06 Abril 2022
De acordo com Luciano Floridi, filósofo da informação da Universidade de Oxford, a inteligência artificial se comporta como se fosse inteligente, mas funciona justamente porque o seu agir está separado do “entender”. E especifica: “A inteligência artificial não diz respeito à capacidade de reproduzir o pensamento humano, mas sim à capacidade de abrir mão dele”.
A reportagem é de Piero Bianucci, publicada em La Stampa, 11-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Depois dos pioneiros Norbert Wiener, fundador da cibernética, e Alan Turing, fundador da informática, a inteligência artificial (IA para os amigos e por brevidade) encontrou um filósofo militante que a redefine no contexto dos mais recentes desenvolvimentos tecnológicos.
Luciano Floridi – 57 anos, romano, formado na La Sapienza, naturalizado britânico – está engajado nessa tarefa na Universidade de Oxford, onde leciona Filosofia e Ética da Informação, e há alguns anos também na Universidade de Bolonha, onde ocupa a cátedra de Sociologia da Cultura.
A trajetória de Floridi passa por uma série de livros que desenvolvem um sistema de pensamento robusto e coerente de marca pragmática “pós-analítico continental” (são palavras dele). O último trabalho, recém lançado nas livrarias, é “Etica dell’Intelligenza Artificiale” (Raffaello Cortina, 384 páginas), e a força teórica que o inspira é tamanha, a ponto de reconfigurar o mapa do mundo digital em relação ao velho mundo analógico.
Uma fonte de jato contínuo é analógica, uma fonte que goteja (como “A fonte doente” da poesia de Palazzeschi) é digital (descontínua, “discreta”), porque a gota é a menor unidade de água que pode liberar. A mesa sobre a qual eu escrevo é analógica, porque aparece como um objeto unitário e compacto, mas seria digital (descontínua, discreta) se eu pudesse ver os átomos individuais que a compõem. A voz de Mina é analógica, porque não há solução de continuidade nas suas vibrações, mas se torna digital em um CD em que essas vibrações, isto é, as suas ondas sonoras, são amostradas 44 mil vezes por segundo e traduzidas em tantos números (dígitos) por meio de combinações de 1 e 0, ou seja, bits individuais, os “átomos” da informação.
De acordo com as teorias físicas mais avançadas, a realidade na sua essência é digital: até mesmo o espaço é “discreto” (descontínuo), as suas unidades elementares têm o “comprimento de Planck” (10 na menos 35 metros), e o tempo não flui como um rio, mas “goteja” como a fonte de Palazzeschi no ritmo de 10 na menos 43 segundos (o “tempo de Planck”).
A realidade analógica que nos cerca é uma questão de escala e de complexidade: passando do extremamente pequeno, que é “discreto” (quantizado), a uma escala intermediária ou extremamente grande, não se percebe mais a sua granularidade, e ela parece ser analógica (“contínua”).
O mundo analógico nos rodeia, e nós somos seres analógicos. Mas, nas últimas décadas, construímos um mundo paralelo que é digital, todo feito com os dois tijolos de base, Um e Zero, que em um computador significam a presença ou ausência de corrente elétrica. Traduzindo: sim e não, ligado e desligado.
Um computador é uma enorme galáxia de minúsculos interruptores que, ligados e desligados em uma dada ordem, podem representar e produzir qualquer coisa: música, vozes, conceitos, imagens fixas e em movimento, e-mails, livros, jornais, problemas, soluções, jogos, realidades virtuais – até mesmo objetos físicos, quando inseridos em uma impressora 3D.
É importante ressaltar que, ao contrário dos átomos, os bits são imateriais, podem viajar em ondas de rádio ou dentro de fibras óticas com a velocidade da luz. Assim, o mundo digital se torna tão grande quanto a extensão da sua rede de conexões (internet), “contínuo” e “discreto” – para usar as palavras da física e da matemática – dão origem a dois universos paralelos em interação entre si. A inteligência artificial é uma das expressões, a mais sofisticada, do universo digital.
Desde a primeira página, Floridi fixa a ideia-chave: a principal característica do digital é o seu “poder de cisão”, que se traduz em uma possibilidade quase ilimitada de “cortar e colar”. É uma propriedade que deriva diretamente da natureza “discreta” subjacente.
No mundo digital, uma fotografia é um mosaico de milhões de minúsculos pedaços, os pixels. A nossa pessoa é (também) uma associação de dados – data de nascimento, estado civil, títulos de estudo, profissão, local de residência, localização instantânea (geolocalização com GPS), número de telefone, conta bancária, CPF, número no plano de saúde e sabe-se lá quantos outros, crachás para ter acesso ao local de trabalho, endereço de internet, senhas das diversas redes sociais digitais e assim por diante.
O digital separa posição e presença: pela internet, posso agir a distância em qualquer lugar do mundo; qualquer pessoa, observa Floridi, pode “encontrar-se fisicamente em um lugar, digamos um bar, e estar presente interativamente em outro, digamos uma página do Facebook”.
Lei e territorialidade estão separadas do digital: de fato, sabemos muito bem como é difícil fazer com que gigantes da web como Microsoft, Amazon e afins respeitem regras. E, paradoxalmente, é também o digital, por meio de sites e mídias sociais, que reconecta as pessoas físicas ao mundo analógico, por exemplo chamando você novamente para um certo restaurante, para uma localidade de férias ou para uma manifestação política.
A mistura entre analógico e digital em que vivemos, além das relações sociais, políticas, afetivas, mudou as relações entre produção e consumo: tornamo-nos prosumer – ou, como diz Floridi, produmer. Consumimos vídeos, textos, música, mas também os produzimos no TikTok, Youtube, Instagram, Twitter, Facebook etc.
O digital – observa Floridi – é uma “tecnologia de terceira ordem” – ou seja, uma tecnologia que se interpõe entre uma tecnologia e outra tecnologia, que por sua vez age sobre a realidade. Consequentemente, o digital “não é simplesmente algo que potencializa ou aumenta uma realidade, mas algo que a transforma radicalmente, porque cria novos ambientes que habitamos e novas formas de agir com as quais interagimos”.
Aqui, entrevê-se uma inédita ontologia do real-virtual que seria interessante examinar. Mas não faremos isso nestas poucas linhas, porque chegou a hora de colocar a inteligência artificial no marco filosófico que Floridi traçou.
Vamos logo limpar o campo do mito da “singularidade”, conceito roubado de todos aqueles fenômenos nos quais se supera um valor limite, criando uma descontinuidade radical com a situação anterior: por exemplo, na teoria dos buracos negros, é uma “singularidade” a região do espaço-tempo em que as condições gravitacionais são tão extremas que as leis conhecidas da física não valem mais. Uma “singularidade” no desenvolvimento da inteligência artificial ocorreria se hardware e software se tornassem tão poderosos a ponto de fugir do controle humano: então seria a inteligência artificial que dominaria o ser humano, tornando-o escravo.
Elon Musk, o homem da Tesla e do turismo espacial que sonha com a conquista de Marte, estranhamente está entre os catastrofistas. Ele diz que a inteligência artificial, amplamente aplicada nos seus foguetes, é o risco existencial mais grave que a humanidade tem pela frente.
Com base na aceleração dos desenvolvimentos tecnológicos, há quem tenha calculado quando poderia ocorrer a ultrapassagem do cérebro-máquina sobre o cérebro biológico. Nick Bostrom, assim como Floridi professor de filosofia na Universidade de Oxford, arrisca uma data: 2030. Outros, mais prudentes, falam em 2045 ou no fim do século. Floridi (e na Itália, por exemplo, Riccardo Zecchina, da Universidade Bocconi), descartam o assunto como ficção científica.
Turing foi o primeiro a se perguntar se as máquinas podem pensar e deu a si mesmo uma resposta operacional: poderíamos dizer que uma máquina é pensante quando um humano, dialogando de fora por meio de um teletipo com outro humano e com uma máquina trancados em uma sala, não for capaz de distinguir a inteligência artificial da inteligência biológica.
A posição de Floridi é ainda mais pragmática: graças ao poder de cisão do digital e do recorta-e-cola, a inteligência artificial é “uma forma de agir que não precisa ser inteligente para ter sucesso”. Em outras palavras, Floridi defende uma visão de engenharia da inteligência artificial e rejeita uma visão cognitiva.
Em um ensaio de 2007, Legg e Hutter listaram 53 definições de inteligência humana e 18 de inteligência artificial, mas, de acordo com Floridi, é inútil se perguntar reflexivamente “o que são” essas inteligências: para a inteligência, seja ela natural ou artificial, assim como para a amizade, o fato de estar apaixonado ou com boa saúde, vale a frase do magistrado estadunidense Potter Steward sobre a pornografia: “Não saberia dizer o que é, mas eu a reconheço quando a vejo” (1964).
Estamos cercados por formas de inteligência artificial. O “Roomba” varre a casa e, quando tem fome (de energia), vai se ligar à sua tomada para recarregar a sua bateria. Com Siri, Alexa, Bixby e outros “assistentes” análogos, falamos em linguagem natural: eles aprendem as nossas preferências musicais, mantêm a nossa agenda, leem livros e mensagens para nós, traduzem o que dizemos em dezenas de línguas. Os carros autônomos se movem no meio do trânsito e nos levam ao destino solicitado seguindo as indicações do GPS. Algoritmos vencem os humanos em jogos como o xadrez e o Go, operam habilmente na bolsa de valores, fazem previsões, reconhecem o rosto das pessoas, superam a inteligência biológica em tarefas complexas. Em todas essas coisas, eles têm sucesso, mas justamente porque separam o resultado da inteligência.
A inteligência artificial age como se fosse inteligente, e isso é suficiente, assim como uma máquina de lavar louça limpa bem os pratos, e até melhor do que eu saberia fazer, sem, por isso, ser inteligente.
Até hoje, argumenta Floridi, a inteligência artificial é uma inteligência “reprodutiva”, e não “cognitiva”. Ela é eficiente precisamente porque o seu agir está separado da inteligência: a tarefa que ela realiza é inteligente para os nossos critérios cognitivos, mas não é inteligente para a máquina projetada que a realiza.
“Na inteligência artificial, é o resultado que importa, não se o agente ou o seu comportamento é inteligente. Por isso, a inteligência artificial não concerne à capacidade de reproduzir a inteligência humana, mas sim à capacidade de abrir mão dela.”
Uma forma de alcançar esse objetivo consiste em transformar o problema a ser resolvido em um jogo, ou seja, “ludicizá-lo” ou “gamificá-lo”: já sabemos que as máquinas são melhores do que nós no xadrez... Mas a inteligência “produtiva” (cognitiva) ainda está muito longe. Nós induzimos, deduzimos, inferimos. Na melhor das hipóteses, a inteligência artificial infere em uma base estatístico-probabilística. Além disso, a qualidade da inferência depende mais da qualidade do que da quantidade dos dados fornecidos. O Big Data corre o risco de gerar “ruído”, perturbação, confusão. É melhor ter poucos dados, mas confiáveis.
Ontologicamente diferentes, mas às vezes úteis, são os “dados sintéticos” gerados pelas próprias máquinas informáticas (para uma análise crítica do uso dos dados, pode-se ver “Big Data e algoritmi”, de Teresa Numerico, professora associada de Lógica e Filosofia da Ciência na Universidade de Roma Tre, Ed. Carocci, 290 páginas. O livro apresenta um enquadramento histórico da inteligência artificial e das questões éticas relacionadas desde as suas origens até ao Deep Learning).
Grande parte do sucesso da inteligência artificial reprodutiva, isto é, projetada (carros autônomos, assistentes de voz, armazéns da Amazon), depende do fato de que nós a envolvemos – às vezes sem nos dar conta, como quando compramos móveis debaixo dos quais o “Roomba” possa se enfiar – em um ambiente apto a torná-la eficaz.
O carro autônomo será totalmente seguro quando as estradas, os sinais de trânsito e a geolocalização criarem um habitat sob medida para ela: isso já ocorre com os “trens” de caminhões e os tratores autônomos que trabalham a terra nos cultivos extensivos dos Estados Unidos. Não é a inteligência artificial que se adapta a nós, somos nós que nos adaptamos a ela, e isso, enfatiza Floridi, absolutamente não é uma atitude de desprezo em relação às tecnologias inteligentes, pelo contrário, tende a valorizá-las o máximo possível.
Em um pequeno capítulo, Floridi examina o Machine Learning, o aprendizado automático por meio de redes neurais em várias camadas. O resultado às vezes é incrível, a máquina aprende com seus próprios erros melhorando continuamente os resultados (Deep Learning). É ainda um processo de engenharia reprodutiva ou é inteligência produtivo-cognitiva?
Somos tentados a escolher a segunda solução, porque não sabemos muito bem por meio de qual percurso a máquina chega ao resultado: continua sendo uma “caixa preta” até mesmo para quem a construiu. No entanto, as redes neurais, por mais sofisticadas que sejam, não são comparáveis às 100 mil conexões que cada um dos nossos 86 bilhões de neurônios tem com os outros. Há mais complexidade em um milímetro cúbico de substância cerebral do que em uma sala equipada com supercomputadores.
Para não a banalizar, não falaremos aqui da segunda parte do livro, a propriamente ética, que é também a mais encorpada em número de páginas. Em vez disso, é mais coerente encerrar falando sobre o último capítulo da primeira parte, dedicado aos desenvolvimentos previsíveis da inteligência artificial.
Depois da discussão já mencionada sobre os dados – big, small, históricos, híbridos, sintéticos – Floridi sugere que “ludicizar” ou “gamificar” os problemas (ou seja, tratá-los como jogos que representam um modelo do problema a ser resolvido) e “envolver” a inteligência artificial em ambientes aptos ao seu funcionamento são os caminhos mais promissores.
“Ludicizar” ou “gamificar” funciona maravilhosamente quando as “regras” são rígidas e bem definidas: por exemplo, no xadrez ou no Go, mas não no futebol. O xadrez e o Go, aliás, demonstram a utilidade dos “dados sintéticos”, porque a máquina aprende com as próprias partidas que joga contra si mesma no processo de autoaprendizagem. Apesar das inúmeras variantes das combinações possíveis, em jogos como o xadrez e o Go, as regras permitem focar a inteligência artificial na solução.
No futebol, as regras existem, mas estão demasiadamente sujeitas às interpretações e às improvisações dos jogadores e do árbitro. Quanto mais “ludicizável” for um problema, mais fielmente ele poderá ser modelado, e se a fidelidade for máxima, a máquina tirará o máximo proveito dos dados sintéticos que gera e mais perfeito será o “envolvimento”. A citação de Wiener é esclarecedora: “O melhor modelo material de um gato é outro gato, ou, de preferência, o mesmo gato”.
Aqui se insere a distinção entre problemas difíceis e problemas complexos. Geralmente, os cientistas definem como “complicados” problemas difíceis, mas tratáveis com o método reducionista que os decompõe em muitos problemas mais simples (partes do problema) e solúveis de modo unívoco – por exemplo, o funcionamento de uma proteína em um organismo vivo.
Em vez disso, consideram como complexos os problemas nos quais as interações entre as partes não podem ser previstas (modelizadas) a partir das partes individuais. Neste caso, é necessário abandonar o método reducionista e passar para um método holístico, talvez de tipo estatístico – é o caso do funcionamento de todo o organismo humano ou da atmosfera e do clima. Obviamente, o poder de cálculo necessário cresce fortemente (não linearmente) à medida que cresce a complexidade.
No mundo real, ressalta Floridi, dificuldade e complexidade costumam estar misturadas. Acender a luz é fácil e simples: de fato, a Alexa e a Siri fazem isso muito bem. Em vez disso, amarrar os sapatos é fácil (para um humano), mas complexo: tentem escrever passo a passo todas as operações que vocês fazem com os dedos, os braços e o corpo quando vocês os amarram (é um teste que eu faço nos meus cursos de divulgação científica). Lavar a louça é mais difícil do que acender a luz, mas menos complexo do que amarrar os sapatos, e amarrar os sapatos é menos complexo do que passar as camisas.
É instrutivo que a Nike ainda tenha que enfiar os cadarços à mão nos tênis que produz e que, para resolver o problema, não desenvolveu uma inteligência artificial que atue como os nossos dedos, mas inventou tênis automáticos eletrônicos “reinventando o conceito do que significa adaptar os sapatos aos pés: cada tênis tem um sensor, uma bateria, um motor e um sistema de cabos que, juntos, podem regular a adaptação por meio de uma equação algorítmica de pressão”.
Em suma – sugere Floridi – para obter uma inteligência artificial não inteligente, mas que se comporte como se fosse, devemos investir muita inteligência biológica (a nossa) na projeção dos problemas, e, no caso da inteligência artificial, projetar significa essencialmente “ludicizar” e “envolver”. Ou seja, em extrema síntese, a inteligência artificial é uma questão de design. Design do jogo e do ambiente para jogar.
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A inteligência artificial não precisa de inteligência: o pensamento de Luciano Floridi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU