27 Abril 2022
As afirmações e as escolhas do patriarca de Moscou são inequívocas, especialmente se forem interpretadas não apenas na trágica contingência da invasão da Ucrânia por parte da Rússia, mas também no mundo mais amplo e complexo das relações entre as religiões e a geopolítica.
O comentário é do jornalista italiano Riccardo Cristiano, em artigo publicado em Settimana News, 23-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Elas dizem respeito e impactam o mundo ortodoxo, mas têm grande relevância na conexão entre pensamentos de origens, em si mesmas, muito distantes: no Ocidente – nos próprios Estados Unidos, por exemplo – ou no Oriente Médio. Até estabelecer uma espécie de ecumenismo dos fundamentalismos religiosos.
O ponto crucial é o tempo: em que tempo da história se situa o centro de gravidade ou a “casa” desses pensamentos?
Segundo o grande escritor sírio Yassin al-Haj Saleh, devemos captar o tempo, entender onde ele habita. Sim, devemos determinar onde é mais sábio localizar a “casa do tempo”: no presente ou no passado. Ao fazer a segunda escolha, vivemos enfurnados em mundos pequenos, tribais, contrapostos, mitológicos.
A antiga “Odisseia” nos fala de um tempo que tem a sua casa, justamente, no passado. Ulisses quer voltar para Ítaca. A meta da viagem é o retorno. Enquanto na contemporaneidade – mais próxima de nós – alguém como Kerouac chegou a nos dizer que estamos em uma estrada que passa pela beira da porta na qual devemos entrar, não para voltar atrás, mas para seguir em frente, ao encontro do amanhã, para que haja um amanhã.
Vimos a tendência de levar a “casa do tempo” de volta para o passado se difundir entre nós nos últimos anos, com os soberanismos. A tendência mais arriscada foi captada perfeitamente por uma religiosa católica oriental que, em uma entrevista a um jornal italiano, disse: “O presidente, o povo e o exército são a nossa Santíssima Trindade”.
O nacionalismo é patriarcal, porque concebe o passado como o pai do presente e se recusa a pensar o presente como o tempo dos irmãos. Sair do passado, portanto, é impossível para quem usa o passado como instrumento de legitimação do poder.
É assim que muitos fundamentalistas islâmicos colocam a “casa do tempo” no passado. De fato, é evidente o quanto a exportação da revolução khomeinista teve e tem como objetivo recriar o Império Persa, ou seja, voltar àquele tempo. E o que dizer, aliás, da escolha do reino saudita de fazer do Alcorão a Constituição sobre a qual se deve colocar a casa do próprio tempo?
De certa forma, os únicos que querem apagar o passado e refazer a história são os ultraextremistas islâmicos do ISIS, mas a seu modo, ou seja, com um novo ponto de partida colocado na escolha do suposto califa de se chamar Abu Bakhr, assim como o primeiro sucessor de Maomé: nova origem do tempo e uso do apagador sobre a história islâmica, a ser reescrita desde as origens olhando para trás.
O nacionalismo, junto com um pequeno ou grande império, é o conceito-chave para interpretar o pensamento político dos fundamentalistas.
Kirill – desde que foi eleito patriarca de Moscou e de todas as Rússias – insiste no conceito de “mundo russo”, equivalente a “Santa Rússia”. O seu patriarcado, portanto, não reconhece as atuais fronteiras políticas da Federação Russa: não são as fronteiras físicas que delimitam as suas competências territoriais. O patriarca quer ter plena jurisdição sobre tudo o que pertence ao suposto “mundo russo”, ou seja, sobre Rússia, Bielorrússia, Ucrânia, Moldávia e até Cazaquistão. Pelo menos.
Sem a menor referência aos acontecimentos de um passado próximo muito doloroso – por exemplo, o extermínio dos kulakis ucranianos por Stalin –, Kirill volta ao passado remoto do batismo da Rus’ – o mitológico rito coletivo com o qual o rei Vlad uniu as tribos eslavas em 860 – para ali colocar a sua “casa do tempo”, evocando com isso um idealismo espiritualista que dominaria o corpo unitário do povo russo.
Mas o patriarca não se lembra ou não quer se lembrar das lições de grandes autores – escritores, filósofos e teólogos russos – como Nikolai Berdjaev, que, do exílio em Paris, há várias décadas, escrevia sobre a liberdade como valor supremo devido ao próximo.
Já a liberdade – como dever para com o próximo, além de si – me parece ser uma característica – esta sim – santa (porque vem de Deus) e, por isso, evidenciada no Documento sobre a Fraternidade Humana assinado por Francisco e pelo imã de al-Azhar em Abu Dhabi: “A liberdade é um direito de toda a pessoa: cada um goza da liberdade de credo, de pensamento, de expressão e de ação. O pluralismo e as diversidades de religião, de cor, de sexo, de raça e de língua fazem parte daquele sábio desígnio divino com que Deus criou os seres humanos”.
A liberdade é um dom de Deus e, ao mesmo tempo, um dever para com o outro. Como, então, a ideia de “mundo russo” – assim como outras ideias que circularam e circulam também no mundo católico, conectando o altar com o império – pode se conciliar com a liberdade na comunhão eclesial?
O professor Antoine Courban, em um artigo recente sobre a questão moscovita, resumiu brilhantemente a incompatibilidade dos dois modelos de Igreja: de um lado, está a Igreja que se põe em função da assembleia dos fiéis do lugar onde vive – como da tradição apostólica –, de outro está a Igreja etnonacional, fundada sobre a identidade dos seus membros que inevitavelmente cai no filetismo, ou etnofiletismo, isto é, na predileção de um grupo étnico, ou seja, na heresia condenada pelo Grande Concílio Ortodoxo de 1872.
O filetismo – muito difundido, por exemplo, também na cultura e na realidade do catolicismo do Oriente Médio – afunda as suas raízes, a meu ver, na questão da “proteção”, assim como foi conhecida pelos cristãos sob o governo otomano.
A proteção obtida pelos muçulmanos – no momento em que Napoleão chegou e trouxe consigo o conceito de nação – induziu a traduzir o termo usado até então para indicar as comunidades de fé – millet – como “nação”. “Nação cristã” tornou-se um modo de dizer que não existe um mundo que não conheça as nações com base étnica e religiosa. Mas nem sempre foi assim. E não deve ser necessariamente assim.
A minha sensação – talvez exagerada – é que a ideia do “mundo russo” requer inimigos para se autossustentar. Na “Quarta Teoria Política” de Aleksandr Dugin – a do “mundo russo” contra o Ocidente – a ideia se torna “metafísica”. “Metafísica” é a palavra que o patriarca pronunciou na sua homilia do dia 6 de março passado, traçando um muro entre o “mundo russo” e o poder mundial que quer impor o pecado contra Deus como opção disponível ao ser humano.
“As Paradas Gays são projetadas para demonstrar que o pecado é uma das variáveis do comportamento humano. Isso significa que se quer impor com a força um pecado condenado pela lei de Deus e, assim, impor com a força às pessoas a negação de Deus e da sua verdade. […] Em torno desse argumento, hoje, há uma verdadeira guerra. Estamos falando de algo diferente e muito mais importante do que política. Estamos falando da salvação humana, de como a humanidade terminará, de que lado, à direita ou à esquerda, de Deus Salvador que vem ao mundo como Juiz [...]. O que foi afirmado indica que entramos em uma luta que não tem um sentido físico, mas um significado metafísico.”
Não é exatamente o que o pai do fundamentalismo islâmico, Sayyd Qutb, escrevia? Para Qutb, a questão com o Ocidente é sobretudo “estabelecer por lei as normas do comportamento coletivo e escolher qualquer modo de vida sem levar em conta o que foi prescrito por Deus”.
É importante captar a convergência que pode ser traçada graças ao artigo publicado pela revista La Civiltà Cattolica, de autoria do Pe. Antonio Spadaro e de Marcello Figueroa, sobre os fundamentalistas estadunidenses católicos e protestantes: na narrativa destes, “o que leva ao conflito não é banido. Não se considera o vínculo existente entre capital e lucros e a venda de armas. Pelo contrário: muitas vezes a própria guerra é assimilada às heroicas obras de conquista do ‘Deus dos exércitos’, de Gideão e de Davi. Nessa visão maniqueísta, as armas, portanto, podem assumir uma justificação de caráter teológico, e ainda hoje não faltam pastores que procuram um fundamento bíblico para isso, usando trechos da Sagrada Escritura como pretextos fora de contexto”.
O que acrescentam os 800 teólogos ortodoxos que contestaram Kirill? Se os fundamentalistas estadunidenses falam dos Estados Unidos como uma “nação abençoada por Deus”, os teólogos ortodoxos lembram ao patriarca russo que falar nesses termos é heresia, pois, se a Igreja fosse étnica, não seria mais a Igreja de Cristo, do Evangelho, dos Apóstolos.
A Igreja étnica dá origem a uma abordagem messiânica – em sentido político – que pode passar despercebida. Querer construir o “Reino de Deus” e pretender possuí-lo no “mundo russo” ou em qualquer outro lugar é muito perigoso.
No já citado artigo do Pe. Antonio Spadaro e do pastor Marcelo Figueroa sobre o fundamentalismo estadunidense, está escrito: “O termo ‘fundamentalismo evangélico’, que hoje pode ser assimilado a ‘direita evangélica’ ou ‘teoconservadorismo’, tem as suas origens nos anos 1910-1915. Naquela época, um milionário do sul da Califórnia, Lyman Stewart, publicou 12 volumes intitulados ‘Os fundamentos’ (Fundamentals). O autor tentava responder à ameaça das ideias modernistas da época, resumindo o pensamento dos autores cujo suporte doutrinal ele apreciava. […]. Seus admiradores eram vários expoentes políticos e também dois presidentes recentes, como Ronald Reagan e George W. Bush. O pensamento das coletividades sociais religiosas inspiradas em autores como Stewart considera os Estados Unidos como uma nação abençoada por Deus e não hesita em basear o crescimento econômico do país na adesão literal à Bíblia”.
Não é de se surpreender então que o professor Massimo Borghesi tenha escrito, sobre o fundamentalismo islâmico, palavras que também podemos referir a Kirill, assim como aos fundamentalistas estadunidenses: “Não se trata de uma mera expressão de tradicionalismo, mas de uma modernidade reacionária que toma forma na imitação do antiocidentalismo ideológico marxista que se espalha pela Europa e pelo mundo a partir da segunda metade dos anos 1960. A crítica ao Ocidente, que é própria do fundamentalismo, é totalmente análoga à que o marxismo dirigia ao sistema capitalista, egoísta e corrupto”.
Aqui emerge outro ponto que une os fundamentalistas, mas também os pan-arabistas e boa parte dos marxistas soviéticos e pós-soviéticos: levantar-se contra o mundo egoísta e corrupto. Portanto, é preciso combater este mundo corrupto e corruptor.
O temor está fortemente fundamentado também nos Estados Unidos. O Pe. Spadaro e o pastor Figueroa escrevem ainda: “(Estes querem) combater as ameaças aos valores cristãos estadunidenses e aguardar a iminente justiça de um Armagedom: um acerto de contas final entre o Bem e o Mal, entre Deus e Satanás”.
É por isso que, para mim, apenas Francisco emerge como o líder moral global, porque o seu ecumenismo une na fraternidade todos aqueles que colocam a “casa do tempo” no presente, como tempo dos irmãos. Une crentes e não crentes pelo mundo, não contra o mundo, para mudá-lo, não para destruí-lo.
O ecumenismo de Francisco requer o empenho exigente e o apoio de todos, diversamente irmãos. Lembra-nos de que não pode haver um fundamentalismo antifundamentalista.
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Os dois ecumenismos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU