O deslocamento celestial do Deus de Teresa de Ávila. Entrevista especial com Frei Betto

O frade dominicano aborda a contribuição dos estudos de Teresa de Ávila para a compreensão de um Deus que não é baseado na meritocracia e na prática das virtudes morais

Foto: Reprodução

Por: Márcia Junges e Ricardo Machado | 18 Outubro 2021

 

A mística, assim como a arte, tem o poder de ser transcendente. Assim surge uma conexão possível entre a Monalisa, de Da Vinci, e os estudos de Teresa de Ávila. “Muitos perguntam o que a Monalisa/Gioconda de Leonardo da Vinci tem de tão especial. Ora, é a primeira vez que um pintor de talento dá um “close” em um rosto anônimo. (...) Da Vinci reflete a emergência da modernidade, o advento do “eu”. Isso Teresa fez na espiritualidade: deslocou Deus das esferas celestiais, como objeto de adoração, para centrá-lo no coração humano, como experiência amorosa”, explica Frei Betto, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

Cheio de metáforas entre ciência e fé, o entrevistado diz que a grande novidade que Teresa de Ávila realizou, à sua época, foi ter percorrido o caminho inverso ao de Copérnico, o qual havia deslocado o eixo da Terra para o Sol. “Ela (Teresa) deslocou Deus do Céu para a Terra, do crer para o viver, caminho retratado na experiência bíblica de Jó. Para Teresa, Deus é o seu caso de amor”, destaca. “Teresa tem muito a nos dizer nessa sociedade conectada por redes sociais, de excessiva exposição e objetivação do ser humano, na qual parece não terem lugar a subjetividade, o silêncio, o cultivo da vida interior, a autoestima fortalecida pela solidão”, complementa.

 

Frei Betto (Foto: MST)

 

Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, é frade dominicano, escritor, graduado em jornalismo, antropologia, filosofia e teologia, e uma das referências da Teologia da Libertação no Brasil. Foi preso durante a ditadura militar e escreveu o livro Batismo de Sangue (Rio de Janeiro: Rocco, 1982), que depois foi adaptado para o cinema com o mesmo título. Esta obra lhe rendeu, em 1982, o Jabuti, principal prêmio literário brasileiro. É autor de dezenas de livros, entre eles, Por uma educação crítica e participativa (Rocco).

 

A entrevista foi publicada originalmente na revista IHU On-Line 460, intitulada A mística nupcial. Teresa de Ávila e Thomas Merton, dois centenários, publicada em 16 de dezembro de 2014.

 

Confira a entrevista.

 

IHU - Em que sentido a experiência mística de Teresa de Ávila ultrapassa os limites da consciência e dos sentidos?

Frei Betto - A experiência mística se compara à paixão humana — há uma “suspensão” da razão e dos sentidos, como Teresa descreve em seus textos, sobretudo no Livro da Vida (São Paulo: Penguin Classics - Companhia das Letras, 2010), sua autobiografia, e João da Cruz relata em seu “Cântico espiritual”. No entanto, não há propriamente uma perda da consciência. Diria, na linha de Jung, que no místico o inconsciente transborda na consciência. Há uma adequação entre o nosso eu e o Eu interior, e a sensação amorosa “suspende” sentidos e razão.

 

 

IHU - Como Teresa responde ao desafio de converter em palavras a sua experiência mística?

Frei Betto - Teresa, ao contrário da maioria das mulheres de seu tempo, foi alfabetizada ainda menina e era de família afeiçoada aos livros. O gosto pela leitura suscitou nela o talento de escritora. Ao romper com o Carmelo tradicional e iniciar suas Fundações, passou a escrever, de modo a instruir suas monjas no “caminho da perfeição”.

 

IHU - Teresa de Ávila, ao falar de Deus, fala de “experiência”, “gozo da alma”, que é diferente de “só pensar e crer nele”. Como ela interpretava a experiência mística de Deus?

Frei Betto - Muitos perguntam o que a Monalisa/Gioconda de Leonardo Da Vinci tem de tão especial. Ora, é a primeira vez que um pintor de talento dá um “close” em um rosto anônimo. Até então os pintores retratavam autoridades (reis e príncipes, papas e cardeais) e quase sempre com a ambientação de fundo (domicílio ou natureza) ocupando espaço bem maior que a figura humana. Da Vinci reflete a emergência da modernidade, o advento do “eu”. Isso Teresa fez na espiritualidade: deslocou Deus das esferas celestiais, como objeto de adoração, para centrá-lo no coração humano, como experiência amorosa.

 

 

IHU - Quais são os elementos fundamentais da simbologia de Teresa de Ávila?

Frei Betto - Ela adotou símbolos próprios do período medieval: castelo, moradas, céu, véu, amor perfeito, alma, etc.

 

 

IHU - Em que aspectos essa simbologia funde as tradições islâmica, sufi e católica?

Frei Betto - Ao ler Teresa e a mística islâmica, em especial a sufi, fica-se com a impressão de diálogo entre os dois textos. Porém, não tenho condições de afirmar que Teresa sofreu influência islâmica ou mesmo budista. Como bom mineiro, desconfio que sim. Mas, inteligente como era, e ameaçada pela Inquisição, ela se resguardou. Como não acompanho as recentes pesquisas sobre as fontes da literatura de Teresa, mais não posso afirmar.

 

IHU - A partir da experiência mística dessa santa, como podemos compreender seu passeio pelos castelos da alma?

Frei Betto - O esquema é muito simples e encontrado em todas as escolas místicas, de diferentes concepções religiosas ou filosóficas: primeiro, purificar os sentidos (ascese); segundo, esvaziar a mente (meditação); terceiro, dilatar o espírito (iluminação ou êxtase). Cada uma dessas fases envolve muitas etapas. O processo é lento, progressivo e retroativo, e ainda que se alcance a união mística há que, em seguida, entrar “no deserto”, como quem inicia novamente todo o caminho.

 

IHU - Reconhecendo uma possível filiação de Teresa à tradição mística islâmica, como se dá a releitura desses elementos por parte da sua mística? Qual é a “novidade” de Teresa?

Frei Betto - A novidade é ela ter feito o caminho inverso ao de Copérnico: enquanto este deslocou o eixo da Terra para o Sol, do geocentrismo para o heliocentrismo, ela deslocou Deus do Céu para a Terra, do crer para o viver, caminho retratado na experiência bíblica de Jó. Para Teresa, Deus é o seu caso de amor.

 

 

IHU - Qual foi a “recepção” da mística de Teresa em seu tempo? E hoje, como é recebido o seu legado?

Frei Betto - Teresa foi tida como “bruxa”, perseguida pelo núncio apostólico na Espanha, que a qualificou de monja desobediente, vista com desconfiança pela Inquisição. Graças a seus confessores e teólogos, escapou de condenações. Hoje, o legado de Teresa extrapola as fronteiras da Igreja Católica. Talvez seja a santa mais estudada por psicanalistas e filósofos. Sobre ela há uma infinidade de obras de arte: filmes, peças de teatro, romances, etc. Ela chega a ser um fenômeno midiático.

 

 

IHU - Em que sentido a trajetória de Santa Teresa de Ávila inspira as mulheres da contemporaneidade no cultivo de sua espiritualidade e, também, de rever seu papel dentro da Igreja?

Frei Betto - Não disponho de dados para avaliar corretamente esse alcance. Mas sei que as obras de Teresa continuam a atrair vocações contemplativas. Há pouco, uma atriz de teatro da Polônia ingressou no Carmelo de São José, em Ávila. Aqui no Brasil, o Carmelo de Bananeiras, na Paraíba, está cheio de jovens, a maioria nordestinas.

É óbvio que Teresa exerce forte influência na teologia feminista e na reivindicação de permitir à mulher aceder, como o homem, a todos os graus de hierarquia na Igreja. Ela foi proclamada “doutora da Igreja” pelo papa Paulo VI e isso abriu horizontes e esperanças.

 

 

IHU - Qual é a atualidade de Teresa na sociedade de hoje? Em que pontos a mística teresiana nos questiona atualmente?

Frei Betto - Teresa tem muito a nos dizer nessa sociedade conectada por redes sociais, de excessiva exposição e objetivação do ser humano, na qual parece não terem lugar a subjetividade, o silêncio, o cultivo da vida interior, a autoestima fortalecida pela solidão.

Teresa nos questiona na concepção que temos de Deus e do amor. O Deus de Teresa não se relaciona conosco baseado na meritocracia, na culpa, na prática das virtudes morais. É o Deus amoroso de Jesus (a quem ele chamava de Abba que, em aramaico, significa Meu pai muito querido) que nos convida a manter com ele uma relação de amor apaixonado, como Oseias com sua mulher Gomer. É dessa intensidade amorosa que brota a fidelidade à palavra divina.

 

IHU - Em nosso contexto epocal, qual é o papel e o valor da mística?

Frei Betto - Respondo com uma afirmação de impacto: todo drogado, todo dependente químico, é um místico em potencial. É alguém que descobriu uma verdade: a felicidade está dentro de nós, jamais fora. Se você tem um filho viciado em drogas e dá a ele R$ 1 milhão para iniciar um empreendimento, certamente ele vai torrar o dinheiro na compra de drogas. A diferença é que seu filho entra pela porta do absurdo para atingir uma mudança do estado de consciência, enquanto o místico entra pela porta do Absoluto. Sem medo de me equivocar, acredito, com Jung, que ninguém é mais feliz que os místicos.

 

 

IHU - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Frei Betto - Se alguém deseja abraçar a via da experiência mística, deve ler Teresa, João da Cruz, Thomas Merton, Charles de Foucauld, Plotino, o autor anônimo de “A nuvem do não saber” (há outra tradução no Brasil intitulada “A nuvem do desconhecido”) e outros tantos autores que vivenciaram a mística. E meditar todos os dias, ao menos meia hora, propondo-se a livrar-se da dependência dos sentidos e da razão, deixando aflorar o espírito amoroso.

 

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