano de 1888, foi assinado o documento que “libertava” a população escravizada das senzalas. A nova condição de “liberdade” das mulheres e dos homens que faziam parte dessa população foi acompanhada de uma total negação de acesso à terra ou aos meios de subsistência para que pudessem exercer uma verdadeira cidadania no país. A partir daí, a marginalização dos ex-escravizados e seus descendentes foi se enraizando em uma sociedade que se tornava mais e mais regida pelo capital.
Passaram-se 134 anos e as feridas da desigualdade seguem expostas – como seguem abertas as veias da nossa América Latina. O sangue continua sendo drenado da população negra para a elite branca do país e de nosso território miscigenado para os países brancos do Norte global.
Novas formas de assujeitamento seguem em curso. Nos últimos anos, a precarização do trabalho vem se intensificando em um ritmo avassalador e é um dos fatores responsáveis pela ampliação de uma dor que vinha sendo ao menos tratada nas últimas décadas: a dor da fome. Talvez o símbolo mais intrigante para representar esse tema nos dias atuais seja o dos entregadores de comida por aplicativo, atividade que se multiplicou após o desmonte da legislação trabalhista e da chegada da pandemia.
Na cidade de São Paulo, um dos postos em que os motoboys retiram alimentos e bebidas – para levá-los imediatamente às pessoas que pagaram pela encomenda – se instalou ao lado do prédio onde moro. Quando passo por ali, no começo da noite, em meio à penumbra da rua mal iluminada, vejo corpos estendidos na calçada, com as cabeças apoiadas em pedaços de papelão. Às vezes estão dormindo, às vezes estão com os olhos nas telas de seus celulares, em uma espera contínua de que sejam chamados a subir em suas motos e sair em disparada pela cidade, garantido que a comida chegue quente ao seu destino. Se a própria barriga desses entregadores está vazia, não interessa aos clientes, muito menos aos seus “empregadores”, entidades que parecem abstratas, pois se manifestam desde um não-lugar, via celular.
Fico pensando em como, há mais de um século, os escravizados ficavam deitados no escuro do chão das senzalas, sempre sujeitos a ter que levantar ao primeiro sinal de que seus senhores precisassem de algum serviço – ou desejassem satisfazer algum capricho.
É difícil estabelecer uma comparação precisa entre a alimentação dos trabalhadores precarizados de hoje e dos escravizados do século XIX. Mas mesmo uma breve aproximação evidencia um dos dados perversos da abolição tal como se deu no Brasil: o abandono dos trabalhadores e trabalhadoras negros e negras à sua própria sorte.
Para se ter uma ideia, encontrei uma orientação detalhada sobre a maneira que os senhores de terras deveriam alimentar as pessoas que consideravam seus escravos. Ela faz parte do livro Manual do Agricultor Brasileiro, publicado em 1839 pelo fazendeiro, militar e jornalista Carlos Augusto Taunay, filho de Nicolas Antoine Taunay, pintor de destaque que veio ao Brasil, em 1816, como membro da Missão Artística Francesa, trazendo toda a família. Segue abaixo um pequeno trecho:
“Um negro não deveria receber por dia menos que um décimo da quarta parte do alqueire raso de farinha de mandioca, meia libra de carne fresca ou quatro onças de carne salgada ou peixe, e duas onças de arroz ou de feijão, subentendendo-se que, segundo as localidades, se admitiriam os equivalentes em fubá, arroz, toucinho, peixe, etc”.
E o autor ainda menciona a inclusão de bolo de milho e fruta pela manhã; carne ou peixe com pirão no almoço e feijões, legumes, carurus e arroz à noite.
É claro que o que está escrito no texto era mais uma recomendação, que não corresponde plenamente à realidade da época. De fato, a alimentação nas senzalas era muito mais rude, pobre e irregular. Mas não deixa de ser aterrador comparar com fatos recentes nesta mesma cidade de São Paulo. Como imaginar que essa recomendação efetivamente passava pelas mentes das elites escravocratas quando, não faz muitos anos, o então prefeito de São Paulo e ex-governador do estado, João Dória, quis transformar a tal da “Farinata”, um ultraprocessado que ninguém sabia exatamente o que era, na alimentação básica das crianças, filhas de trabalhadores e trabalhadoras, nas escolas públicas públicas da maior cidade do país?
Igualmente revoltante é a indiferença dessa mesma elite em relação ao que os trabalhadores precarizados de hoje têm conseguido comer. Alimentos produzidos localmente, condizentes com a cultura regional, sem substâncias tóxicas, incluindo grãos, cereais, hortaliças, frutas e carne ou peixe diariamente: quantos brasileiros e brasileiras, nos dias de hoje, têm acesso à dieta que um dia foi recomendada aos escravizados? Voltemos aos motoboys…
Imensas garrafas plásticas de refrigerantes são compartilhadas, com bastante frequência, pelos entregadores do posto de retirada que abriu na minha vizinhança. Ficam apoiadas em muretas, expostas ao efeito do calor e, quando o tempo está muito quente, imagino que o gosto desse líquido aquecido seja mais parecido com um purgante do que com algo capaz de matar a sede. Do ponto de vista nutricional, além de não ter nada que nutra o organismo, trata-se de veneno, tanto pela fórmula cheia de açúcar e aditivos, como pela contaminação que sofre pelas toxinas emitidas pela garrafa plástica, quando sujeita ao aquecimento.
E se a bebida esquenta nos dias quentes, a comida, em geral já fria, fica gelada nos dias de baixa temperatura. São, em sua grande maioria, lanches com ingredientes ultraprocessados, como salsichas e embutidos, pães de baixa qualidade, molhos gordurosos e artificiais. Ou seja, tudo o que de pior foi inventado pelo modo de produção capitalista que rege nossa indústria alimentícia. E tudo engolido na calçada, entre uma entrega e outra, quando dá tempo.
Seria uma triste ironia se o tipo de alimento que esses motoboys entregassem fosse predominantemente de comidas saborosas, bem feitas, saudáveis e nutritivas – totalmente inacessíveis a eles. Mas, embora entreguem encomendas de cardápios assim; em uma grande parte das viagens que fazem pela cidade, as comidas que eles entregam são bem semelhantes às que ingerem – mesmo considerando que os cuidados no preparo, na apresentação e na origem dos ingredientes possam apresentar variações bem expressivas e que é provável que os clientes que as encomendaram não terão que comer apressadamente nas calçadas.
Espio o pequeno compartimento frontal do posto de retirada da minha rua: pelo buraco retangular na parede por onde passam os produtos que são entregues aos motoboys, é possível ver grandes garrafas plásticas de refrigerante e embalagens de lanches, que são organizadas em sacolas de papel. Dá para deduzir que a comida encomendada pelos fregueses ali não é nada saudável nem sofisticada e tem um teor “anti-nutritivo” e um potencial tóxico bem semelhantes aos que já mencionamos em relação às “refeições” feitas pelos próprios entregadores.
Sim, o domínio do fast food é inquestionável e tanto aqueles que entregam quanto aqueles que recebem comida por aplicativo costumam ser desalimentados nesse processo. Sal, gordura de baixa qualidade, açúcar e uma mistura química que dá “sabor”, durabilidade, textura, homogeneidade e outras características “desejáveis” a quem vende e a quem compra, são os ingredientes de combinações mágicas que viciam as papilas gustativas presentes em nossas bocas.
Não é à toa que tanta gente sente desejo ou até necessidade por algo completamente anti-nutritivo como um refrigerante ou um pacote de salgadinhos. Nosso paladar e nossa imaginação, via ação abusiva dos departamentos de marketing, vêm se tornando escravos de um sistema alimentar baseado em produtos alimentícios ultraprocessados, responsável por ampliar a ocorrência de doenças não transmissíveis, a carência de nutrientes, a injustiça social e a destruição da natureza.
São tempos em que assistimos ao fenômeno da obesidade conjugado com o fenômeno da desnutrição, muitas vezes ambos estando presentes na vida de uma mesma pessoa. E quem seria essa pessoa?
Ultimamente, os alimentos industrializados vêm se tornando mais baratos do que os alimentos in natura ou minimamente processados. A inflação, que tem sido um outro pilar do aumento da dor da fome no país, atingiu com muita força a comida básica que costuma nutrir nossa população. Arroz, feijão, carne, legumes… seus preços deram um salto em relação aos preços habituais e eles foram trocados por salsichas e macarrão instantâneo.
Se a elite brasileira – que tem acesso à informação nutricional e tem dinheiro para comprar os alimentos que aumentaram de preço –, segue postando receitas e dicas de preparações saudáveis nas redes sociais; as periferias, habitadas por desempregados e mal-empregados – entre eles os entregadores de comida por aplicativo –, se tornam reféns do que a indústria alimentícia pode produzir de forma mais barata e têm que se virar como puderem para encher a barriga com o que está ao alcance do bolso. É uma dieta que não nutre minimamente o organismo, mas que, muitas vezes, é capaz de enganar o estômago faminto, corresponder ao paladar viciado e atender ao desejo emocional, colonizado pelo marketing corporativo, que perturba a mente de seus indivíduos.
E tais indivíduos têm cor. A periferia é majoritariamente negra. A fome e a má alimentação atingem sobretudo aqueles que têm raízes africanas. Os que descendem das pessoas “libertadas” pela famosa Lei Áurea. São netos, bisnetos e tataranetos dos que foram privados do direito à terra, à educação acadêmica e à cidadania, quando “libertados”.
Como escrevem Douglas Belchior e Sheila de Carvalho: “O ato formal que fez do Brasil o último país a abolir a escravidão não rompeu com a lógica de servidão racializada da sociedade. Vivemos desde então um contínuo processo de reivindicação da cidadania à população negra para que também sejamos considerados sujeitos de direitos.” Em seu artigo, publicado na sessão chamada “Opinião” da Folha de São Paulo, eles mencionam a ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) que foi apresentada ao Supremo Tribunal Federal, denunciando o genocídio da população negra e reivindicando reconhecimento, justiça e reparação.
Como a ADPF explicita, cabe ao Estado agir vigorosamente para extinguir as desigualdades decorrentes da escravidão dos povos negros. Mas também cabe ao Estado – e a toda a sociedade – a atuação efetiva para botar um freio na exploração brutal dos trabalhadores de hoje. Estes são tão vítimas da estrutura injusta que nossa história nos legou, quanto das novas investidas inescrupulosas do capitalismo ultraneoliberal, que vem lhes negando, nestes últimos tempos, o direito básico a uma vida livre da fome e com uma alimentação adequada e nutritiva.
Quando a falta de comida (sobretudo da comida que nutre) no prato torna-se uma realidade atual para quem trabalha duramente – mesmo que não tenha contrato formal ou direitos trabalhistas – é porque chegamos a um nível de degradação social que restringe aos trabalhadores de hoje aquilo que nem aos escravizados e escravizadas de ontem era negado. Quando tais trabalhadores são justamente os que passam o dia entregando comida via aplicativos, podemos verificar como o desenvolvimento tecnológico pode ser cruel e como vem criando novas formas sofisticadas de precarização, que chegam a se aproximar das formas contemporâneas de escravidão.
Por fim, quando a própria indústria alimentícia busca viciar nosso paladar para que sejamos consumidores dependentes dos produtos – não nutritivos e repletos de substâncias prejudiciais à saúde – que ela fabrica, constatamos que mesmo as pessoas que conseguem adquirir alimentos para suas refeições diárias, muitas vezes, também são vítimas de um aprisionamento, que as condena a uma vida doentia, sem nutrientes e desvinculada de uma cultura alimentar que as integre à natureza de seus territórios e às tradições de seus povos de origem.
O fato é que precisamos, urgentemente, virar essa mesa e romper de vez os laços entre a comida (ou a falta dela) e as muitas formas de assujeitamento e precarização, sejam remanescentes do passado ou sejam criadas hoje em dia. Somente um modelo de sociedade baseado em relações justas, solidárias e em harmonia com a natureza é capaz de nutrir todas as pessoas que habitam nossa Gaia e trazer a libertação das amarras que seguem nos aprisionando a uma vida de exploração e privação. E nesse modelo libertário alguns dos principais pilares são a Reforma Agrária e a Agroecologia.
Democratizar o acesso à terra, depois de mais de 500 anos de privilégio de uma minoria de homens brancos – que apenas sugam sua fertilidade em função dos interesses da elite internacional –, é fundamental para vencer a crise de fome e má alimentação que nos assola.
Cultivar de modo agroecológico em uma terra distribuída com justiça é o único modo de sair do caminho genocida, ecocida e suicida que o capitalismo inescrupuloso nos colocou. Emergência climática, emergência alimentar, emergência hídrica, emergência sanitária, o que mais precisa acontecer para que a transformação desse modelo social e produtivo insustentável se efetue?
Enquanto os entregadores de comida por aplicativo seguem acelerando suas motos pelas ruas e avenidas; eu fico me perguntando se seguiremos acelerando a destruição de um futuro viável com a mesma intensidade.