O professor Silvano Tagliagambe, estudioso do pensamento russo na virada dos últimos dois séculos, é o autor do livro “Dal caos al cosmo. Introduzione al cosmismo russo” [Do caos ao cosmos. Introdução ao cosmismo russo] (Ed. Sandro Teti, 2021).
Capa do livro: Do caos ao cosmos. (Foto: divulgação)
A reportagem é de Giordano Cavallari e Marco Bernardoni, publicada em Settimana News, 24-06-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Professor, você viveu na Rússia?
Sim, no passado, estudei em Moscou por um ano e meio. Isso me ajudou a captar melhor algumas características do pensamento russo. Por exemplo, a prevalência da dimensão do espaço sobre o tempo – no pensamento russo – vem da vivência física da geografia da terra russa. A Rússia é uma vastíssima planície sem relevos montanhosos significativos em seu interior. Ela se estende do Mar Branco ao Mar Negro, do Báltico ao Cáspio, sem barreiras naturais. As características físicas do território convidam à viagem, ao deslocamento, com facilidade. E, de fato, a vivência do “homem russo” – assim como o seu pensamento – é caracterizada por uma espécie de “nomadismo”, ou seja, de pulsão à viagem em grandes espaços. Daí aquela propensão ao “voo” que eu entrevi no livro. O voo tornou-se, portanto, a partir dos anos 1900, o modo de os russos habitarem a sua própria terra, enquanto a “conquista do espaço” – aquilo que eu defini como “cosmismo”, entendido como reflexão de tipo cósmico global – tornou-se o seu desenvolvimento instintivo, como aparece claramente em autores como Tsiolkovski.
Na introdução ao seu texto “Do caos ao cosmos”, você antecipa outra característica importante do pensamento russo, pelo menos nos autores apresentados: o olhar integral.
O pensamento dos autores russos com os quais lidei – com a sua teologia intrínseca – é orientado para a completude do humano. Reitere-se: à completude ou inteireza, não à perfeição. A completude – cel’nost –, segundo esses autores, é uma aspiração própria da natureza humana, como natureza capaz de se elevar em virtude de uma graça elevante ou, melhor – em termos mais próximos aos próprios autores –, por efeito da “divinização” da natureza humana até à sua maior semelhança com a natureza divina. Essa completude – mediante a criatividade recebida e transmitida pelo humano – também é capaz de penetrar o ambiente natural. Nesse sentido, um autor como Vladimir Vernadsky pode falar da transformação da biosfera em “noosfera”, ou seja, da transformação realizada pelo humano, com a ciência e a técnica, do ambiente geológico e biológico.
O ambiente natural é transformado pelo pensamento humano e pela sua inteligência. Vernadsky chega a cunhar, por isso, a expressão “cefalização do universo”. Enquanto outro autor – Pavel Florensky – chega a falar de “pneumatosfera”, ou seja, de um ambiente transformado não apenas pela ciência, pela técnica, pela arte ou pela literatura, mas também pela religião. Segundo Florensky, os valores espirituais veiculados pelo ser humano são capazes, de fato, de penetrar a matéria, a ponto de caracterizá-la cada vez mais: assim, a evolução natural para Florensky não deve ser entendida como um mero processo biológico nem apenas cultural, mas também como um processo espiritual. O conhecimento humano não pode, portanto, ignorar a completude ou a inteireza do todo. Não é possível fazer nenhuma separação do saber entre ciência, arte, filosofia ou teologia. Todo o complexo da cultura humana deve interagir. Decorre disso que não pode haver fragmentação e especialização exasperada do saber, sob pena da perda da consciência da tensão fortemente unitária que caracteriza o universo.
Em que raízes afunda o conceito de divinização no pensamento russo?
É central o papel da “divina liturgia” na teologia da Igreja Ortodoxa, assim como é indispensável a referência à tradição monástica e à “escritura” dos santos ícones. Recordamos a “luz tabórica” que, segundo os ortodoxos, se manifestou no Monte Tabor, por efeito da interação entre “luz incriada” e “luz criada”, com base nas reflexões de um autor muito importante para o pensamento ortodoxo russo, como Gregório Palamas (1296-1359). Por um lado, a “luz tabórica” dilata o olhar dos apóstolos, tornando-os capazes de ver pela primeira vez a “luz incriada” na divina-humanidade de Jesus; por outro, transforma efetivamente as vestes e o corpo real de Jesus. “Luz incriada” na “luz criada”. Na interação entre “luz incriada” e “luz criada”, ocorre, portanto, a divinização ou deificação do humano e de todo o ambiente.
Que recepção teve o conceito de divinização no Ocidente?
O conceito certamente foi retomado também em âmbito católico: basta pensar na [carta apostólica] Orientale lumen, de João Paulo II, o papa eslavo. Quero ler uma passagem dela: “Na divinização e sobretudo nos sacramentos, a teologia oriental atribui um papel muito particular ao Espírito Santo: pela força do Espírito que habita no homem, a deificação inicia-se já na Terra, a criatura é transfigurada, e o Reino de Deus inaugurado” (n. 6). E ainda: “Na experiência litúrgica, Cristo Senhor é a luz que ilumina o caminho e desvenda a transparência do cosmos, precisamente como na Escritura. Os acontecimentos do passado encontram em Cristo significado e plenitude, e a criação revela-se por aquilo que é: um conjunto de traços que somente na liturgia encontram a sua perfeição, a sua plena finalidade. Eis o motivo pelo qual a liturgia é o Céu sobre a Terra, e nela o Verbo que assumiu a carne envolve a matéria de uma potencialidade salvífica que se manifesta plenamente nos sacramentos” (n. 11).
Parece-me bastante evidente nessas palavras a influência do pensamento de que estou falando e, em particular, de um autor como Pavel Florensky. Captamos isso na ideia do Verbo que assumiu a carne humana, permeando assim a matéria com uma potencialidade salvífica, ou seja, de uma espiritualidade capaz de transformar a biosfera em noosfera e, portanto, em pneumatosfera. Além disso, é explícita a citação do “céu sobre a terra”, conhecida expressão de Florensky em obras como “A coluna e o fundamento da verdade” e “A filosofia do culto”.
O céu se abaixa ou a terra se eleva? Qual é – figurativamente – o movimento contido nesse pensamento?
Nicolau Cabásilas (1322-1392) – outro autor importante para o pensamento ortodoxo russo – em “A vida em Cristo” escreveu: “Enxertados em Cristo, os homens se tornam ‘deuses’ e filhos de Deus. O pó é elevado...”. Nessas palavras, estão incluídos dois movimentos em um único movimento, na realidade: de Deus que, encarnando-se em Cristo, desce – até os infernos –, e da humanidade que, enxertando-se em Cristo-Deus, sobe ao alto. É um movimento importante do pensamento russo. Encontramo-lo, por exemplo, em Dostoiévski, em “Os irmãos Karamazov”, naquilo que diz o staretz Zósima em Alóscia: Deus espalhou “sementes de um mundo invisível” no mundo, e cabe ao homem saber ver essas sementes, reuni-las, recuperá-las, devolvê-las ao céu, elevando a si mesmo.
Em Soloviov, aparecem termos que parecem retirados do antigo gnosticismo cristão: sementes, reunificação do duplo, sizígia. Pode explicá-los? Que sentido e importância têm no pensamento russo os autores que você cita?
O texto mais significativo de Soloviov, no sentido da pergunta feita, me parece aquele com o título traduzido como “O drama da vida de Platão”, de 1898. Nesse texto, o autor trata do amor platônico e aborda precisamente o tema da completude ou inteireza do humano, cel’nost. A “luz divina incriada” é obviamente desprovida de divisões. Por isso, o humano que queira se elevar ao divino deve tender para a superação de todas as divisões, a partir da superação da divisão mais evidente, aquela inscrita na carne, ou seja, a superação da divisão dos sexos masculino e feminino. “Sizígia” significa justamente a reunificação e superação dos diferentes. Macho e fêmea, segundo Soloviov, são diferentes de uma forma acidental, que não afeta a unidade profunda do humano. Segundo esse mesmo autor russo do fim do século XIX, isso pode ser dito sobre outras divisões clássicas: corpo e alma ou matéria e espírito.
O humano tende à sua fundamental unitariedade. Essa é a tese de Soloviov: nesse sentido, ele absolutamente não pode ser entendido como um dualista gnóstico. Tender à unitariedade significa tentar reunir e completar o que está dividido e incompleto. E isso – em Soloviov – só pode ocorrer por meio do amor. Um amor não platônico, justamente, ou seja, abstrato, fruto da imaginação e da fantasia, mas sim um amor muito concreto, corpóreo-espiritual. O amor corporal tem um valor profundo e um profundo significado espiritual, tanto entre homem e mulher quanto entre amigos. Ecos desse discurso estão bem presentes na “Carta sobre a amizade” em “A coluna e o fundamento da verdade”, de Florensky. A ideia da “reunificação do duplo” na “sizígia” sublinha, portanto, o sentimento de relação por meio do qual a natureza se completa no amor de dois seres humanos e, portanto, em uma comunhão mais ampla. Em tal pensamento, a comunhão da humanidade é o resultado da tensão à unidade original, em Deus.
Podemos entrever uma tensão em direção a uma conquista final – não apenas do indivíduo, mas também da história humana – nesse tipo de pensamento russo?
Não há dúvida de que o conceito de “pneumatosfera” – no que diz respeito a noosfera e biosfera – tem um papel atrator no que diz respeito à história e ao seu curso: a “pneumatosfera” representa uma meta, embora nunca plenamente alcançada. É o fim para o qual tende a história humana, solidária com o ambiente natural. A missão da Igreja é facilitar a transformação que prefigura o seu resultado final.
Não pode ser perigoso pensar assim?
Para responder a essa pergunta, devo introduzir outro conceito muito importante no pensamento de Florensky: o conceito de “espaço intermediário”. Tanto em Soloviov quanto em Florensky, existem na realidade, como mencionado, dois mundos comunicantes: o visível e o invisível, ou o terreno e o celeste. Deve-se aprofundar a modalidade de relação harmônica entre esses dois mundos, distintos, mas nunca contrapostos. Se partíssemos do pressuposto de que não há relações possíveis entre dois mundos tão diferentes – razão pela qual o mundo invisível deve ser considerado incomensurável em relação ao mundo visível – deveríamos concluir que a fé e a razão são totalmente incomunicantes. E esta, de fato, é a conclusão a que chegam alguns místicos e teólogos ortodoxos.
Não é assim em Soloviov e Florensky, para os quais a fé e a razão – sob o postulado da incompletude humana a ser completada – são doadas para se relacionar, para se comunicar, justamente, para interagir. Florensky aprofunda as modalidades da relação com o conceito de “espaço intermediário”, entendido como o espaço que preenche o hiato entre o mundo visível e o mundo invisível e, portanto, entre a razão e a fé: esse é o espaço da cultura que, em Florensky, deriva de “culto” e, portanto, tem a ver estritamente com a oração e a liturgia. Se a cultura e o culto não fossem influentes, a distância entre os dois mundos permaneceria totalmente impreenchível. Mas cultura e culto, em Florensky, não são de forma alguma irrelevantes, como ele mostra em suas obras. O “espaço intermediário” é o lugar pertinente do movimento ao qual mencionei: lugar onde Deus espalhou e espalha do alto do mundo celeste – figurativamente – as suas “sementes” de divindade no mundo terrestre, lugar de colheita dessas sementes pela humanidade que desse modo – figurativamente – ascende, aproximando-se de Deus, “divinizando-se”. Reitere-se, porém: em Florensky a lacuna entre os dois mundos nunca é plenamente preenchida pelo humano: esta pretensão poderia ser realmente muito perigosa.
Então, o que é a pneumatosfera para Florensky?
Para Florensky, além da cultura humana – já capaz de transformar o ambiente – existe a religião com o seu culto e a sua teologia. A religião é capaz de penetrar no ambiente humano e natural ao mesmo tempo com os seus próprios valores espirituais. No “espaço intermediário”, a religião tem a mesma relevância que a ciência, e não a arte ou a literatura, segundo aquele princípio de completude que mencionei desde o início da entrevista. Isso explica por que a fé – solidária com a cultura humana – é capaz de transformar progressivamente tudo em “pneumatosfera”. Desta, pode-se dizer que é um mundo penetrado e caracterizado cada vez mais pelos nobres valores humanos espirituais.
Sem conseguir plenamente?
Florensky explica que o “espaço intermediário” é um espaço inesgotável. A lacuna entre os dois mundos nunca poderá ser totalmente preenchida. O que importa é a dinâmica, o movimento que ocorre continuamente. Portanto, nem mesmo a “pneumatosfera” pode ser pensada como um estado de perfeição alcançado pelo humano de forma definitiva e com as suas próprias forças e conhecimentos. Isso seria claramente uma heresia.
Pode-se traçar alguma conexão entre o pensamento que você nos apresentou e a dramática realidade? Você não acha que a Igreja ortodoxa russa se sente investida de uma perigosa missão “salvífica”?
Não é fácil nem oportuno simplificar a complexidade. Mas me parece verdade que um certo finalismo salvífico certamente está presente na missão da Igreja ortodoxa russa, do modo como transparece neste entendimento. Recuperar plenamente a sua história nos ajuda a explicar alguns traços da contemporaneidade. Devemos lembrar como nasceu a Igreja russa. Há um evento fundador, histórico, que já entrou na esfera do mito: o da “terceira Roma”. Após a queda de Bizâncio sob o domínio turco muçulmano em 1453, o patriarca Jeremias, em 1589, concedeu a autocefalia à Igreja russa e lhe conferiu uma missão, justamente, com palavras precisas: “Como a antiga Roma caiu vítima da heresia de Apolinário e a segunda Roma [Constantinopla] está sob o domínio dos turcos sem Deus, hoje – ó piedoso czar – cabe ao teu grande reino russo [a terceira Roma: Moscou] a tarefa de superar, por devoção, todos os reinos anteriores. Todos os reinos devotos estão reunidos no teu reino, e só tu agora tens o direito de ser chamado de imperador cristão em todo o universo”.
O códice que contém essa declaração está inserido no livro canônico da Igreja ortodoxa russa e tornou-se parte da confissão dos fiéis russos. Com isso, a Rússia sente que pode ostentar o título de “santa mãe Rússia”, investida da tarefa de preservar a santidade e, portanto, a moralidade no mundo. Acho que não podemos interpretar as afirmações do atual patriarca da Igreja ortodoxa russa, Kirill, omitindo essa recordação. Quando fala da guerra na Ucrânia, ele deixa claro que a Rússia é o único baluarte de santidade que restou no mundo contra as degenerações morais do Ocidente. Kirill se refere ao mandato original da Igreja ortodoxa russa. Não é uma referência pessoal dele. Devemos considerar que toda a história e a cultura russas são caracterizadas por esse evento fundador.
Também notamos que o patriarca Jeremias, em 1589, se dirigiu ao “piedoso czar”, ou seja, ao “piedoso César”. Ora, o presidente da Federação Russa argumenta que a Ucrânia não existe como nação no mapa: ele diz isso tanto porque a geografia do território – sem fronteiras naturais – o leva a dizer isso, de acordo com o “pensamento espacial” a que me referi, quanto porque ele se sente de alguma forma investido – como “imperador cristão” – da missão conferida à “santa Rússia”. Claramente, Putin usa o grande mito em função do seu escopo político.
A ruptura da comunhão ortodoxa dentro da Ucrânia não afetou o grande mito?
A autocefalia que o patriarca de Constantinopla, Bartolomeu, concedeu à Igreja ucraniana desde 2018 dividiu a Igreja Ortodoxa na Ucrânia e efetivamente fraturou o mito da “terceira Roma”. A remoção da hegemonia integral sobre a Igreja Ortodoxa na Ucrânia mostrou-se intolerável ao Patriarcado de Moscou, pelas razões históricas e ideais que mencionei. O evento interrompeu gravemente o senso de continuidade na história da Ortodoxia russa. Kirill não reconhece mais o primado de Constantinopla: o mesmo pelo qual foi investido na sua missão.
O que tudo isso tem a ver com o pensamento dos autores que você nos apresentou?
Comparei duas homilias em março, a poucos dias da invasão da Ucrânia, respectivamente do patriarca de Moscou, Kirill, e do patriarca de Kiev, Epifânio. Elas se movem a partir das mesmas ideias teológicas de fundo. Com algumas diferenças. Kirill insiste no contraste entre a luz e as sombras, entre o bem e o mal; insiste, portanto, na tarefa da Igreja – e do Estado russo – de se comprometer com a vitória do bem sobre o mal, propondo novamente a missão salvífica russa e contemplando a coexistência dos dois princípios opostos: bem e mal.
Epifânio, por sua vez, insiste no fato de que Deus é luz, e somente a luz existe. A sombra é ausência de luz. O mal é falta de bem. Somente o bem, portanto, se sustenta. A sua conclusão é de que apenas a Ucrânia está na luz e está destinada a vencer. Enquanto em Kirill – portanto – bem e mal subsistem em tensão, e a tarefa da Igreja é assegurar que o bem prevaleça, em Epifânio há a ideia de que o bem vence e certamente vencerá. As consequências operacionais – até mesmo militares – das duas visões estão diante dos olhos de todos. É doloroso constatar o uso substancialmente político e bélico da religião: algo muito diferente da concepção da religião por parte dos autores russos de que falei.
É importante para mim, então, concluir novamente com Florensky e com o seu conceito de “fronteira”. O “espaço intermediário” entre os dois mundos – invisível e visível, céu e terra, mas também luz e trevas, bem e mal – se atenua sem abolir a fronteira entre eles. Mas tal “fronteira” não aparece mais como um baluarte ou uma barreira. A fronteira é sempre uma fronteira porosa ou permeável. A fronteira é pensada como uma membrana osmótica através da qual ocorre uma troca contínua, uma contínua relação entre os mundos diferentes e, portanto, entre espaços, culturas, religiões, pensamentos de povos diferentes.
Nessa visão – que eu considero profundamente cristã – o pecado é a negação das propriedades da “fronteira”, quando esta se torna um muro impenetrável entre o humano e o divino, entre o humano e o humano. O pecado é, como sempre, a pretensão de autossuficiência do ser humano em relação a Deus e, portanto, em relação aos irmãos e às irmãs em Cristo. Por isso, eu digo, obviamente correndo alguns riscos, que o manso padre Pavel Florensky – condenado à morte e fuzilado pelo regime soviético em 8 de dezembro de 1937 – ficaria horrorizado com o espetáculo de duas Igrejas separadas por um muro de incomunicabilidade, além disso no âmbito da mesma Ortodoxia: ele não hesitaria em considerar o fato como uma expressão grave do pecado.