Em seu novo livro “Il verde e il blu” [O verde e o azul, em tradução livre], Luciano Floridi sugere que, em uma sociedade da informação madura, o projeto humano deve unir políticas verdes (economia verde e compartilhada) e azul (economia digital e da informação), favorecendo um modo de vida ético, centrado na qualidade das relações e dos processos, ao invés do consumo e das coisas.
O sítio Linkiesta, 12-05-2021, publicou um trecho da obra. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em 2016, o Google utilizou um sistema de inteligência artificial da DeepMind para reduzir o consumo de energia dos seus data centers, obtendo uma economia de 15%. E grande parte da chamada share economy (economia compartilhada) seria impossível sem o digital.
Na Itália, por exemplo, em 2016, a partilha dos alojamentos gerida por meio de plataformas e aplicativos digitais levou a hospedar 3,6 milhões de turistas, em um volume de negócios de 3,6 bilhões de euros [23 bilhões de reais], equivalente a 0,22% do PIB [italiano].
Essa referência positiva à Itália não é casual. A estratégia verde-azul poderia se desenvolver de forma muito favorável no nosso país.
No setor da green economy (economia verde ou ecológica), a Itália já está na vanguarda da Europa. E o valor ambiental e cultural do país é obviamente excepcional.
Seria preciso investir muito nessas cartas já vencedoras. Seria preciso enquadrar a share e green economies como uma grande oportunidade de desenvolvimento e crescimento, em coordenação com uma robusta economia da experiência: bem-estar, cultura, enogastronomia, entretenimento, saúde, esporte, lazer e turismo.
Luciano Floridi. Il verde e il blu. Idee ingenue per migliorare la politica. Raffaello Cortina Editore, 2020, 278 páginas. (Foto: Divulgação)
Seria possível começar com a implementação do acordo climático de Paris, investindo no apoio direto (infraestruturas) e indireto (incentivos, desincentivos) à economia verde e azul; aplicando a Agenda 2030 da ONU para o desenvolvimento sustentável; e adotando as diretrizes europeias sobre a economia circular, baseada na reciclagem e na reutilização completa dos materiais.
E, acima de tudo, seria possível acelerar e fortalecer o desenvolvimento das tecnologias, dos serviços, das competências e dos investimentos digitais, em vista de uma sinergia estratégica digital-ambiental.
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Há décadas sabemos que estamos destruindo o planeta. É fácil demais jogar tudo sobre as costas dos políticos atuais. Eles também vivem neste planeta, têm família, sabem que a panela de pressão está prestes a explodir.
Mas eles têm que navegar entre aquilo que se deveria fazer – o que é difícil e muitas vezes impopular, veja-se a bagunça provocada por Macron quando aumentou o preço do diesel – e aquilo que os eleitores desejam, que às vezes é lindo, mas impossível, como a quadratura do círculo: padrões de vida altos para todos, custos baixos para todos, salvaguardando o ambiente e respeitando os direitos humanos.
O equilíbrio entre o desejado e o factível se chama consenso. O consenso não falta em palavras, mas nos fatos, porque os custos para salvar o planeta são imensos. Os números variam, mas a escala não. Arredondando, a contagem vai de 55 trilhões de dólares [292 trilhões de reais] para um aquecimento global de 1,5°C, passando por 70 trilhões de dólares [382 trilhões de reais] para 2°C, até 550 trilhões de dólares [2,9 quatrilhões de reais] se chegarmos a 3,7°C.
Considere-se que o PIB italiano em 2018 foi de cerca de 2,084 trilhões de dólares [11 trilhões de reais]. Estamos deixando para as gerações futuras uma dívida imensa, maior do que um buraco negro, em alguns casos apenas reparável, mas não mais reversível (por exemplo, as espécies extintas), com sofrimentos humanos e conflitos gigantescos.
Alguns acham que cada um de nós deve mudar os seus próprios comportamentos, porque isso ajudará a evitar esse meio-apocalipse em curso: banhos curtos, menos carne, menos aviões, menos carros, mais transportes públicos, reciclar, reutilizar, consertar, pouco aquecedor ou ar-condicionado, apagar a luz, não imprimir e-mails. Todas coisas justas, mas inúteis.
Usando um velho exemplo, é como se cada um de nós empurrasse um carro que não liga, se e quando pudermos, com a ideia de que todo pequeno esforço ajuda. Não é assim. Existe um limiar abaixo do qual todo esforço individual é nulo.
Kant tem razão: fazer o próprio dever não é certo porque é necessário; é certo mesmo que não seja necessário, para poder se olhar no espelho pela manhã e se reconhecer como humano. E saber que é inútil é vital, porque senão dormimos tranquilos à noite.
Em vez disso, a insônia da razão gera ideias e é importante, porque, para salvar o mundo, precisamos nos organizar, urgentemente. Precisamos de muita coordenação, porque, se todos fizermos a coisa certa (especialmente votando), então a universalidade do comportamento (Kant de novo) fará uma grande diferença. E é preciso um consenso que não seja contraditório.
Mas como fazemos para nos coordenar? Com sacrifício, boa legislação, aliando o público e o privado na única guerra que devemos combater, aquela contra o fim do mundo e contra uma sociedade iníqua, e com muita tecnologia digital, para saber mais, monitorar melhor e coordenar os esforços para empurrar todos juntos.
E como se faz para criar um mundo que seja acolhedor para todos? Melhorando radicalmente o modo como inovamos, produzimos e consumimos produtos e serviços. E também aqui o digital pode ajudar: para fazer melhor, mais e outras coisas, com muito menos ou de formas alternativas.
A dívida que deixaremos a quem vier depois de nós será tão inferior quanto melhor for o casamento entre o verde do ambientalismo, da economia circular e da partilha, com o azul das tecnologias digitais a serviço da humanidade e do planeta.
Por meio do digital, temos que passar de um capitalismo consumista para um capitalismo do cuidado. Não será fácil, mas é o projeto humano para o nosso século.
[...]
Hoje, a tecnologia pode se tornar a melhor aliada da natureza. O problema é que temos pouco tempo. Portanto, não podemos confiar apenas nas forças do mercado, que, por sua vez, podem exigir tempos ilimitados.
Os mercados consomem, acima de tudo, tempo, um recurso de que sempre precisam, porque, “mais cedo ou mais tarde, o equilíbrio certo emerge”; mesmo que seja verdade, não se diz quão longo é o “mais tarde”.
Por isso, precisamos ajudar os mercados com políticas clarividentes de investimento na inovação e na formação stem (science, technology, engineering, mathematics [ciência, tecnologia, engenharia, matemática]), de intervenções legislativas para promover a economia circular e de educação dos consumidores para fazerem escolhas mais inteligentes.
Não é pouco, mas pode ser feito e deve ser feito imediatamente. Não só para não jogar fora nada de comida, mas sobretudo para salvar os animais e os vegetais. Então, tudo são rosas com a nova aliança entre o verde e o azul?
Não exatamente. O digital não é uma panaceia. É um tratamento e, como tal, apresenta tanto custos quanto contraindicações. Pode fazer muito bem ao ambiente e à economia, mas não a custo zero ou sem riscos.
O desafio é que o impacto positivo salve o nosso planeta e a sociedade humana antes que outros fatores, incluindo o impacto negativo do digital, o destruam. O que significa que a contagem regressiva já começou. Não temos séculos à disposição, apenas décadas. Talvez algumas gerações.