23 Março 2022
Já conhecido dos leitores de Queriniana, que apreciaram não só o conteúdo, mas também o estilo comunicativo, Jean-Paul Vesco é um religioso dominicano francês que em 2013 se tornou bispo de Oran, na Argélia, e muito recentemente tornou-se arcebispo de Argel, a sede metropolitana.
No texto que segue, partindo justamente desse seu papel institucional, ele lança um olhar sobre a necessária articulação entre fraternidade, por um lado, e paternidade, pelo outro. Vesco vê um jogo sutil e intrigante entre as duas dimensões espirituais de estar "com" e "para" os outros na comunidade eclesial: um jogo feito de alteridade e reciprocidade ao mesmo tempo. E ele vê isso desaguar nada menos que sobre a lógica da sinodalidade: porque, na leitura feita pelo advogado parisiense que se tornou pastor no norte da África, o irmão "mais velho" (ou o pai, se preferir) é aquele que "sabe seguir o princípio da unidade, sabe encorajar a todos na forma como o Espírito se expressa através deles”. Acolhimento ao outro e reconhecimento do outro e dos seus carismas: crescer todos/as juntos, sob a bandeira da ação poderosa do Espírito.
O texto é publicado por Queriniana, 18-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A espiritualidade da vida religiosa nos ensina a ser irmãos, antes mesmo que ser pais. No que me diz respeito, essa espiritualidade me moldou profundamente, embora compreenda bem por que nos seminários diocesanos se prefira insistir no conceito de paternidade. Isso pode depender, em parte, do fato de que o ministério ordenado está muito diretamente associado ao ofício do cuidado pastoral: ao pároco é confiado um povo, do qual ele pode de alguma forma se considerar o pai.
Na paternidade espiritual, entrevejo o risco da deriva para uma relação simbólica distorcida porque demasiado distante da realidade da relação de paternidade. Colocarmo-nos como pais pode alimentar a ilusão de que nós, como padres, não precisamos de ninguém, pois nós mesmos somos a fonte da generatividade que se espera da relação de paternidade espiritual. O conceito de fraternidade espiritual, ao contrário, deixa espaço para o reconhecimento de uma reciprocidade saudável e real, e de uma geração recíproca que torna vivos inclusive a nós mesmos!
É importante não perder de vista o ritmo natural da paternidade biológica (e da maternidade). No decorrer da vida, de fato, a relação paterna evolui: nos primeiros meses os pais ficam desestabilizados pela chegada do recém-nascido, que desorganiza todos os seus pontos de referência; segue o período da educação, em que os pais se tornam o modelo com o qual a criança se confronta e a partir da qual ela se constitui; depois vem um momento em que se cria uma alteridade, porque as crianças se tornaram adultas; finalmente, chega o momento em que os filhos cuidam dos pais. Na paternidade espiritual - muitas vezes fossilizada ao período da relação educacional entre pais e filhos - esse processo humano pode ser facilmente obscurecido. Mas é apenas o patriarca que mantém a plena autoridade até o leito de morte: não assim o pai. O risco é sempre que a paternidade espiritual, em si algo bom, se transforme em uma sufocante paternidade patriarcal. A relação está, assim, sob a ameaça de uma perpétua "infantilização" do outro.
O modelo da fraternidade espiritual me parece mais "verdadeiro" na medida em que está mais de acordo com a realidade existencial da fraternidade humana. Em uma relação de irmandade, se honram diferentes papéis: o irmão mais velho e o irmão mais novo têm um papel um para com o outro, que pode evoluir com o tempo e as circunstâncias. Na fraternidade, além disso, vive-se uma forma de alteridade que também encontramos, mas em menor grau, na paternidade, pois somos irmãos e irmãs de um mesmo pai.
A autoridade de um irmão geralmente não é do mesmo tipo que a autoridade de um pai. Nada é devido ao próprio irmão ou irmã, além da gratidão pelo que foi para nós, como nosso irmão ou irmã. Não devemos a vida a ele, e isso faz uma grande diferença.
Como bispo, então, gostaria de ser um irmão, seja dos padres ou freiras mais idosos do que eu, como dos estudantes. No primeiro caso, considero difícil pensar em mim mesmo como pai, o que seria mais fácil para mim com os estudantes. Mas, mesmo em relação a estes últimos, percebi que quando consigo me apresentar como um seu irmão no concreto da vida, relações são geradas, do ponto de vista humano e espiritual, tanto ou talvez até mais fortes do que quando me identificam, muitas vezes de forma um tanto automática, com um pai apenas em virtude do meu papel institucional.
Dito isto, é claro que reconheço a realidade e a força da paternidade espiritual. Simplesmente não pode ser decidido por decreto e, portanto, institucionalizado. É assim que entendo a recomendação de Jesus de não chamar ninguém de "pai". Ninguém se torna pai aos 25 anos, simplesmente porque foi ordenado ao ministério. Por isso, na necessária articulação entre fraternidade e paternidade, a fraternidade vem em primeiro lugar.
Sinto-me profundamente, e sobretudo, chamado a ser irmão, eventualmente um irmão mais velho. Pode acontecer que esta relação se torne em alguns casos uma ocasião geradora, sinal de uma verdadeira relação de paternidade espiritual. Quanto a mim, não tenho um pai espiritual, mas irmãos e irmãs com quem mantenho uma relação de alteridade e reciprocidade. Entre eles, alguns irmãos e irmãs foram para mim figuras de paternidade ou maternidade espiritual em algum momento da minha vida.
Certamente esta ligação entre fraternidade e paternidade espiritual é sutil. Como bispo, tenho a impressão de manter uma relação fraterna com os padres da minha diocese, mas com um "algo" diferente de quando eu era padre entre eles, ou mesmo vigário geral.
Um ano atrás, por exemplo, cuidei de um padre idoso, que depois morreu por causa da covid-19. Com outros membros da diocese, acompanhei-o até seu último suspiro. Quando ia visitá-lo no hospital para ajudá-lo nos cuidados pessoais e a se alimentar, senti que estava fazendo o que sempre temi que um dia tivesse que fazer com meu pai, achando que não seria capaz. Minha maneira de ser irmão daquele padre consistia em comportar-me com ele da mesma forma que um filho se comporta com seu pai, e não o contrário, com toda a autoridade que um filho pode ter sobre seu pai no final de sua existência.
No entanto, o fato de eu ser seu bispo, mesmo permanecendo um irmão, fazia com que aquele “algo” a mais existisse: ambos estávamos cientes disso, sem ter que colocar em palavras. Do que se tratava? Eu não saberia dizer. A sutileza dessa relação não é totalmente transmitida pelo conceito de paternidade espiritual, segundo o qual o bispo é o pai dos "seus" padres e o pároco é o pai dos leigos que lhe foram confiados.
Meu papel como bispo, como almejo vivê-lo, é ser aquele irmão que sabe seguir o princípio da unidade, que sabe encorajar a todos na forma como o Espírito se expressa através deles. O meu modelo de igreja é aquele sinodal, como descrito na Primeira Epístola aos Coríntios de São Paulo, segundo o qual cada um tem dons e deve expressá-los, como acontece no corpo humano, que é composto por um conjunto de órgãos, todos necessários, todos interdependentes uns dos outros.
Embora evidentemente o princípio da sinodalidade exija que o caminho seja realizado “com Pedro” e “sob Pedro”, já que a Igreja não é uma democracia no sentido em que a entendemos habitualmente, no entanto, devemos ouvir todas as vozes. A sinodalidade se coloca nesta tensão entre a horizontalidade da fraternidade e a verticalidade do princípio de unidade. Uma não pode existir sem a outra.
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Irmãos e irmãs, em primeiro lugar! Artigo de Jean-Paul Vesco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU