Com o adjetivo “sophós”, muitas vezes traduzido como “sábio” ou “sapiente”, na Grécia arcaica era descrito o homem que possuía e aplicava um saber técnico, que às vezes se supunha até que lhe era conferido pelos deuses.
O comentário é de Valter Fraccaro, presidente do Siena Artificial Intelligence Hub e membro da Associação Italiana para a Inteligência Artificial. O artigo foi publicado em Innovando News, 02-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nessa mesma cultura, “saphés”, por sua vez, indicava aquilo que era claro, manifesto, visível. Bastaria captar a proximidade original desses dois termos para entender que as origens da “philosophĭa” estão ancoradas na concretude, ligada à definição e à interpretação do real, à necessidade de descrever aquilo que está “na luz”, aquilo que é evidente, perceptível.
É uma conotação que foi se perdendo na acepção desalinhada do termo “filosofia”, que, para muitas pessoas, é sinônimo de vago e inútil, de erudição vã, de conhecimento vazio de pensamentos difíceis, de vestes antigas com um lençol, de perucas germânicas, de economistas durões a soldo de um monocrata coroado.
Já a capacidade de Luciano Floridi de fazer esquecer em poucas páginas essa recente e redutora interpretação é um ótimo resultado, e o seu grande mérito é fazer isso falando do futuro sem jamais tentar prevê-lo.
Ler “Etica dell’intelligenza artificiale” [Ética da inteligência artificial] nos faz entender muito sobre a inovação digital, dando uma visão ampla e também profunda de como as coisas estão mudando e, mais importante ainda, da nossa responsabilidade comum de orientar essa mudança em um sentido que seja a favor do “nosso”, dos muitos, e não do “meu”, de poucos.
“Ética da inteligência artificial”, novo livro de Luciano Floridi (Foto: Divulgação)
Ao contrário do que se poderia supor, esse livro não será a conclusão de um percurso cujas etapas são os três livros anteriores de Luciano Floridi, publicados na Itália pela mesma editora: desde as primeiras páginas, o professor de Oxford e Bolonha explica que em breve aparecerá outra obra sobre a “política da informação”.
Isso também é um índice de como está sendo levado adiante um projeto atento, até mesmo minucioso, que visa a dar à sua sistematização dos aspectos lógicos, tecnológicos e éticos da inteligência artificial uma solidez incomum.
Nada de imprecisões sobre o tema específico e nenhuma digressão para áreas do pensamento filosófico que também confinam, ou até incluem, a inovação, e a inovação digital em particular.
Não falta ao autor a densidade do conhecimento para poder abordar temas que, de fato, aparecer em outras obras suas, como a relação entre ciência e política, entre trabalho e dignidade, entre forças econômicas e poder, mas tudo isso é posto de lado por enquanto, ou apenas mencionado, precisamente para dar aos leitores uma visão ordenada e profunda, exigente de entender, mas nunca insidiosa.
O estudioso escreve com um estilo linear e fluente, mas não pega na mão do leitor, não realiza missões educativas ou acessórias, não dá tapinhas nas costas, nem dá descontos, pelo contrário: “Este livro requer não apenas um conhecimento de nível universitário da filosofia, um pouco de paciência e de tempo, mas também uma mente aberta”.
No entanto, ele não tem pressa, muitas vezes voltando a retomar conceitos já expressados para fazê-los voltar à memória, para sincronizá-los com o que está nesta nova página, favorecendo o leitor, mas sempre relembrando-o para uma leitura consciente, não transitória: não é um livro de cabeceira, que prepare para o sono da noite.
Assim como o pensamento do seu autor está claramente estruturado, assim também é este texto divulgativo: desde o início e constantemente explica-se a sucessão dos assuntos e dos capítulos, e cada capítulo contém uma introdução e uma síntese final, de modo a facilitar a compreensão e agilizar a possibilidade de encontrar passagens específicas, também consultando a obra posteriormente.
Luciano Floridi, acima de tudo, permite entender onde se gera a incompreensão terminológica, explicando a diferença entre a pesquisa que visa a reproduzir o pensamento humano de forma digital e a inteligência artificial aplicada, um instrumento por meio do qual a inteligência humana explora as características que são próprias do computador para obter resultados impossíveis de outra forma, pelos limites fisiológicos da mente.
Daí deriva o resultado do qual a inteligência artificial é portadora: a habilidade de separar a capacidade de agir da inteligência, que, na nossa cultura, sempre pressupomos que estão interligadas.
O filósofo mostra, portanto, com precisão, os limites e poderes da inteligência artificial, como ela pode ser explorada contra o ser humano e como ela pode ser dirigida para o bem comum, as formas para condicionar essa inovação de maneira positiva, a atenção social que esta passagem histórica requer e em relação à qual não se voltará atrás.
Aprende-se muito com esse ensaio: a não temer as máquinas, a desmontar com a lógica os vendedores tanto de catástrofes futuras quanto de um amanhã inequivocamente melhor do que hoje, a reconhecer que a ética está para a inovação assim como a estática para a construção, que é possível não citar continuamente, mas que esse é o conjunto de leis físicas sem as quais tudo desaba sobre o próprio construtor.
Sem nunca decair ao nível biográfico, Luciano Floridi também se faz visível ao dizer de modo transparente as suas incertezas e usando às vezes um tom irônico para manter desperto o senso crítico do leitor, visando à compreensão e não à persuasão.
Pela escolha de certos nomes e não de outros na encorpada bibliografia que se segue ao texto, usando referências indiretas a hipóteses diferentes das suas, por meio da leveza cortês de uma página que acompanha a fatigante destreza a que um conceito difícil acaba de obrigar o leitor na página anterior, o estudioso também transmite a afabilidade que o tornou um orador público muito procurado e, particularmente nas redes sociais digitais, um crítico sutil dos seus colegas talvez ansiosos demais para se envolverem em rixas na televisão.
Há também uma edição atenta, de revisores que o autor cita e agradece, tanto que chegamos a duvidar que a repetição de uma mesma frase a poucas linhas de distância do fim do livro seja até desejada, apenas para despertar a atenção dos incautos que querem chegar apressadamente ao término da leitura.
É um livro feito para durar.
Nós o lemos hoje, e ele continuará sendo uma referência também ao longo do tempo, como raramente ocorre com ensaios que abordam a tecnologia, sujeito transeunte por definição: isso ocorre porque este trabalho fala da pessoa mais do que da máquina, da fraqueza humana em relação à responsabilidade, da ideia sedutora e incauta de confiar as escolhas mais difíceis à falsa imparcialidade de um processador, da coragem que se deve encontrar para agir com consciência; e pressagia atenção em vez de se abandonar à esperança fácil e insana de que tudo ficará bem por um destino imerecido.