Vamos descobrir a Maria que emerge dos Evangelhos, “uma mulher livre e forte”

Foto: Wikimedia Commons

07 Mai 2022

 

"É importante ressignificar sua figura se quisermos que mais pessoas encontrem nela uma referência válida para suas vidas, principalmente as mulheres mais jovens."

 

"Maria foi identificada com o que uma mulher deve ser em uma sociedade patriarcal (não é a imagem que os textos bíblicos nos dão), mas ela fez mal ao reafirmar essa imagem para as mulheres", escreve Consuelo Vélez, teóloga colombiana, em artigo publicado por Religión Digital, 06-05-2022.

 

Eis o artigo.

 

A América Latina tem se caracterizado como um continente mariano. Em suas diversas dedicações, as pessoas de cada país têm mantido uma presença próxima e confiante de Maria e algumas, embora não participem de outros espaços eclesiais, visitam os santuários marianos porque sabem que ali podem expressar suas necessidades e confiar em uma resposta positiva em relação a elas. É por isso que o mês de maio é reconhecido, em alguns ambientes, como um mês mariano que reúne e anima a devoção a Maria.

 

No entanto, é importante ressignificar sua figura se quisermos que mais pessoas encontrem nela uma referência válida para suas vidas, principalmente as mulheres mais jovens. Isso é necessário por vários motivos, entre eles, porque os atuais entendimentos bíblicos e teológicos oferecem uma melhor abordagem da figura de Maria, mas também porque as sociedades estão mudando e os estereótipos do que é ser mulher, estão indo embora, transformando-se mais rápido do que pensamos. Nesse sentido, Maria foi identificada com o que uma mulher deveria ser em uma sociedade patriarcal (não é a imagem que os textos bíblicos nos dão), mas isso fez mal ao reafirmar essa imagem para as mulheres.

 

A Virgem em Prece por Sassoferrato (Fonte: Wikimédia Commons)

 

As sociedades patriarcais são aquelas em que o masculino tem preeminência porque a razão e a força residem nos homens e o feminino é o complemento, atribuindo intuição e delicadeza. Esta descrição simples (na realidade é mais complexa) ajuda-nos a explicar que o feminino, nesta distribuição de papéis, é tido como secundário, menos valioso, subordinado e é por isso que as mulheres têm tantas portas fechadas há séculos e, mesmo hoje, há muitos espaços impenetráveis para elas, além da violência de todos os tipos que sofrem, inclusive o feminicídio.

 

Voltemos à figura de Maria segundo os textos bíblicos. No texto da anunciação que Lucas nos conta (1, 26-38), a pregação mais generalizada põe força na aceitação por parte de Maria do plano de Deus. E isso é muito importante e decisivo. Mas o que o texto também diz sobre Maria é esquecido. Ela pergunta: como pode ser isso se eu não conheço um homem? E desta forma quebra a lógica das meninas da época para quem o casamento foi organizado sem que elas pudessem intervir ou ter qualquer dúvida sobre o destino que lhes estava marcado. Mas o evangelista mostra-nos como uma jovem muito alerta, assertiva e disposta a compreender bem o que lhe é proposto. Quero dizer, em Maria podemos louvar a sua disponibilidade a Deus, mas também a sua capacidade de fazer perguntas para responder livremente. Se também evidenciássemos essa atitude de Maria, possivelmente tantas mulheres não seriam tão submissas, tão satisfeitas, tão resignadas.

 

Muito interessante também é o conhecido texto do Magnificat (Lc 1, 46-56), porque se nos sermões tanto se aduz ao suposto "silêncio de Maria" (talvez aludindo àquele texto que "Maria guardava tudo em seu coração", Lc 2, 51), o Magnificat mostra-a como uma mulher capaz de ter voz, mas ainda mais, de levantar a voz. O que ele diz não é irrelevante, mas bastante profético e desafiador: a misericórdia de Deus é infinita, mas nessa misericórdia "Ele derruba os poderosos de seus tronos e exalta os humildes, enche de bens os famintos e despede vazios os ricos". Nada de resignação diante da situação social que se vive em seu tempo. Ao contrário, ele profetiza que a vontade de Deus exige uma mudança e, para alcançá-la, a opção é ficar do lado dos mais pobres.

 

Por sua vez, o evangelista João nos fala das bodas de Caná (2, 1-12). Nos sermões, muitas vezes a ênfase é colocada no serviço de Maria, em não fazer mal ao casal, em ter a intuição de atender às necessidades, etc. Mas, na realidade, o que interessa neste texto é a atitude de discípula que Maria mostra, convidando outros a tê-la também: “Faz o que Ele te disser”. A partir de então, Jesus fará sinais através dos quais os discípulos poderão crer em Jesus enquanto chega a hora em que Ele se manifestará plenamente a eles e ali, aos pés da cruz (Jo 19, 25-27), Maria começará a nova comunidade de discípulos.

 

 

Neste sentido de discipulado, Maria é modelo para homens e mulheres e não só para mulheres. Este é outro aspecto que precisa ser promovido para não cair naquela divisão que a sociedade patriarcal projetou em Maria - modelo para as mulheres - e, a partir daí, nos dizem para não aspirarmos a mais participação na Igreja, porque já tem em Maria a plenitude de ser mulher. Isto não é assim. Nela temos a plenitude do discipulado, como já dissemos, para homens e mulheres. Os traços femininos ou masculinos que a sociedade patriarcal determina são mais culturais do que essenciais e os jovens de hoje não estão aceitando esses estereótipos, reivindicando uma humanidade mais na reciprocidade do que na complementaridade, mais na plenitude pessoal do que na divisão de papéis, mais na colaboração e cooperação do que na manutenção de uma assimetria de gênero.

 

Seria muito bom que neste mês descobríssemos a Maria que emerge dos Evangelhos que, como dizia o Documento de Aparecida, aparece como uma “mulher livre e forte, conscientemente orientada para o verdadeiro seguimento de Cristo. Ela viveu toda a peregrinação da fé como mãe de Cristo e depois dos discípulos, sem ser poupada da incompreensão e da busca constante do projeto do Pai” (n. 266); “Maria, Mãe da Igreja, além de modelo e paradigma de humanidade, é arquiteta da comunhão” (n. 268), “Maria é a grande missionária, continuadora da missão de seu Filho e formadora de missionários ( nº 269).

 

Em suma, a transformação da sociedade patriarcal não depende apenas de mobilizações sociais, mas também do resgate da figura de Maria que rompe com os estereótipos de gênero e nos impulsiona a construir aquela igualdade fundamental entre homens e mulheres, típica do ser cristão porque “não há nem judeu nem grego; nem escravo nem livre; nem homem nem mulher, porque todos sois um em Cristo Jesus” (Gl 3, 28).

 

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