Cena do filme A Dupla Vida de Véronique
"Para aqueles que ainda não decidiram se aventurar a caminhar vagarosamente pelos corredores do castelo interior para serem transformados de morada em morada, ressalto a observação de Palaoro e sua menção ao Santo do discernimento: 'A transfiguração não é condição de um 'iluminado', mas a realidade de toda pessoa que é capaz de 'sair de seu próprio amor, querer e interesse' (S. Inácio). Transfigurar é descentrar-se e expandir-se na direção do outro'".
O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.
Os místicos cristãos usaram diferentes metáforas para explicar as transformações que o encontro pessoal com Jesus gera na alma de cada pessoa. Uma delas é a do "bicho-da-seda", através da qual a carmelita Santa Teresa de Ávila explica a mudança que se opera na alma que se aventura a percorrer as sete moradas do castelo interior.
O percurso é árduo e lento, e a primeira convicção de qualquer um que se lança nessa escuridão é a de que só poderá avançar se for auxiliado pela Graça. Para ir em frente, temos que recordar o que nos disse o Papa Francisco em sua homilia na Páscoa passada:
Não viver "a fé das recordações, como se Jesus fosse um personagem do passado, um amigo da juventude já distante, um fato sucedido há muito tempo quando, ainda criança, frequentava a catequese. Uma fé feita de hábitos, coisas do passado, belas recordações da infância, uma fé que já não me toca nem interpela".
Para seguir o rumo do castelo interior é necessário, como disse o pontífice naquela ocasião, fazer outro trajeto: "Ir para a Galileia", isto é, "aprender que a fé, para estar viva, deve continuar a caminhar. Deve reavivar cada dia o princípio do caminho, a maravilha do primeiro encontro".
A cotidiana peregrinação foi um dos temas abordados pelo jesuíta Adroaldo Palaoro em seu comentário do Evangelho desta semana, publicado na página eletrônica do Instituto Humanitas - IHU. Para mergulhar "em nós mesmos, para além de nós mesmos", para que um dia se realize também em nós a "metamorfose que nos devolve à vida transfigurados pelo amor que nos habita e plenifica", sublinha Palaoro, temos que ir ao Monte Tabor, naquela alta colina da Galileia, para o "encontro íntimo com o Senhor" e "com o melhor de nós mesmos (nossa identidade)". Nesse sentido, a citação do jesuíta é clarividente: “'O evangelho é um itinerário para abrir com profundidade a interioridade humana' (Rovira Belloso) e nele vemos como Jesus promove o retorno ao interior".
Como incansavelmente ensina o Papa Francisco e aqueles que experienciaram a mística cristã, e também Palaoro em sua reflexão, é a "oração" que "ajuda a evangelizar até as profundidades do nosso ser" e "ela é o caminho interior do Tabor que nos faz chegar até nosso próprio 'eu original', aquele lugar santo, intocável, onde reside não só o lado mais positivo de nós mesmos, mas o próprio Deus".
Ir para a Galileia, como exorta o Papa Francisco, e fazer a "experiência do Tabor", como sugere Palaoro, tem, além do efeito interior transformador, um efeito prático inevitável porque "nos arranca do caminho rotineiro e nos abre para um horizonte maior. Podemos reconhecer que a nós também nos foi dado o 'gene' da transfiguração, que é força que nos move continuamente a não nos deixar determinar pela nossa autoimagem, pela aparência, e sim, centrar nosso olhar n’Aquele que é pura transparência do Pai".
Para aqueles que ainda não decidiram se aventurar a caminhar vagarosamente pelos corredores do castelo interior para serem transformados de morada em morada, ressalto a observação de Palaoro e sua menção ao Santo do discernimento:
"A transfiguração não é condição de um 'iluminado', mas a realidade de toda pessoa que é capaz de 'sair de seu próprio amor, querer e interesse' (S. Inácio). Transfigurar é descentrar-se e expandir-se na direção do outro".
Para suas "filhas" que chegaram na quinta morada, ou seja, estão a caminho da via unitiva, a co-fundadora da Ordem dos Carmelitas Descalços, juntamente com São João da Cruz, orienta: continuem tecendo com pressa o casulo do bicho-da-seda para um dia serem transformadas em borboletas:
"Eia, pois, filhas minhas, demo-nos pressa em pôr mãos à obra e tecer esse casulinho, despojando-nos de nosso amor-próprio e de nossa vontade, do apego a coisinhas da terra, exercitando-nos em obras de penitência, oração, mortificação, obediência e tudo mais que sabeis. Prouvera a Deus fizéssemos o que é de nosso dever e puséssemos em prática tudo o que sabemos, fazendo como somos ensinadas a fazer.
Morra, morra esse nosso verme - como o da seda, ao acabar de realizar a obra para a qual foi criado. Vereis então como contemplaremos a Deus e nos acharemos tão envolvidas. (...)
Vejamos agora o fim que leva este verme. Eu disse tudo isso para chegar aqui. Dele sai uma borboletinha branca. Semelhante coisa acontece, nesta oração, à alma inteiramente morta para o mundo. Oh! Maravilhas de Deus! Quão transformada sai ela daqui, depois de ter estado imersa na grandeza do Senhor e tão unida a ele, embora só durante um pouquinho de tempo. (...)
Digo-vos, na verdade, a própria alma não se conhece mais. Vede a diferença entre um verme repugnante e uma borboletinha branca! A diferença é a mesma. A alma não sabe como conseguiu merecer tanto bem, nem de onde lhe veio. Sabe muito bem que não o mereceu. Sente tanto desejo de louvar ao Senhor, que quisera desfazer-se e morrer por ele mil vezes. Começa a ter anseios de padecer grandes sofrimentos - e não está em suas mãos fazer outra coisa. Tem grandíssimos desejos de penitência, de solidão e de que todos conheçam a Deus. Daqui provém um grande pesar de o ver ofendido".