10 Janeiro 2017
A paz não é "a simples ausência de guerra" e exige "o comprometimento das pessoas de boa vontade" que aspiram a "uma justiça cada vez mais perfeita". Para combater o terrorismo fundamentalista, devemos "garantir o direito à liberdade religiosa no espaço público" e "evitar que se desenvolvam condições favoráveis à propagação do fundamentalismo". O caminho para a paz e a segurança passa pelo desenvolvimento de uma distribuição justa dos recursos.
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada por Vatican Insider, 09-01-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
É amplo e muito articulado o tradicional discurso que o Papa Francisco dirige ao corpo diplomático acreditado junto à Santa Sé, neste novo ano. Francisco recorda que hoje, para muitos, a paz é "ainda apenas uma ilusão distante", uma vez que milhões de pessoas "vivem hoje em meio a conflitos sem sentido. Inclusive naqueles lugares que em outras épocas eram considerados seguros, observa-se um sentimento geral de medo".
Para os cristãos, explica Francisco, a paz é um dom de Deus, "um bem positivo" e não "a simples ausência de guerra". Não pode, portanto, ser reduzida "só ao estabelecimento de um equilíbrio de forças opostas", mas exige "o compromisso" dos que aspiram "a uma justiça cada vez mais perfeita". O Papa afirma que está profundamente convencido de que "toda a expressão religiosa é convocada a promover a paz", ainda que recorde que "tenha sido cometido violência por razões religiosas, a começar precisamente pela Europa, onde as divisões históricas entre cristãos duraram muito tempo". Ao mesmo tempo, explica, não precisamos esquecer das obras de inspiração religiosa que "muitas vezes contribuem, inclusive, com o sacrifício dos mártires, para a construção do bem comum através da educação e da assistência, especialmente em regiões desfavorecidas e em zonas de conflito". Obras que "contribuem para a paz" e atestam que é possível, concretamente, "viver e trabalhar juntos, apesar de pertencer a povos, culturas e tradições diferentes".
Bergoglio lembra então que "ainda hoje a experiência religiosa" pode "às vezes ser utilizada como pretexto para isolamento, marginalização e violência". É o terrorismo "de matriz fundamentalista, que no ano passado tomou a vida de muitas vítimas em todo o mundo". São gestos vis, diz o Papa, que utilizam "as crianças para assassinar, como na Nigéria, tomam como objetivo aqueles que rezam, como na Catedral Copta do Cairo, a quem viaja ou trabalha, como em Bruxelas, a quem passeia pelas ruas da cidade, como em Nice ou Berlim". Uma "loucura homicida que usa o nome de Deus para semear a morte, tentando afirmar uma vontade de dominação e de poder". Francisco novamente convoca "a todas as autoridades religiosas para que, unidos, reafirmemos fortemente que jamais se pode matar em nome de Deus". O terrorismo fundamentalista, acrescenta, "é fruto de uma grave miséria espiritual, muitas vezes também vinculada a uma considerável pobreza social". E poderá ser "plenamente vencido com a ação comum de líderes religiosos e políticos". Os primeiros devem "transmitir aqueles valores religiosos que não admitem uma contraposição entre o temor de Deus e o amor ao próximo". Por outro lado, aos governos corresponde "assegurar o direito à liberdade religiosa no espaço público, reconhecendo a contribuição positiva e construtiva que isso implica para a edificação da sociedade civil", e a responsabilidade "de evitar a existência de condições favoráveis para a propagação dos fundamentalismos. Isto requer políticas sociais adequadas que combatam a pobreza, e que requerem uma valorização sincera da família como lugar privilegiado de amadurecimento humano e de abundantes esforços nos âmbitos educativos e culturais".
O Papa se diz convencido de que a autoridade política não deve ser limitada a "garantir a segurança dos seus próprios cidadãos", mas também deve "ser verdadeira promotora e construtora de paz". A paz é uma "virtude ativa, que requer o compromisso e a cooperação de cada pessoa e de todo o corpo social em seu conjunto", e nunca é "uma coisa que podemos completar, mas uma tarefa perpétua". Edificá-la, insiste Francisco, exige antes de tudo renunciar à violência "durante a reivindicação dos seus próprios direitos". Construir a paz, continua o Papa, "requer também que sejam arrancadas as raízes das causas de discórdia entre os homens, que é o que alimenta as guerras, a começar pelas injustiças". Existe, de fato, "uma íntima relação entre a justiça e a paz", mas, como São João Paulo II nos ensinou, a justiça humana deve ser exercida e completada com o perdão. O Jubileu foi uma ocasião "particularmente propícia para descobrir também a incidência importante e positiva da misericórdia como um valor social".
"É necessário um compromisso comum - diz o Papa - em favor dos imigrantes, os refugiados e as pessoas deslocadas, para que seja possível dar-lhes uma recepção digna". Isso envolve a capacidade de aceitar o direito de cada ser humano a migrar e garantir, ao mesmo tempo, "a possibilidade de uma integração dos imigrantes nos tecidos sociais em que eles se inserem, sem que estes sintam ameaçadas a sua segurança, a sua identidade cultural e seu próprio equilíbrio político e social". Uma abordagem "prudente" por parte das autoridades, explica Francisco, não implica na "aplicação de políticas de clausura aos imigrantes", embora os governantes devam "avaliar, com sabedoria e nobreza, até que ponto o seu país é capaz, sem causar danos ao bem comum dos seus cidadãos, de proporcionar aos imigrantes uma vida digna, especialmente àqueles com uma verdadeira necessidade de proteção". Francisco explica que não é possível reduzir a atual crise a "uma simples contagem numérica", porque os imigrantes "são pessoas com nomes, histórias e famílias, e nunca poderá haver paz verdadeira enquanto houver um único ser humano que tenha a sua própria identidade pessoal enfraquecida e que seja reduzida a uma mera estatística ou objeto de interesse econômico".
O problema da imigração é uma "questão que não deveria permitir que alguns países ficassem indiferentes enquanto outros são sobrecarregados, geralmente com um esforço considerável e sérias dificuldades para manter o compromisso humanitário" de uma "emergência que não parece ter fim". Todos, afirma o Pontífice, deveriam perseguir "o bem comum internacional".
Dessa forma, Bergoglio agradeceu a "todos os países que generosamente acolhem os necessitados", entre os quais citou a Itália, a Alemanha, a Grécia e a Suécia. E recordou também as boas-vindas que o Líbano, a Jordânia e a Turquia ofereceram, "assim como o compromisso de diferentes países da África e da Ásia". Logo após, recordou "os milhares de imigrantes centro-americanos que sofrem terríveis injustiças e perigos em sua tentativa de alcançar um futuro melhor e que são vítimas de extorsão e objeto deste comércio desprezível, horrível forma de escravidão moderna, que é o tráfico de pessoas".
Francisco afirma que a inimiga da paz é "uma visão redutora do homem, que abre caminho para a propagação da iniquidade, das desigualdades sociais e da corrupção". "O caminho para a paz passa - acrescenta, citando a encíclica 'Populorum Progressio', que este ano comemora o seu cinquentenário -, pelo desenvolvimento" que as autoridades públicas têm como obrigação incentivar e promover, criando as condições para uma distribuição mais equitativa dos recursos". No mundo "ainda existem muitas pessoas, especialmente crianças, que sofrem por causa da pobreza endêmica e vivem em situações de insegurança alimentar (ou melhor, fome) enquanto os recursos naturais estão sujeitos à exploração gananciosa de uns poucos, desperdiçando a cada dia enormes quantidades de comida".
Francisco convocou a comunidade internacional "a trabalhar diligentemente para implementar uma série de ações" com o objetivo de acabar com o conflito na Síria, que está provocando "um verdadeiro desastre humanitário". Cada uma das partes envolvidas deve "ter como prioridade o respeito ao direito humanitário internacional, assegurando a proteção da população civil e a ajuda humanitária necessária". O Papa torna a pedir "que sejam erradicados o tráfico desprezível de armas e a contínua corrida para produzir e distribuir armas cada vez mais sofisticadas". "Causam grande perplexidade - afirma - os testes realizados na Península Coreana, que desestabilizam a região e levantam inquietantes questionamentos para a comunidade internacional sobre o risco de uma nova corrida armamentista nuclear". O Papa recorda que "a facilidade com que frequentemente se pode acessar o mercado de armas", além de agravar os conflitos, "produz uma sensação muito ampla e generalizada de insegurança e medo, que é mais perigosa em tempos de incerteza social e profunda transformação, como o que vivemos".
A inimiga da paz, diz Bergoglio, é a "ideologia, que utiliza os problemas sociais para promover o desprezo e o ódio, além de enxergar o outro como um inimigo a ser combatido, pois é inimiga da paz. Infelizmente, novas formas de ideologia aparecem constantemente no horizonte da humanidade. Fingindo ser portadoras de benefícios para o povo, deixam para trás muita pobreza, divisões, tensões sociais, sofrimento e, com frequência, a morte". A Santa Sé compromete-se com convicção a "solucionar os conflitos" e "continuar os processos de paz". Francisco cita os exemplos positivos de Cuba e dos Estados Unidos, e o da Colômbia. Pede "gestos valentes" para a Venezuela e para o Oriente Médio, "não só para acabar com o conflito sírio, mas também para promover uma sociedade plenamente reconciliada no Iraque e no Iêmen".
A Santa Sé, afirma o Papa, "renova também o seu apelo urgente para que seja retomado o diálogo entre israelenses e palestinos, para que seja alcançada uma solução estável e duradoura que garanta a coexistência pacífica de dois Estados dentro de fronteiras internacionalmente reconhecidas. Nenhum conflito há de se tornar um hábito do qual parece que ninguém poderá se livrar. Israelenses e palestinos precisam de paz. Todo o Oriente Médio precisa urgentemente de paz!".
Francisco também espera "que os acordos destinados a restaurar a paz na Líbia sejam plenamente cumpridos" e "todos os esforços que em âmbito local e internacional estejam destinados a restaurar a convivência civil no Sudão, no Sudão do Sul e na República Centro-Africana". Igualmente, solicita às autoridades políticas do Congo que "se esforcem diligentemente para promover a reconciliação e o diálogo entre todos os membros da sociedade civil". Além disso, ele também lembrou o caso da Birmânia, pedindo que "seja promovida uma convivência pacífica e, com a ajuda da comunidade internacional, não se deixe de atender àqueles que estão em necessidade extrema e urgente".
O diálogo, afirma Bergoglio, é a única via para garantir a segurança e o desenvolvimento também na Europa. O Papa vê com bons olhos as iniciativas voltadas para a reunificação de Chipre e espera que "na Ucrânia continuem buscando com determinação soluções viáveis para a plena aplicação dos compromissos assumidos pelas partes e, acima de tudo, para que seja dada uma resposta rápida para a situação humanitária que continua sendo grave". A Europa, explica Francisco, "está atravessando um momento decisivo de sua história, na qual é intimada a redescobrir a sua própria identidade". Deve "redescobrir suas raízes com o objetivo de moldar o seu próprio futuro. Frente às forças separatistas, é mais urgente do que nunca atualizar a "ideia de Europa" para dar à luz a um novo humanismo baseado na capacidade de integrar, de dialogar e de gerar, virtudes que engrandeceram o chamado Velho Continente". O processo de unificação europeia "tem sido e continua a ser uma oportunidade única para a estabilidade, a paz e a solidariedade entre os povos". A Santa Sé está preocupada "com a Europa e o seu futuro". Ao final, o Papa também fala sobre a importância do cuidado da Criação, referindo-se ao Acordo de Paris, sobre o clima, e expressando a esperança de uma "cooperação mais ampla por todos" para enfrentar a mudança climática. Recordou as calamidades naturais, tais como os terremotos no Equador, na Itália e na Indonésia, esperando que a solidariedade "que uniu o querido povo italiano nas primeiras horas após o terremoto continue a incentivar toda a nação, especialmente nestes momentos delicados de sua história".
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"Políticas sociais contra o terrorismo fundamentalista" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU