22 Janeiro 2015
Francisco reabre o discurso sobre matrimônio e família no contexto de uma honesta e sincera visão de Igreja na sociedade e na cultura modernas. A Igreja desafia as pulsões desumanizantes do mundo contemporâneo, mas sem desumanizar os católicos nesse desafio.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Minnesota, nos EUA. O artigo foi publicado no sítio TheHuffingtonPost.it, 20-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O Papa Francisco não é o Super-Homem (como algumas caricaturas o retratam de modo afetuoso), mas certamente, até agora, as suas mensagens entregues à opinião pública eclesial e mundial durante as coletivas de imprensa nos voos são as mais surpreendente. Como aconteceu com o "quem sou eu para julgar?", também neste caso as reações não vão demorar.
A primeira mensagem recebida por mim durante a noite, depois da coletiva de imprensa do papa no voo das Filipinas, continha o protesto de uma senhora católica norte-americana (mãe de duas das minhas alunas) para as palavras de Francisco sobre paternidade responsável: católica liberal de ampla visão, politicamente à esquerda, a senhora me lembrava, na história norte-americana, da recorrente acusação por parte da (então) maioria protestante contra a (então) minoria católica de se reproduzir como coelhos.
A família numerosa sempre foi um dos marcadores da cultura católica norte-americana, especialmente de origem irlandesa, e essas palavras do papa estão destinadas a ter um forte impacto nos Estados Unidos, para onde o papa se dirigirá em setembro, por ocasião do Encontro Mundial das Famílias. Em certo sentido, a viagem do papa aos Estados Unidos – provavelmente a mais difícil do pontificado – começou nessa segunda-feira.
A religião norte-americana é profundamente moralista, e, nas Igrejas católicas norte-americanas, a geografia dos bancos perto do altar ainda é marcada pelas famílias numerosas e por um implícito julgamento moral reservado a todos os outros.
Ainda no século XIX das migrações em massa da Europa, os Estados Unidos eram um grande país a ser conquistado, e a família numerosa fazia parte de um projeto nacional, civilizatório e missionário. O papa encerra, em certo sentido, a idade da fronteira norte-americana com todas as suas cruezas.
A misericórdia (sobre a qual Francisco começou a insistir desde a primeira homilia do pontificado) pertence a um universo moral diferente do norte-americano; de modo semelhante, a linguagem da "procriação responsável" também é, essencialmente, estranha à cultura pro-life norte-americana, em que a procriação não é adjetivável, porque não é limitável.
Em uma nação como os Estados Unidos, em que a natureza desde sempre prevalece sobre a cultura, as palavras do papa incidem profundamente, para além das possíveis inclinações ideológicas, muito mais do que palavras sobre o gênero como ideologia (que trarão ao papa novas críticas à esquerda).
O segundo elemento notável das palavras dessa segunda-feira é a interpretação dada pelo Papa Francisco à encíclica mais controversa da história moderna da Igreja, a Humanae vitae, de Paulo VI (1968), sobre o controle de natalidade. O Papa Francisco se mantém longe das minúcias da legitimidade da contracepção e de quais métodos contraceptivos (que ele sabe muito bem que são usados de modo responsável por muitíssimos casais católicos) e se concentra no vínculo entre a consciência dos pais e as influências externas: como Paulo VI há quase meio século, Francisco critica o neomalthusianismo, em que as ajudas concedidas por instituições internacionais aos países pobres estavam ligadas aos pedidos de limitar a população.
A Humanae vitae de Paulo VI também foi uma reação a isso, e o Papa Francisco, hoje, dá uma interpretação não moralista, mas antitecnocrática e liberacionista do ensinamento mais impopular entre os católicos (e não católicos). É outro efeito da eleição de um papa não europeu, que vem do Sul do mundo.
Um terceiro elemento tem a ver com as palavras do papa sobre a paternidade e a maternidade, e sobre o fato de que quem foi eleito em 2013 foi um pastor jesuíta que se tornou bispo, cardeal e papa contra todas as probabilidades estatísticas. Francisco falou de paternidade responsável, com uma limpidez e clareza que diz muito sobre a sua paternidade espiritual responsável.
Em alguns países (como os Estados Unidos), a "cultural war" em que a Igreja estava comprometida até a era pré-Francisco levava muitos padres e bispos, professores e catequistas a exortarem católicos muito jovens a se casarem logo e a terem muitos filhos o mais rápido possível: tudo vai bem, mesmo um matrimônio de alto risco, a fim de evitar o sexo pré-matrimonial.
Isso nada mais é do que usar o matrimônio como uma clava, como uma declaração de guerra a uma sociedade moderna em que os tempos da educação escolar e profissional, e o acesso ao trabalho se prolongaram em uma década ao menos, ao longo do último século, enquanto a idade da maturidade sexual manteve-se sempre a mesma, ou seja, ao menos dez, às vezes 20 anos antes da possibilidade de formar uma família.
Francisco reabre o discurso sobre matrimônio e família no contexto de uma honesta e sincera visão de Igreja na sociedade e na cultura modernas. A Igreja desafia as pulsões desumanizantes do mundo contemporâneo, mas sem desumanizar os católicos nesse desafio.
É uma visão da relação entre natureza e cultura, entre ensinamento da Igreja e consciência dos indivíduos e dos casais que se renova com este pontificado. Aparece cada vez mais claramente o papel estratégico do debate sobre matrimônio e família, com os dois Sínodos de 2014 e 2015, para todo o resto da agenda do pontificado de Bergoglio.
Aqueles que pedem ingenuamente uma revogação da Humanae vitae não se dão conta que seria não só irrealista, mas também dramaticamente limitativo da visão do Papa Francisco.
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A paternidade (espiritual) responsável do Papa Francisco. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU