02 Abril 2022
"Neste país 'macunaímico', soluções de episódios como esse na vida nacional dependem do humor político", escreve André Márcio Neves Soares, mestre e doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL, e integrante do Núcleo de Estudos sobre Educação e Direitos Humanos (NEDH).
Há quatro anos morria Marielle.
Lembro-me de ter escrito, à época, um breve texto onde disse que ela entendia a política para além dos meios acadêmicos. Ela já percebia que só um tipo de política miúda, “através dos movimentos sociais mais atuantes na defesa dos direitos dos cidadãos podia abreviar, um pouco, o longo caminho que temos a percorrer em busca da verdadeira democracia” (1). Dessa maneira, ela conclamava maior participação feminina na vida pública com o objetivo de resgatar, em parte, a dignidade da parcela majoritária da população do Rio de Janeiro.
Disse, também, que sua morte não poderia e não deveria ser usada como justificativa para a intervenção federal, como a grande mídia incentivou. Olhando para trás e vendo os frutos dessa intervenção, ou melhor, os espinhos que brotaram, vejo que eu tinha razão. Alertei para o fato de não a endeusar num altar qualquer e, depois esquecê-la. As mazelas sociais continuaram vivas, vivíssimas, como sempre estiveram. Marielle e seu motorista Anderson Gomes, deveriam inspirar os cidadãos de bem contra os que usam o “Estado” em benefício próprio.
Pois bem, quatro anos depois, a polícia do RJ ainda busca pistas para encontrar o mandante (2) dos disparos que a mataram e ao seu motorista. Ora, quatro anos de investigação não será tempo demais para uma resposta contundente sobre o episódio? Sabemos das voltas e reviravoltas do caso em questão, além da dança das cadeiras dos encarregados momentâneos desse duplo homicídio que chocou o país. Dias atrás, a Revista Jacobin, denunciou o real motivo do não esclarecimento dessas mortes (3).
Suscintamente, a entrevista que a referida revista fez com o jornalista carioca Sérgio Ramalho, aponta para o conluio entre os vizinhos do atual presidente da República, milicianos suspeitos de executarem a dupla, com a própria família do presidente. Através de provas que possui, o jornalista relata que estes milicianos recorrem ao próprio presidente nos momentos que ficam mais expostos à sanha midiática.
Na reportagem referida acima, no site do “Globo.com”, o atual responsável pelas investigações admite que a polícia já conseguiu chegar aos executores através de toda uma parafernália tecnológica. Por que não se faz o mesmo para estabelecer uma ponte entre executores e mandantes?
É fácil perceber na entrevista, como em inúmeras outras já publicadas, que a assertiva do discurso muda, quase instantaneamente para a ambiguidade de uma narrativa sem nexo, apesar dos protestos de todos os responsáveis sobre as provas já colhidas. Assim, quando o atual promotor encarregado afirma, categoricamente, que não há linha nova de investigação, essa afirmação soa patética, mas verdadeira.
Patética porque passa uma imagem de eterna incompletude. Apesar de todos os recursos disponíveis, tanto de pessoas como de máquinas, revisitar o material já recolhido pode até oferecer alguma coisa nova, mas dificilmente elucidará por completo o caso. Ademais, parece que os responsáveis pelo caso vão sendo substituídos à medida que alguém avança. Obviamente, o próximo precisa voltar tudo mais uma vez para, no mínimo, se quisermos dar o crédito da boa intenção, entender o que já está posto e propor novas ações. Nesse sentido, é relevante a afirmação do atual promotor encarregado do caso, ao dizer que foi um “atentado à democracia, sem dúvidas”.
Ora, cabe perguntar qual democracia cara-pálida? A democracia de um governo contra a vacina da Covid-19? A democracia de um governo que está destruindo a Amazônia? Esta que promoveu a volta de mais de 15 milhões de brasileiros para a linha da miséria? Será como a democracia que se alinha com governos autoritários, para dizer o mínimo, como o governo de Viktor Orbán (Hungria), Vladimir Putin (Rússia) e o do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump? Estamos realmente numa democracia, onde o atual presidente foi eleito através de “fake news” e apoio militar maciço?
Entretanto, a afirmação do promotor é verdadeira. Não resta mais nada, ou talvez pouca coisa, a fazer para chegar aos verdadeiros mandantes. Destarte, está implícito na sua afirmação que, caso fosse “politicamente” viável, esse caso já estaria esclarecido. Afinal, não é toda hora que se comete um duplo assassinato, em plena rua pública, com câmeras de vigilância e o “escambau” (perdoem-me o desabafo), sendo uma das vítimas uma representante legítima da população local.
Nessa toada, a promessa final dele, a de que, possivelmente, irão encontrar algo, ressoa nos corações dos ainda crentes dessa solução como a velha expressão de “empurrar com a barriga”. Ao considerar que o núcleo que parece ter mais envolvimento com tudo até agora, sedimentado no mais alto escalão do governo federal, não há mesmo como nutrir esperanças no curto prazo.
Por conseguinte, penso que seria mais prudente ao atual promotor encarregado se fazer de calouro nesse caso, dizer que tudo está por fazer, apontar problemas técnicos e entraves burocráticos nas investigações até agora efetuadas e jogar água na fervura. Mas a vanglória hobbesiana que a grande maioria dos homens possuem, não permite que eles fiquem a reboque dos holofotes sem nada a dizer.
É preciso gerar notícias novas, recriar fatos já apontados, reescrever indícios já coletados e redizer falas já pronunciadas pelos antecessores. O intuito, movido pelas paixões individuais, é a ambição de subir na carreira e o consequente aumento do poder pessoal. Não foi assim com o ex-juiz Sérgio Moro e o seu parceiro de empreitada do Ministério Público, Deltan Dallagnol, ao condenar, sem provas, o ex-presidente Lula, este hoje já isento de todas as acusações, depois que os dois caíram em desgraça?
A verdade precisa ser dita. Neste país “macunaímico”, soluções de episódios como esse na vida nacional dependem do humor político. Para além da justiça a que todos nós temos o direito constitucional de usufruir, as verdades ficam menos aparentes a depender da gravidade do caso e dos envolvidos nele. Não é verdade que somos a única democracia ocidental a não fazer as pazes com as ignomínias perpetradas por um longo período de ditadura militar? Até nossa vizinha portenha já o fez.
Aqui, temos diversos documentos e livros (4) que esclarecem todos os nossos horrores. Mas, e daí? Assim diria o atual presidente como também disse sobre a pandemia. Não só ele, é preciso ser honesto. Todos os que colaboram com esse governo também são cúmplices, no mínimo. Especialmente os que camuflam essa cumplicidade com discursos moderados, em prol de uma pretensa governabilidade que já dura quase um século e meio, desde que viramos uma república através de um golpe militar. Que ironia!
Dito tudo isso, a maior verdade é a de que continuaremos tateando no obscuro discurso das eternas diligências, provas e deliberações judiciais, sem o mínimo efeito prático. O que se sabe, já se sabe, há pouco o que se acrescentar. Nomes e sobrenomes estão escondidos debaixo do tapete ou em cofres bem fechados em gabinetes. Mas o mundo gira, já dizia o poeta anônimo. É preciso perseverar na memória de Marielle.
Quando o tempo político mudar, com a esperança da maioria da população, será possível abrir os cadeados que escondem esse duplo crime, infame, e revelar os já conhecidos mandantes, ainda escondidos pelo poder republicano investidos no momento. Não deveria ser assim, é fato, mas a democracia, caro leitor, serve a diferentes propósitos para os eleitores (o povo em geral) e para os que são eleitos – os poucos que se consideram excelentes por natureza e isentos de qualquer alcance da lei.
1. Marielle Franco e Anderson Gomes, presentes... Democracia, ausente — CartaCapital.html;
2. Disponível aqui;
3. Disponível aqui;
4. ARNS, D. Paulo Evaristo & Vários. BRASIL NUNCA MAIS. Rio de Janeiro. Ed. Vozes. 1989.
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Por Marielle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU