28 Abril 2022
A doutora em Ciências Sociais Brenda Carranza vive há décadas no Brasil e dedicou grande parte da sua vida acadêmica ao estudo da religião, do fundamentalismo cristão e sua relação com a política. É professora e pesquisadora do Departamento de Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas e coordenadora do Laboratório de Antropologia da Religião dessa mesma universidade. Em conversa com Brecha, descreve o processo histórico do avanço neopentecostal na vida pública brasileira.
A entrevista é de Marcelo Aguilar, publicada por Brecha, 21-04-2022. A tradução é do Cepat.
Como surgiu o pentecostalismo e como chega ao Brasil?
Para entender o pentecostalismo no Brasil, é preciso primeiro entender que ele faz parte de um fenômeno internacional, que nasce nos Estados Unidos dentro do protestantismo, com forte apelo à piedade e à devoção. No final do século XIX, a esta preocupação por piedade se somava a preocupação missionária, de levar o fervor religioso a todas as partes do mundo e renovar os protestantes por dentro.
Quando falamos do pentecostalismo como um movimento religioso que tem como base o carisma – que busca viver os dons do Espírito Santo, como falar em línguas, curar doenças e fazer profecias segundo as imagens bíblicas originais –, falamos de algo que surgiu no século XIX e início do século XX, principalmente em comunidades étnicas segregadas dos Estados Unidos. No oeste do país, tem uma influência negra significativa. Ali começa um movimento de expansão, um forte impulso de anúncio a todos os países, com a ideia de ir por todo o mundo, afirmando a experiência religiosa pentecostal.
Este movimento chegou ao Brasil em 1910, instalou-se no norte e gradualmente se espalhou pelo país, com núcleos muito fortes no sudeste e no sul. Uma ideia que pode ajudar a entender esse fenômeno religioso espiritual, que mais tarde assume formas políticas, é que em suas origens visa alcançar uma renovação espiritual. Quando se afirma como movimento, pretende renovar o cristianismo e mudar os costumes e a forma como as pessoas se identificam.
No início há uma clara influência anticatólica, iconoclasta, na qual o protestantismo se afirma em oposição à Igreja Católica, o que no pentecostalismo brasileiro permeia os três primeiros terços do século XX, até 1980, mais ou menos. A essa altura, os pentecostais tornam-se facilmente identificáveis pelo público brasileiro. Andam com a Bíblia debaixo do braço, promovem uma moral firme, procuram constantemente converter os outros e – algo fundamental – promovem uma teologia apolítica, sem qualquer relação com a política partidária.
Paradoxalmente, hoje ocupam amplos espaços políticos no país. Houve uma mudança na doutrina?
Ao longo de todo o século XX, o pentecostalismo acompanha as mudanças sociais que ocorrem no mundo. Nas décadas de 1960 e 1970 houve mudanças muito fortes nos Estados Unidos. Eles promovem o movimento pelos direitos civis, o antirracismo e o feminismo, o que lhe confere, à época, uma exuberância contracultural. Os setores evangélicos conservadores veem um declínio na participação religiosa dos fiéis naquela época e começam a ler a contracultura como um perigo para a nação protestante e branca. Contra isso surge a chamada teologia do domínio ou dominionismo, que tem duas irmãs: a teologia da prosperidade e a teologia da batalha espiritual.
Para a teologia do domínio, os cristãos devem sair do apoliticismo e ocupar ativamente os espaços políticos, porque se não o fizerem, a contracultura, o comunismo e tudo o que atenta contra a religião se instalará no poder. Ao mesmo tempo, junto com o avanço da sociedade de consumo e dos meios de comunicação, emerge a teologia da prosperidade: não é tão ruim desfrutar do consumo; os costumes não podem ser tão rígidos em questões econômicas e comerciais; se Deus nos dá a possibilidade de viver bem, por que não fazê-lo?
Por outro lado, a ideia da batalha espiritual traz outro componente a essas concepções: os crentes devem enfrentar e perseguir todos aqueles que são contra a religião, todos aqueles que podem representar uma ameaça aos princípios cristãos. Essas teologias, que nascem nos anos setenta e oitenta, são implantadas naturalmente na direita estadunidense e seus líderes começam a ser rapidamente abraçados pelo Partido Republicano. De lá chegam missionários para a América Latina, com a ideia de que o pentecostalismo local deve ocupar espaços na política, porque, de alguma forma, acreditam, o cristianismo está em perigo.
Em artigo publicado no livro ‘Novo ativismo político no Brasil: os evangélicos do século XXI’, você afirma que no Brasil o clima de tensão social tem contribuído para a consolidação de um novo ator político: o evangélico-pentecostal, alinhado com a direita brasileira, o que levou a uma nova relação entre religião e política. Em que consiste essa nova relação?
Pouco a pouco, nas últimas décadas, começa a ser trabalhada a possibilidade de cristãos pentecostais ocuparem espaços políticos como tais. Em 1977, foi fundada no Brasil a Igreja Universal do Reino de Deus, cujo bispo, o pastor Edir Macedo, alimenta-se tanto da teologia da prosperidade quanto da ideia da batalha espiritual. Macedo escolhe dois inimigos: as religiões afro-brasileiras e todos os políticos que não lhe permitem o acesso ao poder. É então que a teologia do domínio se instala fortemente no país por meio de uma nova corrente, denominada neopentecostalismo, fortemente dedicada a evangelizar através dos meios de comunicação, a ocupar espaços político-partidários e a partir daí travar a batalha espiritual, dentro de um contexto em que tudo o que é minoria é visto como inimigo.
Em 2002, quando [Luiz Inácio] Lula da Silva venceu a eleição pela primeira vez, já havia 20 anos de consolidação dos grupos religiosos pentecostais na política, grupos que se tornaram centrais nas disputas eleitorais. Naquele momento, já têm um grande know-how de como ganhar uma eleição, por isso conquistam muitas cadeiras nos Congressos, estadual, municipal e federal. Entre 1990 e 2000, esse neopentecostalismo cria uma rede de articulação que lhe permite ter um conhecimento fantástico do marketing político e se constitui como uma base eleitoral que os partidos não podem mais desprezar. Eles podem gostar mais ou menos, mas não ignorá-lo.
Este processo ocorre, com maior ou menor intensidade, em praticamente toda a América Latina. Mas suas grandes redes políticas multinacionais estão sediadas no Brasil, porque é onde há mais dinheiro e mais articulação com o secular. A Igreja Universal do Reino de Deus e a Assembleia de Deus, duas grandes representantes do pentecostalismo no país, tornaram-se fortes pilares políticos no Brasil e quase têm o domínio nas eleições. Em 2003, Lula é eleito com forte apoio evangélico, negociando com Macedo. Nesse momento, os evangélicos, com pentecostais e neopentecostais à frente, já se articulam com os políticos como um ator consolidado.
Como essa articulação sobrevive durante os governos petistas e por que os neopentecostais vão para a direita?
O radicalismo religioso encontra-se com o radicalismo político. O que aconteceu no cristianismo latino-americano nas décadas de 1970, 1980 e 1990 na forma de um cristianismo progressista, com recorte ideológico de esquerda, causa desconforto no pentecostalismo, pois levanta algumas bandeiras que vão contra costumes e princípios que eles consideram imutáveis. Algo semelhante acontece no Brasil. Assim como os evangélicos estão se fortalecendo por meio de sua bancada política, composta principalmente por pentecostais e neopentecostais, durante os governos petistas [2003-2016] também se fortalecem as demandas das minorias, que passam a ter representação nas comissões do Congresso e, paralelamente, a promover a discussão de sua agenda na sociedade toda.
Isso significa que há debates muito fortes dentro da política institucional. Em 2010, Dilma Rousseff chegou ao governo prometendo aos grupos evangélicos que não discutiria a descriminalização do aborto durante seu mandato. A mesma coisa acontece em 2014. Paralelamente, a partir de 2011, os grupos evangélicos e seu programa de conservadorismo moral são fortalecidos institucionalmente. Nesse momento, o PT tem que articular muitas questões com muitos atores e as questões que vão contra a agenda dos grupos evangélicos são deixadas de lado desde que se acalmem e apoiem o governo para avançar em outras frentes. Assim se fortalece a influência do programa religioso no aparato jurídico e dentro do próprio governo. A agenda moral ganha cada vez mais força nos cálculos de apoio político dos diferentes partidos. Em 2016, quando chega o impeachment, na justificativa do voto naquela sessão já fica claro que a agenda pró-família e moralista está disseminada e fortemente implantada em quase todos os setores do Congresso.
Gradualmente, os neopentecostais vão retirando seu apoio político da esquerda e se fortalece o apoio à direita. Em 2018, em uma eleição polarizada entre direita e esquerda, e entre progressistas e conservadores dentro do campo religioso, isso ganha grande relevância. Podemos pensar em uma nova fase do pentecostalismo e do setor cristão em geral, já que também aparecem setores mais radicais do catolicismo que passam a trabalhar junto com os neopentecostais em torno da ideia de uma nação cristã. Essa ideia é reforçada no primeiro discurso de Jair Bolsonaro como presidente: “Somos um país cristão”. Repete o mesmo slogan na ONU [Organização das Nações Unidas] em 2019 e 2020, e em 2021 com um acréscimo: “Somos um país conservador”.
Recentemente, o Ministro da Educação foi forçado a renunciar devido a um escândalo envolvendo tráfico de influência por parte de pastores neopentecostais. Em que medida essa corrente penetrou no quadro institucional?
Devemos ter memória histórica. O lobby religioso responde a modelos históricos de relações com o poder. O modelo católico sempre foi um modelo cara a cara, em que os políticos vão à missa, depois tomam café com os bispos e a partir daí fazem negócios. São os políticos que vão à sacristia. Quando entra em cena o modelo pentecostal, as estratégias e os mecanismos são os do jogo político democrático. Os pastores e os fiéis se apresentam às eleições, vencem-nas, vão às comissões parlamentares e entram na dinâmica interna do Poder Legislativo. E aí o lobby político é típico do próprio modo de funcionamento dos parlamentos e das instituições como os conhecemos: o toma lá, dá cá, a troca de favores. No final das contas, em trocas desse tipo, que pouco ou nada têm a ver com direitos ou com os mecanismos democráticos de representação, cozinham-se muitas coisas.
Mas isso não é novo, sempre existiu. Em 2006, durante o segundo mandato de Lula, foi realizada uma grande operação policial, chamada Sanguessuga, que desmantelou uma máfia que desviava dinheiro público destinado à compra de ambulâncias. Vários pastores que têm uma dupla identidade estão envolvidos: são representantes políticos e, ao mesmo tempo, representantes religiosos. Mais de 15 anos depois, o que houve foi uma evolução na forma como o setor evangélico permeia os Poderes Executivo e Judiciário, e agora consegue ter influência nos três poderes. A partir de 2018, vemos no primeiro escalão do governo pessoas que se declaram evangélicas e com vínculos orgânicos explícitos com suas igrejas. São os casos, por exemplo, da ministra Damares Alves e do ministro do Supremo Tribunal Federal [STF], André Mendonça, oriundo da Associação Nacional de Juristas Evangélicos.
Na época da sua candidatura ao STF, Bolsonaro comemorou que se tratava de um ministro “terrivelmente evangélico”.
Sim, tão terrivelmente evangélico que agora, diante do processo envolvendo o ex-policial militar e atual deputado federal bolsonarista Daniel Silveira [por ameaçar autoridades, tentar impedir o exercício do Poder Judiciário e conclamar ao golpe], o bolsonarismo pede que nove dos 11 ministros do STF sejam exonerados e que fiquem apenas o ministro Mendonça e o ministro Kássio Nunes Marques, também nomeado por Bolsonaro, para julgar Silveira. Ao mesmo tempo, a bancada evangélica convocou para rezar pelo Silveira.
Bolsonaro está o tempo todo dando sinais para esse setor. Diz aos evangélicos que não os abandonará, que seus inimigos não o estão deixando fazer muita coisa, mas que sejam pacientes com ele. Apoia sua agenda nas comissões parlamentares, coloca seus representantes à frente dos ministérios e cumpre suas promessas. É como dizer a eles: “Em 2022, não esqueçam que mantive a agenda moral em alta e impedi a qualquer preço avanços nas agendas de gênero e no debate sobre o aborto”. Há um casamento perfeito entre a política conservadora e a agenda moral religiosa.
Diante dessa estratégia de Bolsonaro, que tende a aproximá-lo dos evangélicos, como ler as recentes declarações de Lula sobre o aborto como uma questão de saúde pública e como um direito?
É preciso ter em mente que o setor evangélico não é homogêneo. A plataforma de Bolsonaro agrada certos setores, mas não abrange todos. Agora, dentro do evangelismo e dos setores religiosos em geral, alguns dos quais também podem ser de esquerda, o tema do aborto é muito sensível, muito mais do que os direitos das minorias, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a homossexualidade. Que o digam os analistas, mas acho que pode ser uma afirmação desnecessária diante de um fenômeno maior: a ascensão da extrema direita no mundo. Este é o país das tempestades, então isso faz muito barulho e atinge fortemente os conservadores. De qualquer forma, não acho que seja a discussão que definirá a eleição.
Qual será, então?
Eu diria que o voto religioso sempre tende a ser conservador. Mas não podemos nos guiar apenas por movimentos institucionais: quem apoia quem, o que o Congresso apoia, o que a bancada evangélica apoia. Essa é uma parte, mas temos que estar muito atentos ao que se discute nas bases religiosas, nas quais há uma polarização muito grande. O voto religioso pode ser decisivo e estar relacionado a uma ideia de moralidade, mas acho que será muito mais importante ver como o ódio, o medo e as ameaças são trabalhados.
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Qual o papel do pentecostalismo político contra as religiões de matriz africana, que recentemente foram vítimas de vários ataques?
Esses grupos sofrem com um racismo religioso muito forte e são o principal alvo dos ataques evangélicos. Eles são atacados diretamente em seus terreiros. Isso é visto como parte da batalha espiritual sobre a qual falávamos anteriormente. Os agressores se justificam através de uma visão particular do demônio, de quem é o demônio, pela qual as religiões de origem africana são vistas como inimigas do cristianismo que merecem ser perseguidas e punidas. São vítimas do fanatismo e da intolerância, e não são um grupo homogêneo federalizado que se representa a si mesmo, como fazem os evangélicos. Não se pode dizer que são em bloco da esquerda, nem se pode dizer que os fiéis evangélicos são em bloco da direita. O que há, entre estes últimos, são grupos de representação e poder, que são os mais visíveis na mídia.
O importante na eleição é o que acontece na base e vai depender de qual corda se tocar. Aí se verá se o discurso da ameaça, da violência e do ódio surte efeito. Os grupos evangélicos e católicos conservadores são os que gritam mais alto neste momento, e é o que mais interessa divulgar. Atrás deles há muito dinheiro e representação política. Mas não são os únicos que reinam no campo da espiritualidade brasileira. Provocam muita resistência. E este é o país das surpresas. A única coisa que já sabemos é que a eleição será violenta. Esperemos que não esgarce o tecido social.
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O casamento perfeito. A ligação entre evangelismo e política. Entrevista com Brenda Carranza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU