No dia 29 de maio, participei em Barcelona da Trobada por las causes de Pere Caaldàliga: Resistir i Transformar.Compromís i militancia en temps de feixismes, organizado pela Fundació Pere Casaldàliga. Liderada pela jornalista Mónica Terribas, foi realizada uma mesa redonda sobre "A militância em tempos de fascismo" na qual participaram Pablo Maldos, ex-assessor especial do gabinete do presidente Lula da Silva, e María Dantas, deputada no Parlamento espanhol pela ERC. Pablo Maldos proferiu uma conferência sobre “A influência de Pedro Casaldàliga nos movimentos sociais no Brasil". Víctor Codina, teólogo da libertação e conhecedor da obra de Casaldáliga, falou sobre “a teologia poética de Pedro Casaldáliga”. Meu discurso girou em torno de "Cristoneofascismo, teísmo político e o Deus sacrificial de Bolsonaro", dos meus livros La Internacional del odio. ¿Cómo se construye? ¿Cómo se deconstruye? (Editorial Icaria, Barcelona, 2022, 3ª ed.) e Pedro Casaldáliga: larga caminada con los pobres de la tierra (Herder, Barcelona, 2021).
O artigo é de José Tamayo, teólogo e escritor espanhol, publicado por Religión Digital, 30-03-2022. O artigo reproduz a conferência proferida no evento acima informado.
Desde a eleição de Bolsonaro como presidente do Brasil, este país se tornou o epicentro do "cristoneofascismo" e o lugar onde a extrema-direita de Deus governa em um ato da mais crassa manipulação do sagrado a serviço de uma política necrófila. Tal situação me leva a colocar duas questões: em que modelo político-religioso se baseia a cristoneofascismo de Bolsonaro e qual imagem de Deus a fundamenta. Acredito que a melhor resposta está no teísmo político que Bolsonaro estabeleceu no Brasil e na imagem de um Deus sacrificial em que se baseia.
O slogan de sua campanha eleitoral, com o qual também concluiu seu discurso de posse como presidente do Brasil, foi: “Brasil acima de tudo, Deus acima de tudo”. Reiterou-o num dos cultos em que participou na Igreja Evangélica Sara NossaTerra em julho de 2019: “Devo a minha vida a Deus e este mandato está ao serviço do Senhor. Em nosso governo, Deus está acima de tudo”. O que muitos de nós consideramos um sequestro político de Deus, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, descreveu-o como uma libertação de Deus, "triste prisioneiro..., que volta a circular livremente pela alma humana". Teísmo político obstinado e perversão religiosa flagrante.
Acredito, sim, que no Brasil está acontecendo o contrário da afirmação de Araújo: a teologia da libertação latino-americana, e especialmente a brasileira, libertou Deus do cerco do mercado e Bolsonaro o tornou prisioneiro de sua política antiecológica, homofóbica, patriarcal, neocolonial e ultraneoliberal.
Uma característica do teísmo político de Bolsonaro é o providencialismo religioso, que consiste em interpretar a história a partir de um Deus providente, como quando considerou um milagre ter se livrado do ataque sofrido durante a campanha eleitoral e um milagre ainda maior ter vencido as eleições. O ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, aplicou a Bolsonaro as palavras de Jesus: "Muitos são chamados e poucos são escolhidos" e diz que Deus "elegeu o mais improvável".
Na escolha do “mais improvável”, Lorenzoni estava certo. O que duvido – ou melhor, nego – é que tenha sido Deus quem o escolheu ou legitimou sua eleição. Quem realmente contribuiu para sua eleição foram as fake news de sua campanha eleitoral, que continuam a ser produzidas durante sua presidência por meio do gabinete do ódio, que é dirigido por um de seus filhos e é responsável por espalhar notícias falsas. Comentando a solidão dos dois presidentes anteriores após as primeiras semanas de posse do governo, afirmou que um dos motivos dessa solidão foi "o afastamento de Deus, nosso criador".
O Brasil tem uma longa tradição de Estado laico, que Bolsonaro parece ratificar, mas o faz com astúcia porque introduz uma distinção que leva ao confessionalismo: "O Estado é laico, mas nós – eu, diz ele em outras ocasiões – somos cristãos". Confessionalismo que estendeu ao Supremo Tribunal Federal para o qual anunciou que dos dois juízes que deveria nomear "um seria terrivelmente (sic!) evangélico".
Bolsonaro na Marcha para Jesus (Fonte: Palácio do Planalto - Flickr)
Respeito ao pluralismo? Em absoluto. Ele prometeu reconhecer todas as religiões, mas, sim, "seguindo a tradição judaico-cristã". Considerando as constantes referências que faz à Bíblia, deve-se notar que ele reconhece mais influência à Bíblia do que à própria Constituição brasileira. Mas a Bíblia lida de forma fundamentalista e seletiva em seus textos mais violentos e discriminatórios contra mulheres, homossexuais, etc.
Constante é a presença de Bolsonaro nos templos das igrejas evangélicas fundamentalistas. Sua visita ao Templo de Salomão da Igreja Universal do Reino de Deus, do Bispo Edir Macedo, teve grande repercussão midiática, onde ocorreu uma cena inusitada: o Presidente da República ajoelhado diante do Bispo Macedo, que impôs as mãos sobre ele e o abençoando. O seu recurso à Bíblia é permanente para legitimar a sua política homofóbica, sexista, racista e ultraneoliberal, numa palavra, neofascista num claro rapto do texto sagrado judaico-cristão, que lê de forma fundamentalista.
Em maio de 2016, Bolsonaro viajou para Israel para receber o batismo no rio Jordão, imitando o batismo de Jesus. Foi o pastor e líder do Partido Social Cristão Everaldo Dias Pereira quem o imergiu no Jordão e, após o batismo, perguntou-lhe: "Você acredita que Jesus é o Filho de Deus?", ao que Bolsonaro respondeu: "Acredito." Após o batismo, ele citou a declaração de Jesus: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará" (João 8:32) e fez a seguinte confissão: "Recuperei uma fé que me acompanhará pelo resto da minha vida."
O deus em que acredita o atual presidente do Brasil e com ele os cristofascistas é quem legitima as ditaduras e insulta a democracia. Bolsonaro defendeu a ditadura brasileira que durou mais de vinte anos, de 1964 a 1985. Chegou a afirmar que seu principal erro "foi torturar e não matar". Ele também elogiou o golpe de Estado de Augusto Pinochet e o fez em resposta às críticas de Michelle Bachelet, presidente do Chile por dois mandatos (2006-2010, 2014-2018) e atual Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, à política de Bolsonaro.
Ele respondeu a Bachelet que esqueceu "que seu país não era como Cuba apenas graças a quem teve a coragem de 'dar um fim' à esquerda em 1973, entre os quais estava seu pai, então brigadeiro". A reação de Bolsonaro não deixa dúvidas: Deus fica do lado dos ditadores, carrascos, criminaliza impiedosamente as vítimas e, como disse Atahualpa Yupanki, come na mesa do patrão.
Comentando a Exortação pós-Sinodal Querida Amazônia, do papa Francisco, Bolsonaro negou as queimadas na floresta úmida e questionou em tom de chacota e teocrático o conteúdo da exortação: “ O papa Francisco disse ontem que a Amazônia é dele e de todo o mundo; coincidentemente, ontem estive com o chanceler argentino... o papa é argentino, mas Deus é brasileiro”. deus étnico e nacional contrário ao Deus universal das religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo e islamismo!
Bolsonaro discursando na Marcha para Jesus (Fonte: Palácio do Planalto - Flickr)
O deus de Bolsonaro, segundo Eliane Brum, é aquele que odeia o mundo globalizado, aquele que acredita que os imigrantes podem ameaçar a soberania do Brasil, aquele que acredita que as escolas do país se tornaram um verdadeiro bacanal infantil incentivado por professores defensores de "ideologia de gênero". E acrescento: é o deus negador do aquecimento global, insensível à violência de gênero, militarista, feito à imagem e semelhança do militar Bolsonaro e seu governo com grande representação militar. Ele é um deus vingativo, e não o Deus de perdão, compaixão e misericórdia como pregado e praticado por Jesus de Nazaré. Nada a ver com o Deus libertador do êxodo e dos profetas de Israel, que opta por pessoas e grupos empobrecidos.
Ele é o deus da magia e da superstição. No auge da pandemia, com dezenas de milhares de brasileiros infectados e milhares de pessoas morrendo por dia, ele emitiu um decreto declarando os serviços religiosos um “serviço essencial” aos cidadãos. Essa regulamentação foi inspirada na afirmação do pastor evangélico Silas Malafaia, um de seus conselheiros religiosos: “A igreja é uma agência de saúde emocional, tão importante quanto os hospitais”. Maior desprezo pela vida, impossível!
Aconselhado pelos pastores das megaigrejas, Bolsonaro subestimou desde o início a gravidade do coronavírus, que descreveu como "gripezinha", e da pandemia, que descreveu como psicose e histeria, mostrou sua desconfiança da ciência e propôs como alternativa a fé. Ele declarou sua proximidade com o bispo evangélico Edir Macedo, para quem o coronavírus é uma estratégia de Satanás para instilar medo, pânico e até terror, mas que só atinge pessoas sem fé. Como antídoto para o coronavírus, ele propõe o “coronafé”, que só é eficaz para quem acredita firmemente na palavra de Deus como “Messias” nos portões do palácio presidencial.
A resposta à desconfiança da ciência e ao caráter mágico-curador da fé fora da medicina é oferecida pelo teólogo e filósofo intercultural Raimon Panikkar em seu livro Religião, o mundo e o corpo (Herder, Barcelona, 2012) quando afirma: “independente da medicina, a religião deixa de ser […] fonte de alegria […]; torna-se uma força alienante, que, raramente, pode refugiar-se no 'negócio' de salvar almas não encarnadas ou na esperança de um céu projetado num futuro linear, mas que perde o valor terreno e até a sua razão de ser, já que não pode mais salvar o verdadeiro ser humano de carne e osso […] uma espécie de remédio para outro mundo, ao preço de ignorar este aqui” (p. 111)
E Panikkar conclui: "A religião sem medicina não é religião, ela desumaniza, torna-se cruel e aliena os seres humanos de sua própria vida nesta terra. A religião sem medicina torna-se patológica" (p. 112).
O Deus de Bolsonaro – também conhecido como BolsoNero – exige o sacrifício de seres humanos, um sacrifício seletivo de pessoas, classes sociais e os setores mais vulneráveis da população brasileira, de comunidades afrodescendentes e indígenas. Isso ficou evidente durante a pandemia com a morte de cerca de 800 mil pessoas, principalmente dos setores e classes populares, com uma taxa atual de cerca de 4 mil pessoas por dia, que foram sacrificadas com a desculpa de salvar a economia. A economia acima da vida!
O investimento não poderia ser mais necrófilo. É a aplicação mais desumana da teoria da necropolítica, exposta pelo cientista político camaronês Achille Mbembe, segundo a qual os poderes decidem quem deve morrer e quem pode viver, e da cultura do descarte do Papa Francisco, segundo a qual "os excluídos não são 'explorados', mas 'desperdícios', 'excedentes'" (A alegria do Evangelho, n. 53).
O deus de Bolsonaro é, em suma, um deus ecocida que exige sacrificar a natureza , principalmente com a destruição da floresta amazônica, sem perceber que a natureza é a fonte da vida, e Deus é o doador da vida. O deus de Bolsonaro está relacionado aos ídolos da morte do cristofascismo, que precisam de sangue para aplacar sua raiva.
O bispo, profeta, místico e poeta Pedro Casaldáliga, sob cuja inspiração estamos celebrando esta Trobada, responde, com sua vida e as causas que defendeu – mais importantes que sua vida –, ao cristoneofascismo de Bolsonaro com a proposta de um cristianismo libertador, desevangelizador e descolonizador, do qual ele foi um dos símbolos mais luminosos. Ele também propõe, como alternativa ao deus necrófilo e sacrificial do atual – e espero que por muito pouco tempo – presidente do Brasil – Deus Pai e Mãe, "o Deus de todos os nomes", "que no ventre de Maria de Nazaré tornou-se um ser humano e na oficina do José se fez classe”. É a tradução da encarnação de Deus em pessoas e grupos empobrecidos.