31 Mai 2022
Nós humanos interagimos com os animais desde as origens de nossa espécie. Essa relação nos trouxe benefícios, como poder cultivar melhor o campo ou nos alimentar de forma saudável, mas também prejuízos como as doenças zoonóticas, causadas por germes daninhos transportados pelos animais e que podem ser transmitidos às pessoas.
A reportagem é de Edgar Hans Cano e Lole Ferrara Romeo, publicada por Público, 30-05-2022. A tradução é do Cepat.
O último capítulo sobre tais patologias é protagonizado pela varíola dos macacos, uma zoonose viral endêmica na África que, há algumas semanas, acumula 257 casos fora daquele continente, 98 deles notificados na Espanha.
De acordo com um relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 75% das patologias infecciosas são de origem animal. Esses vírus, bactérias, parasitas e fungos causam tanto problemas leves como graves e podem até provocar a morte. Além disso, espalham-se por contato direto ou através dos alimentos, a água e o meio ambiente.
Já foram identificadas mais de 200 doenças zoonóticas, que aumentam e se propagam cada vez mais rápido. Felizmente, alguns delas podem ser inteiramente prevenidas por métodos como a vacinação.
Ao longo da história, essas patologias infecciosas influenciaram o ser humano e tudo parece indicar que a situação continuará em escala planetária. As primeiras civilizações do Oriente Médio, como Egito e Mesopotâmia, já documentavam a existência da raiva. Esta antiquíssima doença zoonótica é causada por um vírus da família Rhabdoviridae e se espalha através de mordidas ou arranhões de um animal infectado.
A forma mais eficaz de combatê-la é a vacinação dos cães domésticos, pois são os principais responsáveis por sua propagação. Atualmente, a raiva está concentrada em populações pobres e vulneráveis da Ásia e África.
Muito mais letal foi a Peste Negra, que provocou a morte de 50 milhões de pessoas e causou grande alarme entre a população do século XIV. A causa deste conhecido massacre foi a bactéria Yersinia pestis, que habita pequenos mamíferos e as pulgas que os parasitam.
Sua rápida propagação foi motivada pelo contato frequente com ratos e pulgas e pelas precárias condições de vida que existiam na Idade Média. Hoje, a peste continua afetando quase 3.000 pessoas em todo o mundo e é considerada endêmica em vários países como Madagascar, República Democrática do Congo e Peru.
Em 1986, foram detectados os primeiros casos de Encefalopatia Espongiforme Bovina (EEB) no Reino Unido. A doença da vaca louca consiste no acúmulo de proteína priônica no tecido nervoso e é transmitida pelo consumo de carne contaminada.
Segundo a Organização Mundial da Saúde Animal (OIE), o risco de infecção ocorre quando o alimento está contaminado por material orgânico derivado de outros herbívoros. Após obter dados conclusivos e identificar as causas da EEB, as vacas deixaram de ser alimentadas com a ração que causou este episódio zoonótico.
Prestes a entrar no novo milênio, em 1997, conhecemos a gripe aviária. Esta nova patologia de origem animal é provocada por subtipos do vírus Influenza A que afetam as aves, embora algumas de suas cepas possam, ocasionalmente, infectar humanos e outros mamíferos.
De 2004 a 2006, o vírus se espalhou das aves de capoeira da Ásia para a Europa, e a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou que a gripe aviária tinha potencial para se tornar uma pandemia. Embora ainda não haja mutação do vírus que facilite a transmissão entre as pessoas, seguem aparecendo notícias de infecções em humanos por meio de novas cepas.
Desde o final de 2019, a humanidade convive com um novo vírus, SARS-CoV-2, que significou a primeira grande pandemia do século XXI. Mais de dois anos após o primeiro surto, segue a investigação acerca de qual animal foi o responsável por esse vírus saltar para humanos e se houve um transmissor intermediário. O principal suspeito até agora? O morcego.
Deve-se acrescentar, em 2022, o surto do vírus da varíola dos macacos (monkeypox). Embora não seja a primeira vez que sai da África, agora já chegou a vários países da Europa. Afeta a população em geral e é transmitido em qualquer contexto que envolva contato próximo, não necessariamente por via sexual. O sequenciamento completo já foi alcançado.
As doenças zoonóticas não são fruto do acaso, mas muitos fatores coincidem por trás de sua proliferação, que influenciam tanto nos agentes patogênicos (germes) como em seus hospedeiros (humanos e animais).
As mudanças ou mutações que ambos sofrem para se adaptar ao ambiente são conhecidas como fatores biológicos. Em geral, quanto mais simples é um organismo, mais rapidamente muda, dando origem a diversas variantes de uma mesma espécie. Algo que estamos vendo de perto com o SARS-CoV-2.
Fatores físicos, como o clima ou a meteorologia, determinam a sobrevivência (ou multiplicação, se houver) do patógeno fora do hospedeiro original. Ou seja, esses elementos fornecem diversas oportunidades para que vírus, bactérias, parasitas e fungos possam ser transmitidos a outras espécies.
A alteração nos ecossistemas se inclui dentro dos fatores ecológicos, entre os quais também estão o desmatamento, os desastres naturais e a agricultura intensiva. Elisa Pérez, virologista veterinária do Centro de Pesquisa em Saúde Animal (INIA-CSIC), explica que “a perda da biodiversidade afeta gravemente o equilíbrio dos ecossistemas. Os sistemas predador-presa se veem alterados, algumas espécies sofrem com a falta de alimento e abrigo etc. Tudo isso enfraquece o sistema imunológico dos animais e aumenta o risco de que surjam novos vírus ou variantes”.
