Oposição ao Papa Francisco está enraizada na rejeição ao Vaticano II. Artigo de Massimo Faggioli

O Papa Francisco segura o Lecionário, o livro de leituras da missa, que foi usado durante o Concílio Vaticano II. O lecionário especial fez parte da celebração na Basílica de São Pedro no dia 26 de janeiro de 2020, primeiro Domingo da Palavra de Deus, uma nova celebração anual que incentiva os católicos a conhecerem e a lerem a Bíblia, como desejava o Vaticano II (Foto: CNS/Vatican Media/NCR)

05 Abril 2022

 

“O pontificado de Francisco está em batalha, no nível teológico, em grande parte e principalmente devido à sua recuperação do Vaticano II. O que está em jogo não é apenas a comunhão com o bispo de Roma, mas também a viabilidade da tradição magisterial e intelectual católica.”

 

Publicamos aqui o discurso de abertura proferido pelo historiador italiano Massimo Faggioli em um congresso para um grupo de bispos dos Estados Unidos entre os dias 25 e 26 de março, em Chicago, intitulado “Papa Francisco, Vaticano II e o caminho pela frente”.

 

O evento foi co-organizado pelo Hank Center for the Catholic Intellectual Heritage da Loyola University Chicago, pelo Boisi Center for Religion and American Public Life do Boston College e pelo Center on Religion and Culture da Fordham University.

 

O discurso foi publicado em National Catholic Reporter, 04-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

A primeira coisa a reconhecer quando falamos hoje do Concílio Vaticano II é a lacuna entre o horizonte de expectativas levantadas pelo Concílio e a situação da Igreja Católica hoje, especialmente nos Estados Unidos. O Vaticano II chamou os católicos à unidade: unidade na única família humana, com não cristãos e não crentes, com cristãos de outras tradições e com outros católicos.

 

Mas, nestes últimos anos, vimos que o chamado fundamental do Vaticano II à unidade por meio da reconciliação muitas vezes se transformou em uma fonte de amarga divisão e contenda, às vezes flertando perigosamente com o cisma. Isso é paradoxal, porque a reconciliação talvez seja ainda mais original como uma intenção do Vaticano II do que o chamado à reforma da Igreja.

 

Temos visto tudo isso com chocante clareza durante o pontificado de Francisco. Isso é mais do que uma sobreposição cronológica. Há um paralelo entre a rejeição do Vaticano II e a relação entre a Igreja nos Estados Unidos e o Papa Francisco. A oposição ao Papa Francisco está enraizada na oposição ao Vaticano II – uma crise teológica que não começou com este pontificado.

 

Trata-se de um problema que não é apenas teológico, mas também eclesial, ou seja, tem profundas consequências na forma como todos os católicos experimentam a sua vida de fé na Igreja. Portanto, é um problema que precisa ser abordado. Também porque seria ingênuo pensar que é um problema criado por Francisco e que desaparecerá com o próximo pontificado. Assim, esta é uma tentativa de análise do problema, para oferecer algumas soluções possíveis.

 

Fases na recepção do Vaticano II

 

Apesar de algumas limitações na redação dos documentos finais sobre a necessidade de a Igreja acertar as contas com o passado, o Vaticano II levou a história a sério. Devemos fazer o mesmo em relação à história do pós-Vaticano II, ou seja, tentar identificar diferentes fases históricas a fim de compreender as origens de uma crise na recepção do Vaticano II.

 

Um modo de olhar para a questão da recepção do Vaticano II é que a recepção de um concílio como o Vaticano II leva muito tempo, pelo menos um século para ser totalmente implementada. Isso é verdade se olharmos, por exemplo, para a história da recepção do Concílio de Trento. O maior historiador do Concílio de Trento, o alemão Pe. Hubert Jedin, observou, já nas primeiras linhas do seu livro “História do Concílio de Trento”, em vários volumes, que o primeiro século após o fim do Concílio foi moldado pelo choque de narrativas históricas e teológicas sobre o Concílio entre o irmão servita veneziano Paolo Sarpi e o jesuíta romano Francesco Sforza Pallavicino.

 

Apenas três séculos depois, em meados do século XX, tornou-se possível escrever um relato dessa virada teológica e eclesial que foi Trento – algo mais do que uma batalha entre “acusação e defesa”.

 

“Concílio de Trento”, uma pintura de 1588 de Pasquale Cati na Basílica de Santa Maria em Trastevere em Roma (Foto: Wikimedia Commons/Anthony Majanlahti)

 

Ao mesmo tempo, escolher uma periodização mecanicista – isto é, esperar que a plena recepção do Vaticano II ocorra necessariamente nos próximos 50 ou 200 anos – é arriscado, porque ignora o fato de que, na história da Igreja, houve concílios fracassados: concílios que não cumpriram seus objetivos declarados (o Concílio de Ferrara-Florença, de 1438 a 1445, um concílio de “união” com as Igrejas ortodoxas orientais), ou que fundamentalmente perderam de vista o que estava ocorrendo (o Quinto Concílio de Latrão, de 1512 a 1517, que concluiu imediatamente antes do início da Reforma), ou que foram sobrecarregados por fatores externos e cuja trajetória se tornou substancialmente diferente do que o Concílio tinha em mente (o Concílio de Moscou para a Igreja Ortodoxa Russa, de 1917 a 1918).

 

Ora, o Vaticano II não é um concílio fracassado. Apesar das conhecidas diferenças e tensões, há um consenso fundamental entre o magistério papal, o sensus fidelium no povo de Deus e a tradição teológica sobre o fato de que os ensinamentos do Vaticano II representam um desenvolvimento, um crescimento na nossa compreensão da Revelação de Deus. No mínimo, os “sinais dos nossos tempos” representam a evidência da necessidade de reorientação da Igreja Católica no Vaticano II.

 

Mas devemos reconhecer que vivemos em um tempo de interrupção na recepção do Vaticano II nos Estados Unidos – e essa crise já existe há bastante tempo. Precisamos entender o estado atual da recepção do Vaticano II, especialmente nos Estados Unidos, para não ficarmos presos em narrativas que postulam uma direção rumo a um fim pré-determinado.

 

Na literatura sobre o Vaticano II, existem diferentes periodizações do período pós-conciliar. Poucas delas tentam lidar com o fato de que o Vaticano II foi um concílio para a Igreja global, recebido pela Igreja global em uma linha do tempo que pode variar drasticamente de país para país, e de continente para continente.

 

As periodizações dos anos pós-Vaticano II ainda tendem a se apegar a perspectivas ligadas a histórias nacionais ou (na melhor das hipóteses) continentais. Ainda não temos uma história global da Igreja Católica pós-Vaticano II, muito menos uma narrativa aceita do pós-Vaticano II global – algo que é mais possível para os períodos de recepção e de aplicação dos concílios anteriores, visto que o impacto deles pode ser medido em uma Igreja Católica predominantemente europeia e mediterrânea (pelo menos em seus modelos idealizados).

 

O então Pe. Joseph Ratzinger ao lado do padre dominicano francês Yves Congar durante o Concílio Vaticano II em 1962. Ratzinger, que se tornou o Papa Bento XVI, ganhou a reputação de teólogo progressista durante o Vaticano II (Foto: CNS/KNA/NCR)

 

Mas, para a nossa intenção aqui, basta dividir as três primeiras décadas em três períodos.

 

O primeiro é a era do Vaticano II reconhecido, recebido ou rejeitado – os 15 anos entre 1965 e o fim da década de 1970: o tempo da implementação da reforma litúrgica, das traduções e da divulgação dos textos finais do Concílio, dos grandes comentários escritos principalmente por aqueles homens que ajudaram a redigir os textos finais do Concílio. A rejeição do Vaticano II limitou-se a pequenas alas de extremistas – alas tanto na Igreja quanto na sociedade – que articulam sua oposição com base na nostalgia da Cristandade pré-secularização e nas alegações de violação pelo Vaticano II da continuidade da tradição. Ela ainda não se baseava em argumentos sociopolíticos, isto é, na suposta evidência do fracasso do Vaticano II em reenquadrar as relações entre a Igreja e o mundo.

 

Um segundo período é o do Vaticano II lembrado, reconsiderado e expandido – a década de 1980. É o tempo do esforço do Papa João Paulo II de estabilizar a recepção do Vaticano II mantendo juntos “a letra e o espírito” (o sínodo extraordinário de 1985) e de “institucionalizar” o Vaticano II (o Código de Direito Canônico de 1983, o projeto de Catecismo lançado após o sínodo de 1985). Ao mesmo tempo, João Paulo II impulsionou o ensino da Igreja para além das fronteiras da letra do Vaticano II, especialmente sobre o ecumenismo e o diálogo inter-religioso (particularmente com o judaísmo e o islamismo).

 

O terceiro período é o do Vaticano II historicizado e lamentado – os anos 1990 e o início dos anos 2000: o período do esforço de escrever a narrativa mestra sobre a história do Vaticano II ao mesmo tempo em que se tentava diminuir a importância das aberturas do Concílio pela Igreja institucional em uma repreensão aos apelos ao “espírito”. Mas ainda havia entre os católicos das duas alas uma fidelidade (embora às vezes nominalista) à letra do Vaticano II e à legitimidade da tradição conciliar que se estende até o Vaticano II e o inclui.

 

É nesse terceiro período, 30 anos após a celebração do Concílio, que começa a crise da recepção do Vaticano II nos Estados Unidos, e isso ativa o desvio de grandes bolsões do catolicismo estadunidense em relação a uma recepção eclesial do Vaticano II.

 

Por um lado, na teologia acadêmica, há o início de sintomas de distanciamento da Igreja institucional, mas também de uma conexão com a experiência vivida do povo de Deus, de uma forma mais drástica do que em qualquer outro lugar do catolicismo global. É a ascensão de um horizonte pós-eclesial graças também a uma falsa polaridade entre instituição e sociedade, como argumentada pelo filósofo italiano Roberto Esposito. Não foi apenas uma relativização saudável da Igreja institucional em favor do transcendente. Foi também o fracasso em reconhecer que o elemento institucional no catolicismo também permite que diferentes tipos de culturas teológico-espirituais e diferentes sujeitos construam a catolicidade da Igreja.

 

Por outro lado, há a ideologização neoconservadora do catolicismo, que nos anos 1990 ainda mostrava um certo respeito (pelo menos nominalmente) pelo Vaticano II. É a onda longa e a versão católica estadunidense do “retorno de Deus” na política, sobre o qual Gilles Kepel escreveu há cerca de três décadas. Mas nos Estados Unidos há também a perigosa virada para uma cultura clerical de identificação da catolicidade com um modelo particular de liderança papal. Do lado conservador e tradicionalista do espectro, no início dos anos 2000, o papado ainda dava uma legitimidade importante ao Vaticano II.

 

Mas a interpretação do Papa Bento XVI sobre o Vaticano II foi diferente da de João Paulo II. Do famoso – e muitas vezes mal citado – discurso de Bento XVI à Cúria Romana de 22 de dezembro de 2005 em diante, a polaridade “continuidade e reforma versus descontinuidade e ruptura” tornou-se como que um mantra. O argumento da “continuidade com a tradição do Concílio”, apresentado no início como um argumento contra a tese lefebvriana sobre o Vaticano II como uma “ruptura” com a tradição católica, logo se voltou contra qualquer ideia de “reforma” – que de fato era uma parte daquele discurso crucial de Bento XVI de dezembro de 2005.

 

Essa proteção dada pelo papado à legitimidade do Vaticano II durou apenas até o fim do pontificado de Bento XVI e tornou perigosamente mais fácil negociar um tipo de fonte eclesial sobre a identidade por outra em favor de um novo papalismo. Isso ocorreu às custas de um sentido saudável da tradição católica – o que foi irônico ou trágico para um teólogo como Joseph Ratzinger, que esteve entre os principais autores e intérpretes de documentos-chave do Concílio como a Lumen gentium e a Dei Verbum.

 

Um dos efeitos da identificação nos Estados Unidos entre o pontificado de Bento XVI e a resistência católica ao progressismo teológico foi a criação das premissas para a transição do conservadorismo do Vaticano II para uma rejeição neotradicionalista ao Vaticano II entre as elites intelectuais e clericais católicas nos Estados Unidos. Foi uma virada de chave: uma rejeição não mais apenas aos vagos apelos ao “espírito”, mas também uma rejeição à letra, aos documentos do Vaticano II e à sua teologia. Os efeitos explosivos dessa expansão do front católico anticonciliar ficaram claros a partir de março de 2013.

 

Uma nova fase com Francisco

 

A interrupção na recepção do Vaticano II tornou-se uma crise da comunhão eclesial durante o pontificado de Francisco. Mas isso começou antes ainda do início do seu pontificado: as vozes neoconservadoras e neotradicionalistas dentro do episcopado estadunidense sentiram-se órfãs subitamente no dia 11 de fevereiro de 2013, quando Bento XVI anunciou a sua renúncia.

 

Havia órfãos do pontificado de Bento XVI na Cúria Romana, entre bispos, teólogos e políticos. Mas esse sentimento de perda foi particularmente agudo nos Estados Unidos por causa do sentimento (em grande parte equivocado) de que Joseph Ratzinger – Bento XVI – havia virado a mesa em relação ao Vaticano II: a expectativa de que ele tivesse resolvido para sempre a disputa sobre a interpretação do Concílio – como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, primeiro, e depois como papa.

 

Mas a globalização e a desocidentalização do catolicismo – uma das mais fortes intuições do Vaticano II – teve um efeito sobre o conclave de 2013. Não apenas um papa “quase do fim do mundo”, como disse Francisco em seu primeiro discurso ao povo reunido na Praça de São Pedro naquela noite de março de 2013. O pontificado de Francisco coincidiu e em parte contribuiu para a transformação do vínculo eclesial transatlântico entre o papado e o catolicismo estadunidense.

 

Isso se baseava no fato de que a eleição do Papa Francisco, no dia 13 de março de 2013, indubitavelmente mudou o panorama da Igreja e especialmente do debate sobre o Vaticano II. Desde as primeiras semanas e meses do seu pontificado, o Papa Francisco mostrou uma recepção plena e inequívoca do Vaticano II, graças também ao debate teológico e eclesial sobre o Vaticano II, que nestes últimos 50 anos nunca deixou de fazer parte da vida real da Igreja universal.

 

O Papa Francisco inaugurou uma nova fase na recepção do Vaticano II, e não apenas pelo desaparecimento da defesa de questões tradicionalistas e anti-Vaticano II da agenda do Papa Francisco e da sua Cúria Romana (especialmente na Congregação para a Doutrina da Fé). Os pontificados do século passado haviam sido todos definidos (em diferentes medidas) pelo debate histórico-teológico em relação ao Concílio:

Pio XII, o papa mais citado nos documentos do Vaticano II, e o seu fracasso em reconvocar o Vaticano I;

João XXIII, convocador do Concílio;

Paulo VI, que foi explicitamente eleito para dar continuidade ao Concílio e que o levou à sua conclusão às custas de concessões significativas em relação a alguns dos sonhos de reforma que surgiram do Concílio;

João Paulo I, Padre conciliar da “segunda fileira”;

João Paulo II, o último papa que foi membro do Vaticano II, figura-chave do Vaticano II e ao mesmo tempo “estabilizador” do Concílio;

Bento XVI, um dos peritos mais importantes do Vaticano II e, como papa e cardeal, o mais importante “executor” teológico do Concílio e de suas interpretações.

 

O Papa Francisco interrompeu essa linha de papas biograficamente envolvidos no Vaticano II por razões biográficas (ele foi ordenado padre em 1969), mas também pela herança específica da Igreja na América Latina. O jesuíta argentino Bergoglio percebe o Vaticano II como um assunto que não deveria ser reinterpretado ou restringido, mas implementado e expandido (em algumas questões mais do que em outras). Sua relutância em teorizar sobre diferentes tipos de hermenêutica do Vaticano II não deve ser vista como indiferença ou ignorância da centralidade da questão hermenêutica.

 

Fiel às intuições do Vaticano II (que foram expressadas apenas de maneira parcial nos documentos finais do Concílio), Francisco fala do valor teológico da pobreza espiritual como condição para aceitar o Evangelho de Jesus Cristo e propõe uma necessidade radical e contínua de que a Igreja e os cristãos estejam ao lado dos pobres, no sentido da pobreza existencial e econômica. Essa ênfase na justiça social faz parte da eclesiologia de Francisco, uma “eclesiologia do povo de Deus”, que tem claras implicações também no nível de um estilo e estrutura de governo da Igreja mais conciliares.

 

Francisco fala sobre uma maior colegialidade com os bispos e sobre uma maior sinodalidade nos vários níveis da Igreja. Os documentos e os gestos de diálogo de Francisco com o Islã são paralelos apenas aos documentos e aos gestos de diálogo de João Paulo II com os judeus.

 

Mas o problema da autoridade do Vaticano II como parte da tradição não foi resolvido e tornou-se mais grave na situação que o Papa Francisco herdou. Especialmente em torno da Traditionis custodes e da questão litúrgica à luz da eclesiologia da reforma litúrgica, houve alguns sinais mistos e confusos da Santa Sé nos últimos meses.

 

O Papa Francisco segura o Lecionário, o livro de leituras da missa, que foi usado durante o Concílio Vaticano II. O lecionário especial fez parte da celebração na Basílica de São Pedro no dia 26 de janeiro de 2020, primeiro Domingo da Palavra de Deus, uma nova celebração anual que incentiva os católicos a conhecerem e a lerem a Bíblia, como desejava o Vaticano II (Foto: CNS/Vatican Media/NCR)

No entanto, ainda é verdade que em Francisco há uma forma particular de falar sobre o Vaticano II sem mencioná-lo explicitamente ou sem citar seus documentos. Essa é também uma expressão da recusa em identificar o Vaticano II com a letra dos seus documentos de uma forma legalista. Francisco fala sobre o Vaticano II sem cair no sentimentalismo dos veteranos. Ele faz isso por meio da tradição católica da qual o Vaticano II se tornou parte: mediante citações de São Paulo VI, deixando os documentos das Conferências Episcopais falarem em suas encíclicas e exortações, e recuperando as intuições fundamentais do Vaticano II como parte da missão da Igreja.

 

A filosofia da polaridade em tensão de Francisco ainda está tentando resolver a polarização entre extremismos opostos sobre o Vaticano II: entre aqueles que veem o Vaticano II como moderno demais para ser católico e aqueles que o veem como católico demais para ser moderno; entre a narrativa do status quo e uma narrativa pós-eclesial; entre o espírito e a letra; entre o ressourcement e o aggiornamento; entre a defesa de um sistema institucional tridentino e os sonhos ingênuos de uma tábula rasa.

 

Uma das contribuições mais importantes de Francisco para a recepção do Vaticano II provavelmente foi em termos de “exorcizar” a oposição – no sentido de revelar os espíritos não eclesiais ou antieclesiais que impulsionam a rejeição ao Vaticano II. Vimos isso ultimamente na questão da reforma litúrgica, que é historicamente a forma pela qual a oposição aos ensinamentos do Vaticano II tentou encontrar uma legitimidade impossível com um argumento da tradição que, na verdade, é uma rejeição ao modo como a tradição católica funciona.

 

A atual ruptura eclesial e o Vaticano II

 

O que vimos durante os últimos nove anos na Igreja nos Estados Unidos, em termos de oposição ao Papa Francisco, desafia a imaginação e também distorce as nossas expectativas sobre a Igreja de uma forma perigosa. Assistimos a desafios rebeldes e sem precedentes – às vezes vindos de membros do clero – à legitimidade do bispo de Roma que são claramente incompatíveis com o sensus ecclesiae.

 

É um fenômeno que não se limita às mídias sociais. É algo fundamentalmente diferente da “dissidência” contra alguns aspectos do magistério papal que vimos na época de Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI. E é algo que deve ser denunciado por aquilo que realmente é, sem silêncios táticos e sem complacência.

 

Isso não significa que podemos ignorar o contexto em que ocorre essa ruptura eclesial. Primeiro, houve uma mudança na percepção do Vaticano II em comparação com o início do período pós-conciliar. Ele costumava ser contado como um dos mais importantes na história da Igreja. Alguns o viam como uma libertação, outros como uma catástrofe, mas concordaram que ele havia mudado a Igreja. Por mais de 50 anos, esse veredito se manteve mais ou menos incontestável. Agora não mais.

 

Os críticos pós-modernos desconstruíram as grandes “metanarrativas” históricas, nas quais as revoluções podiam ter um lugar central. A ascensão de uma sensibilidade global, pós-colonial ou descolonial colocou em questão as conquistas aparentemente mais significativas do Vaticano II.

 

O cristianismo e a Igreja Católica nos Estados Unidos fazem parte – em ambas as alas – daquilo que foi chamado pelo ensaísta indiano Pankaj Mishra de “a era da raiva” – um mundo em que aqueles que não puderam desfrutar das suas promessas de liberdade, estabilidade e prosperidade são cada vez mais suscetíveis aos demagogos. Mishra (que, em geral, não é um grande fã do catolicismo) chamou o Papa Francisco de “o intelectual público mais convincente e influente hoje. (...) Em uma ironia picante, ele é a voz moral da Igreja que foi a principal adversária dos intelectuais do Iluminismo enquanto estes construíam o andaime filosófico de uma sociedade comercial universal”.

 

O contexto para a ruptura eclesial tem sido diferente em diferentes áreas, mas nos Estados Unidos a situação é muito particular: embora a narrativa da esquerda católica sobre o Vaticano II não seja clara, no lado direito do espectro a visão do Vaticano II como uma catástrofe resistiu à desconstrução pós-modernista, por diferentes razões. Em apenas 20 anos, esta é uma Igreja cujos membros viram o pêndulo balançar do Grande Jubileu do ano 2000 para a revelação dos abusos sexuais envolvendo alguns dos membros mais poderosos da hierarquia – em que o catolicismo estadunidense foi o marco zero para a crise global dos abusos na Igreja. As polarizações teológica e política têm se alimentado mutuamente – uma teologização das identidades políticas e uma politização do discurso eclesial.

 

Outro fator-chave é a mudança nas percepções do ecumenismo e do diálogo inter-religioso entre a época do Concílio e agora, neste mundo do século XXI pós-11 de setembro e em nova Guerra Fria. Passamos de uma narrativa do encontro para uma narrativa do confronto e do conflito.

 

Comparado com as décadas de 1960 e 1970, o catolicismo tem que se engajar com crenças mais assertivas (tanto religiosa quanto politicamente) em todo o mundo, assim como com um secularismo mais assertivo. Isso coincidiu com um aumento dos convertidos que trazem um conjunto diferente de expectativas para a sua compreensão da tradição da Igreja, a qual dá uma maior ênfase aos Padres da Igreja, ao Catecismo e aos ensinamentos papais do que à tradição conciliar, incluindo o Vaticano II. E isso, por sua vez, introduz novas interpretações dos períodos históricos.

 

Em geral, é inegável a enorme lacuna em termos de expectativas entre a geração de católicos que cresceu com o Vaticano II e as gerações mais jovens das nossas paróquias, salas de aula e locais de trabalho. A situação da Igreja e do mundo de hoje ecoa menos “as alegrias e esperanças” e mais luctus et angor, “as tristezas e as angústias” (as palavras imediatamente após o incipit da Gaudium et spes).

 

Mas há também fragilidades sistemático-teológicas na recepção e transmissão do magistério conciliar que submeteram o catolicismo à infiltração ou até o tornaram um motor de raiva e desencanto:

 

- o debate litúrgico como parte da política identitária pós-moderna e das “guerras culturais”;

- a eclesiologia reduzida a imitar o imaginário social (da societas perfecta de Belarmino aos modelos seculares de “sociedade perfeita”), e um imaginário eclesial em grande parte surpreendido, senão confundido, pelo chamado de Francisco à sinodalidade – em que o “caminhar juntos” sinodal tem que lutar contra uma mentalidade do “caminhar para fora”, segundo a nova “extra Ecclesiam, sola salus” (a única salvação é sair da Igreja);

- uma perda da teologia da Dei Verbum na abordagem à revelação de Deus como sacramental, aberta ao crescimento na compreensão, fundamentalmente diferente tanto do intelectualismo quanto do doutrinalismo;

- a redução da religião a noções teóricas e à ética, em um ambiente dominado pela natureza às vezes utópica da denúncia profética da voz da religião no nosso debate público;

- a adoção do libertarianismo econômico e social (como vimos durante a pandemia da Covid-19 nestes últimos dois anos) contribuindo para a crise da nossa democracia – fruto da damnatio memoriae da Gaudium et spes (que é um dos documentos mais importantes – senão até o mais importante – do Vaticano II para o Papa Francisco);

- uma redução da doutrina conciliar da liberdade religiosa a uma libertas Ecclesiae que ecoa a Cristandade medieval;

- um tipo de ecumenismo politicamente partidário que tornou urgente a necessidade de um ecumenismo intracatólico;

- a globalização das “guerras culturaisestadunidenses, que nos deu o sombrio dividendo de uma visível falta de unidade nas cruciais emergências domésticas (o ataque do dia 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio) e internacionais (a guerra na Ucrânia): uma falta de unidade não apenas sobre as medidas políticas, mas também sobre a própria natureza moral e espiritual do confronto entre democracia e autoritarismo.

 

A lista de ensinamentos conciliares esquecidos poderia continuar. Mas o fenômeno mais perturbador é a transição de uma crise de autoridade eclesial para uma crise de autoridade do Vaticano II e, portanto, para um colapso de um sentido saudável da tradição: uma ideia dinâmica e orgânica da tradição; a letra da tradição não como paradigma de compreensão, mas como expressão do ato de compreender; uma mudança de uma compreensão cognitiva e proposicional para uma compreensão personalista e dialógica da revelação.

 

O debate público na Igreja entre teólogos e bispos parecia ter sido substituído por um cisma crescente, criado por aqueles que veem na interpretação do Vaticano II um ponto de ruptura agora mais simbólico do que textual: a partir desse ponto de vista, estaríamos agora muito além da dialética “letra versus espírito” ou “evento versus documentos”. Não mais apenas o espírito ou o evento, mas também a própria letra e os documentos do Vaticano II estão agora sob a influência do revisionismo e do revanchismo – o que não tem nada a ver com a ideia de que os textos do Vaticano II não são a palavra final: eles também estão sujeitos ao crescimento na compreensão.

 

O aspecto mais típico e trágico da crise de recepção do Vaticano II – para um país rico em recursos como os Estados Unidos – é uma “interrupção” na tradição acadêmica de estudos sobre o Concílio. Estudar o Concílio requer fluência em latim e em outras línguas, e um ecossistema intelectual em que a teologia se baseie na conversa com a história da Igreja e a história da teologia, não apenas com as ciências sociais.

 

Por exemplo, ainda não há nenhum consenso sobre a tradução para o inglês, sendo que a última delas já tem mais de 25 anos de idade (isso está longe de ser um problema puramente teórico: em um artigo recente, o jesuíta australiano Gerald O’Collins apontou para o fato de que as traduções inglesas dos documentos do Vaticano II basicamente apagaram as referências explícitas à lectio divina, traduzida erroneamente como “leitura espiritual”, o que não envolve a meditação e diz respeito a textos não bíblicos). Existem estudos importantes sobre os Estados Unidos e o Vaticano II, mas a última história estadunidense do Vaticano II é “What Happened at Vatican II”, de John O’Malley, publicado em 2008, durante o pontificado de Bento XVI [em português, “O que aconteceu no Vaticano II”, Ed. Martins Fontes, 2014].

 

Um fator relacionado é uma ruptura da convivência e da colaboração que costumavam caracterizar a “relação de trabalho” entre teólogos profissionais, leigos católicos e a Igreja institucional e hierárquica. Para a Igreja na América Latina e na Europa, por exemplo, pode-se ver claramente que, no pós-Vaticano II, houve três fases distintas:

 

- a lua de mel entre bispos e teólogos no Vaticano II;

- um tempo de divórcio ou de separação que começou no fim dos anos 1970 e 1980 até o início dos anos 2000;

- na última década, vislumbres de reconciliação, graças também ao pontificado de Francisco.

 

Essa reconciliação não está ocorrendo nos Estados Unidos. Isso é resultado das perigosas tensões intracatólicas – eclesiais e políticas – que se desenvolveram nesse país ao longo dos anos desde a publicação dos comentários em vários volumes sobre os documentos do Vaticano II.

 

Outros países não experimentaram isso no mesmo grau; nas últimas duas décadas, grandes redes de teólogos na Itália, Alemanha, Espanha e América Latina produziram (ou pelo menos traduziram aos seus idiomas) importantes séries de comentários sobre o Vaticano II. A falta de trabalho histórico-teológico sobre o Vaticano II nos Estados Unidos tem consequências para os estadunidenses que desejam estudar o Concílio, mas também para todos os católicos estadunidenses. Parece haver mais espaço agora na academia teológica católica para a teologia pré-Vaticano II e anti-Vaticano II, de um lado, e para uma teologia pós-Vaticano II com menos compromissos eclesiais discerníveis, de outro. O Vaticano II, em si mesmo, está preso em uma espécie de “terra de ninguém” intelectual e eclesial.

 

Vaticano II e sinodalidade: “caminhar juntos” versus “caminhar para fora”

 

Este é um momento de crise eclesial no contexto de uma crise cultural, política e social mais ampla. Mas, nesses últimos 60 anos, a Igreja Católica nos Estados Unidos foi e é uma parte importante do processo de recepção do Vaticano II, assim como e, em alguns casos, mais do que outras Igrejas ao redor do mundo. A Igreja nesse país tem à sua disposição vastos recursos e uma vitalidade que não é fácil de encontrar em outras Igrejas.

 

Para uma recuperação do Vaticano II e do pontificado do Papa Francisco e, em longo prazo, de um sentido saudável da Igreja, há duas formas possíveis de enfrentar o lamentável estado de recepção do Concílio na nossa Igreja – e esta é uma rota que exige que a liderança dos bispos seja seguida pelo clero, teólogos, lideranças leigas neste vasto mundo que é o catolicismo estadunidense.

 

A primeira forma é teológica:

 

- é necessário recuperar integralmente o Vaticano II, não apenas as quatro constituições, mas também todos os documentos, pois alguns deles são usual e injustificadamente inferiores (especialmente a Nostra Aetate, sobre as religiões não cristãs, e a Dignitatis Humanae, sobre a liberdade religiosa).

- todos os documentos finais do Vaticano II são indispensáveis para que todo o Vaticano II fale de forma intertextual e dialógica com o magistério papal.

- devemos levar a sério a historicidade do Concílio, não apenas a letra dos documentos, mas também o espírito do Concílio, sem nunca separar ou opor os dois, como disse o Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985.

 

- devemos reconhecer as questões sobre as quais o Vaticano II silenciou ou chegou cedo demais e reconhecer que alguns aspectos da teologia conciliar precisam ser completados de forma compatível com o modus procedendi da tradição – algo que já ocorreu graças também ao magistério papal: sobre as mulheres, sobre o racismo, sobre o colonialismo. Isso pode ser feito sem acusar o Vaticano II de ser banal e reconhecendo a dívida que temos para com os Padres conciliares, os peritos e todos aqueles que contribuíram para aquilo que chamamos de “Vaticano II”.

 

- Tudo isso não ocorre e não precisa ocorrer em eventos que lembram o Vaticano II, alimentando o sentimentalismo dos veteranos, de um lado, e alienando as gerações mais jovens, de outro. A nossa linguagem teológica precisa ser não apologeticamente conciliar, até mesmo e especialmente sem o rótulo “Vaticano II”.

 

Em segundo lugar, no nível da vida eclesial:

 

- é urgente desvincular o Vaticano II das narrativas partidárias – eclesialmente partidárias e politicamente partidárias. Assim como outros grupos do cristianismo estadunidense, os “católicos do Vaticano II” devem parar de consultar a si mesmos para obter orientação.

- Não há nenhum futuro para o Vaticano II e o catolicismo em geral sem a inclusão dos católicos latinos, negros e asiáticos estadunidenses. O Vaticano II ainda é percebido nos Estados Unidos (também na academia) como “o último grande acontecimento” (e não o próximo) para o catolicismo branco-europeu.

- É urgente preencher a lacuna entre os bispos e a teologia. Isso não está prejudicando apenas os bispos e a teologia, mas também toda a Igreja.

- A sinodalidade é a grande oportunidade para reviver um sentido inclusivo e saudável da Igreja. Como John O’Malley escreveu recentemente na revista America, “embora o chamado do Papa Francisco seja totalmente tradicional, ele é radicalmente novo na amplitude que entrevê. Isso não deve nos escandalizar, mas sim nos energizar. Estamos entrando em um grande projeto, e a nossa responsabilidade pelo seu sucesso é tão grande quanto o próprio projeto”.

 

Em conclusão, como o Papa Francisco escreveu no prefácio de um livro recente de coautoria do cardeal Michael Czerny e Christian Barone, “é necessário tornar mais explícitos os conceitos-chave do Concílio Vaticano II, os fundamentos dos seus argumentos, seu horizonte teológico e pastoral, os argumentos e o método que usou”.

 

O pontificado de Francisco está em batalha, no nível teológico, em grande parte e principalmente devido à sua recuperação do Concílio. Mas essa batalha pelo significado do Vaticano II estará conosco por um longo tempo. O que está em jogo não é apenas a comunhão com o bispo de Roma, mas também a viabilidade da tradição magisterial e intelectual católica.

 

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