27 Abril 2022
“Há alguns dias, eu estava em um avião viajando pelos Estados Unidos e a mulher do outro lado do corredor estava vendo um filme terrivelmente violento, onde um grande número de jovens era apunhalado até a morte e tive que me esforçar para não olhar”, comenta o historiador britânico Niall Ferguson. “Meus olhos pareciam se direcionar sozinhos para aquele absurdo derramamento de sangue e me incomodou porque eu estava trabalhando em algo sério”, lembra para exemplificar o fascínio que, segundo ele, os seres humanos têm pelos desastres e a violência. Um assunto que abordou em seu último livro (Desastre, 2022), onde analisa como a humanidade enfrentou catástrofes ao longo da história e que foi publicado logo após o início da pandemia.
Segundo ele, o mais inquietante é que “um desastre pode levar a outro de forma surpreendente. “Não soa muito animador, mas é isso que estamos enfrentando”, diz de seu escritório na Califórnia, onde é pesquisador sênior do Instituto Hoover, da Universidade Stanford, após uma carreira acadêmica que o levou da Oxford à Escola de Economia e Ciência Política de Londres e à Universidade Harvard e o tornou um dos mais reconhecidos historiadores de sua geração.
Hoje, a humanidade enfrenta simultaneamente os efeitos de uma pandemia, uma guerra na Europa e um preocupante cenário inflacionário ao qual, afirma, o mundo terá de se acostumar por um longo tempo. “No final do livro, digo que não teremos um mundo mais pacífico após a pandemia”, lembra durante a conversa com La Tercera. E parece ter acertado.
A entrevista é de Juan Paulo Iglesias, publicada por La Tercera, 24-04-2022. A tradução é do Cepat.
Em seu último trabalho, aborda os efeitos dos desastres ao longo da história. Considera que as catástrofes podem definir a história da humanidade?
A história é um desastre atrás do outro e, apesar disso, consegue-se progredir tanto em âmbitos materiais como em outros. O fato de ver a história como uma continuação de desastres não impediu o progresso da espécie. E isso é importante, porque nessas circunstâncias não pode haver uma história cíclica, porque os desastres são muito imprevisíveis, arbitrários.
Quem poderia saber que haveria uma grande guerra na Europa este ano? Quem poderia saber que haveria uma pandemia em 2020? Não se pode prever essas coisas e a maioria das pessoas que se dedicam a fazer prognósticos tende a superestimar e, ao final, tem sorte. Meus amigos que previam uma crise financeira todos os anos, a partir de 2001, enfim, acertaram.
Esse é um ponto importante sobre a forma como a história funciona, e é por isso que não podemos subestimar a importância dos desastres, independente do mal que impliquem. A Segunda Guerra Mundial foi muito ruim, mas não foi o fim do mundo, nem o fim da humanidade. Em muitos sentidos, a economia mundial se comportou até melhor nos anos 1950 do que antes.
A pandemia foi o último desastre antes da guerra na Ucrânia. Até que ponto isso mudou o mundo?
Penso que a pandemia foi transformadora em alguns aspectos e em outros não. É transformadora em certas atividades que dávamos como certas todos os dias, como ir trabalhar no escritório ou viajar regularmente de avião. Em um nível assombroso, essas coisas mudaram e não tenho certeza se voltarão a ser como antes.
Contudo, as coisas que não mudaram são claramente nossos comportamentos sociais. Estou impressionado com a rapidez em que as pessoas voltaram ao comportamento prévio à pandemia, como apertar as mãos, com abraços, festas. É muito surpreendente como tudo isso voltou à normalidade com o vírus ainda presente.
É possível estabelecer paralelos entre a pandemia e outras pragas como, por exemplo, a Peste Negra, no final da Idade Média?
Foi sem dúvida um desastre muito maior e nós, como espécie, tínhamos muito menos defesas. São ordens de grandeza diferentes. No entanto, penso que existem algumas semelhanças interessantes. Por exemplo, alguns dos comportamentos que vimos em 2020 têm um tipo de caráter religioso.
Fiquei impressionado com o quanto os protestos em torno do Black Lives Matter, após o assassinato de George Floyd, trazia à memória as penitências e as flagelações das ordens religiosas de meados do século XIV. Havia a sensação de que esses protestos não eram o que pareciam. Superficialmente, era um levante e um protesto contra o racismo policial. Mas acredito que era mais profundo.
No contexto da pandemia, houve uma grande necessidade de sair, de expiar pecados. Muitos dos protestos nos Estados Unidos tiveram um caráter religioso. Foi muito fascinante assistir. Acho que havia algo medieval no que aconteceu. Em meio ao pânico de uma peste, as pessoas buscam alguém para culpar e muitos dos episódios de violência que vimos no final de 2020, com intensas divisões políticas, me lembraram como durante a Peste Negra houve revoltas contra os judeus.
Penso que a atmosfera de uma praga é muito estressante psicologicamente. Não quero exagerar nos paralelos, mas é muito chamativo para mim comparar o que aconteceu em meados de 2020 com o que aconteceu no século XIV. Penso que é iluminador. E a outra coisa que eu diria é que a Peste Negra não parou as guerras na Europa. A Guerra dos Cem Anos entre a Inglaterra e a França continuou, independente das múltiplas ondas da Peste. Uma das coisas que digo, no final do livro, é que não teremos um mundo pacífico após a pandemia, ao contrário. Um desastre pode levar a outro de forma surpreendente.
E hoje estamos justamente enfrentando um novo desastre, a guerra na Ucrânia. Em que medida a pandemia pode estar relacionada a isso e o que você considera que mudará mais o mundo, a guerra ou a pandemia?
Não tenho certeza de que seja possível dizer que há uma relação causal entre a pandemia e a guerra. Tanto a Rússia como a Ucrânia tiveram altos níveis de mortalidade pela Covid, mas não acredito que isso tenha algo a ver com a eclosão da guerra, que Putin estava claramente preparando desde o início do ano passado. Mas, por outro lado, a coincidência entre uma praga e uma guerra soa familiar, como na Primeira Guerra Mundial, quando o fim do conflito coincidiu com a Gripe Espanhola.
Também mencionei a Peste Negra e a Guerra dos Cem Anos. É a curiosa maneira como os cavalos do Apocalipse convergem. Penso que estamos em um período que os historiadores podem facilmente reconhecer, quando há desastres simultâneos e interligados. Isso é muito interessante pela maneira como os abordamos.
A guerra acabou com a pandemia psicologicamente. Alguns ironicamente sugerem que Putin deveria receber o Prêmio Nobel de Medicina por ter acabado com a Covid, criando uma nova notícia, maior. Mas acredito que, na verdade, a Covid está longe de ter sido superada, observemos a situação em Xangai.
É difícil para nós pensar em dois desastres ao mesmo tempo. Com efeito, temos dois em andamento e talvez mais alguns por vir. A próxima fase dessa cascata é o choque inflacionário nos países desenvolvidos que dependem da Rússia e da Ucrânia para seu trigo ou fertilizante. E isso terá um poderoso efeito negativo nos preços e nos fornecimentos de alimentos, especialmente na África. Podemos ter uma fome ao virar da esquina, mesmo antes do término da guerra e antes do fim da pandemia.
Não soa muito animador, mas essa é a coisa estranha de ter simultaneamente uma pandemia que matou milhões de pessoas, uma guerra que pode matar dezenas ou talvez centenas de milhares de pessoas e uma fome que pode causar milhões de mortes. E apesar disso, a guerra vai continuar. Isso é o que às vezes é difícil compreender, estamos fascinados em ver os desastres, sejam as vítimas de Bucha ou as pessoas em Xangai fechadas em seus apartamentos.
Você falou sobre a inflação. Avalia que teremos que nos acostumar a conviver com ela por um longo tempo ou será algo transitório? Estamos diante de um fenômeno semelhante ao dos anos 1970?
Claramente, os banqueiros centrais que no ano passado disseram que a inflação seria transitória, hoje parecem bem atrapalhados. Eu fui um dos que concordaram com Larry Summers, em fevereiro do ano passado, no sentido de que um grande erro político havia sido cometido, pois no contexto de alteração nos fornecimentos, o Federal Reserve e o governo Biden continuaram injetando combustível monetário e fiscal no lado da demanda, mesmo quando as vacinas já estavam controlando a pandemia.
Na verdade, nunca tive muitas dúvidas de que haveria inflação alta, a mais alta em 40 anos. Agora, ouve-se o mesmo tipo de argumento, dizendo: bom, dentro de cinco ou quatro anos voltará a ficar baixa. Penso que isso revela a fragilidade do pensamento econômico que não é suficientemente histórico.
Nos anos 1970, houve erros de políticas que se iniciaram no final dos anos 1960, com Lyndon Johnson, e continuaram com Nixon, aos quais se acrescentou o choque de 1973 e depois o outro choque, em 1979. Dois golpes fortes no preço do petróleo. Além disso, houve uma alta nos preços dos alimentos, antes mesmo do aumento no preço do petróleo. A inflação veio desses dois lados, oferta e demanda, nos anos 1970. E as expectativas de inflação se ajustaram para cima de uma forma muito difícil de parar.
Tudo isso está acontecendo novamente. Há diferenças, sem dúvida, diferenças demográficas, diferenças na organização da força de trabalho e nesse tipo de coisas. Mas, por outro lado, a carga da dívida fiscal é maior do que era nos anos 1970. É preciso ter cuidado ao dizer: bom, não será tão ruim como nos anos 1970. Penso que globalmente será muito parecido com os anos 1970, mesmo que a situação nos Estados Unidos não seja tão ruim como naquela época.
Concorda que o dilema dos banqueiros centrais, com inflação alta e crescimento baixo, é complexo? Podem estar reagindo de forma exagerada?
Concordo com Larry Summers que há 50% de probabilidades de uma recessão nos próximos dois anos, quando o Fed finalmente perceber que a inflação saiu do controle. Se você quer ter as expectativas de inflação sob controle, precisa esfriar a economia, mas ninguém quer fazer isso politicamente e, então, acaba não sendo feito o suficiente e o resultado é que o problema persiste e se torna pior.
Minha sensação é que o problema da inflação vai permanecer conosco ao menos até o próximo ano e provavelmente para além. Não há garantias de que esta guerra na Ucrânia terminará em breve, pode levar muito tempo. E há outros problemas que ainda não se manifestaram e que podem causar mais problemas geopolíticos, por exemplo, no Oriente Médio ou no Extremo Oriente.
Além disso, penso que a economia política da inflação é um problema. Os Bancos Centrais não são tão autônomos como gostariam de acreditar, quando as eleições se aproximam. Penso que o problema da inflação vai persistir e se tornará uma das marcas desta década.
Durante a pandemia, assistimos a um crescente protagonismo do Estado na economia, com forte apoio monetário para manter o sistema funcionando. Alguns chegaram a dizer que a pandemia pode ser um golpe mortal nas lógicas do neoliberalismo. Como enxerga esse fenômeno?
Penso que o retrocesso do Estado, na verdade, nunca foi tal, mesmo nos anos 1980. Embora Reagan, Thatcher e, claro, Pinochet buscaram chegar a um bom acordo para acabar com o corporativismo do pós-guerra, as instituições sociais persistiram. O Estado de Bem-Estar se manteve e embora as receitas tributárias tenham caído, os gastos do governo não caíram no mesmo patamar. Aí temos o problema do déficit que se tornou crônico nos Estados Unidos.
Nunca acreditei que, então, o neoliberalismo venceu. Se você olha apenas os números, o Estado não retrocedeu tanto. Essa é uma das ironias dos anos 1980. Conseguiu-se muito menos na realidade do que no discurso. O processo pelo qual o Estado voltou a crescer teve início nos anos 1990 e 2000, antes mesmo da crise financeira. E depois, com a crise financeira, você tem essa enorme expansão do papel do Estado no sistema financeiro e uma grande expansão da dívida pública.
Penso que a pandemia chegou ao final de uma crise que já existia, que desafiava a noção de um governo neoliberal com baixa intervenção e baixa regulação. Hoje, o consenso parece ser o de uma maior intervenção do Estado, nos dois lados do espectro político. É cômico o quanto a esquerda fala em neoliberalismo, como se tivesse vencido, mas, na verdade, a vitória foi muito limitada.
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“A inflação vai persistir e se tornará uma das marcas desta década”. Entrevista com Niall Ferguson - Instituto Humanitas Unisinos - IHU