O especialista em estudos ecoepidemiológicos e professor da Universidade de Barcelona (UB), Jordi Serra, acrescenta: “Temos nos dedicado principalmente a combater a perda de biodiversidade mais visível e imediata, como os incêndios ou o desmatamento. O problema é que nos esquecemos de que as dinâmicas entre os microrganismos também mudam. Essas alterações não são imediatas e são mais difíceis de perceber, mas também possuem um papel importante nos episódios de zoonoses”.
Esse fenômeno se agravou com as viagens aéreas, permitindo que agentes infecciosos possam chegar a qualquer parte do mundo, em 24 horas. Foi o caso de vírus como o Ebola e o Nilo Ocidental.
Ricard Parés, presidente do Conselho do Colégio Oficial de Veterinários de Barcelona (CCVC), ilustra isso com a situação na Ucrânia: “Lá ainda há animais selvagens com raiva que podem transmiti-la. Uma vez conferida ajuda humanitária para essas pessoas, que é o principal, é preciso ver se trazem animais de estimação com elas, que podem reintroduzir doenças já controladas em territórios onde a vacinação não é obrigatória”.
Por outro lado, a exploração intensiva, seja agrícola, pecuária ou piscícola, é também outro elemento a levar em consideração. No mundo atual, tanto animais locais como espécies novas ou exóticas são explorados. Nesse sentido, destacam-se os mercados úmidos, terreno fértil para que surjam patologias como a gripe aviária e a covid-19.
Então, devemos identificar e monitorar uma série de animais potencialmente perigosos para a nossa saúde? “Seria um erro, comenta Parés, já que essas situações são imprevisíveis. Em escala doméstica, está se abrindo o leque do que é considerado um animal de estimação. Os porcos vietnamitas ou répteis como iguanas ou tartarugas são um bom exemplo. Por outro lado, no mundo selvagem também há mais interação por meio de atividades turísticas, como os safáris na África. Não se deve gerar alarme, simplesmente são fatores que devem ser levados em consideração”.
O comércio de animais exóticos, seja legal ou ilegal, também influencia em episódios de zoonoses. Ao deslocá-los para diferentes lugares de seu habitat, muitas vezes a milhares de quilômetros, as doenças infecciosas que podem conter viajam com eles.
Foi o que aconteceu em 2003 com o primeiro surto de varíola dos macacos registrado fora da África, nos Estados Unidos. As pessoas que contraíram a infecção foram infectadas por seus animais de estimação, alguns cães-da-pradaria. Na loja de animais, esses roedores tiveram contato com mamíferos procedentes de Gana, que lhes transmitiram o vírus.
Dado o grande número de fatores que influenciam no surgimento e propagação das zoonoses, não é de surpreender que as tentativas de proteger nossa saúde sejam cada vez mais multidisciplinares e colaborativas. Nesse sentido, nos últimos anos, ganhou força o conceito de One Health, que reconhece que a saúde das pessoas está estreitamente relacionada à dos animais, plantas e meio ambiente. É necessário que os profissionais dessas e de outras áreas se comuniquem e colaborem para enfrentar novas ameaças.
Adelaida Sarukhan, redatora científica sobre vírus emergentes no Instituto de Saúde Global de Barcelona (ISGlobal), explica que a saúde deve ser concebida em escala global, e não apenas a partir do global north (norte global) como até agora.
“Para construir uma saúde global, é preciso colaborar para gerar e compartilhar dados de qualidade. É essencial que sejam dedicados recursos adequados para ajudar os países de renda média e baixa a produzir e analisar esses dados. A outra pedra angular - continua Sarukhan - é fortalecer os sistemas de saúde, sobretudo primários. A pandemia nos mostrou como um problema de saúde em um canto do planeta é um problema comunitário”.
O trabalho conjunto pode ajudar a prever o risco de infecção humana. Sarukhan comenta que a ação mais importante para identificar um surto zoonótico e evitar epidemias ou pandemias é a vigilância.
“Acredita-se que existam cerca de 300.000 vírus desconhecidos, só em mamíferos, suscetíveis de saltar para humanos. Identificá-los e investigá-los pode custar de um a cinco bilhões de dólares, que não é nada comparado ao custo humano, social e econômico de uma pandemia”, acrescenta.
“Nós, cidadãos, podemos ajudar com coisas muito simples: não dar comida para animais silvestres, como javalis, que podem ser portadores da hepatite E, ou evitar deixar lixo fora dos contêineres, pois isso os atrai. Para impedir a proliferação de mosquitos, que podem ser transmissores, devemos procurar não ter recipientes com água em casa. E, por último, mas não menos importante, lavar as mãos”, defende Jordi Serra, pesquisador do IRBio.
Quando as populações humanas crescem e se expandem, as pessoas aumentam seu contato com animais e doenças novas. “Precisamos de cidadãos informados e conscientes de que suas ações cotidianas têm um impacto na natureza e na saúde”, conclui Elisa Pérez.
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Zoonose: a chave por trás dos últimos alertas sanitários - Instituto Humanitas Unisinos - IHU