"A releitura de 'Admirável mundo novo', mais de dez anos depois, me fez compreender não só porque Aldous Huxley citou a Bíblia, mas a Imitação de Cristo, sem capa".
O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.
No prefácio da edição de "Admirável mundo novo" publicada em 1946, Aldous Huxley propôs uma breve revisão de sua obra. Embora ela retrate muitos aspectos da vida presente, na avaliação dele o texto não conseguiu alcançar seu objetivo: prever como seria a sociedade do futuro. Isso porque, segundo ele, a versão original publicada em 1932 não fez menção ao que se tornaria um dos maiores problemas da humanidade nos anos seguintes: a fissão nuclear.
Na revisão, Huxley também apresenta ao leitor o que considerou o "defeito mais grave do romance": as duas possibilidades de vida que ele próprio ofereceu ao Selvagem - uma das personagens centrais da obra - e, consequentemente, sugeriu ao leitor.
"O selvagem é posto diante de duas alternativas apenas, uma vida de insanidade na Utopia ou a vida de um primitivo numa aldeia de índios, vida esta mais humana em alguns aspectos, mas, em outros, pouco menos estranha e anormal".
Ele explica seu ponto:
"Na época em que foi escrito o livro, eu achava divertida e muito possivelmente verdadeira a ideia de que os seres humanos são dotados de livre-arbítrio para escolher entre a insanidade, de um lado, e a demência, de outro. Contudo, o Selvagem muitas vezes fala mais racionalmente do que, a rigor, o justificaria sua formação entre os praticantes de uma religião que é um misto de culto da fertilidade e de ferocidade de Penitentes".
Se fosse reescrever o romance, o autor disse que ofereceria uma terceira alternativa ao Selvagem:
"Entre as duas pontas do seu dilema, a utópica e a primitiva, estaria a possibilidade de alcançar a sanidade de espírito - possibilidade já realizada, até certo ponto, numa comunidade de exilados e refugiados do Admirável mundo novo, estabelecidos dentro dos limites da Reserva. Nessa comunidade, a economia seria descentralista e georgista, e a política, kropotkiniana e cooperativista. A ciência e a tecnologia seriam usadas como se, a exemplo do sábado, tivessem sido feitas para o homem, e não como se o homem tivesse de ser adaptado e escravizado por elas".
Apesar das mudanças econômicas e políticas, a religião, segundo ele, seria o fundamento para "alcançar" tanto "a sanidade de espírito" quanto uma vida social harmônica:
"A religião seria a procura consciente e inteligente do Objetivo Final dos homens, a busca do conhecimento unitivo do Tao imanente ou Logos, da Divindade transcende ou Brama. E a filosofia de vida predominante seria uma espécie de Utilitarismo Superior, em que o princípio da Maior Felicidade ocuparia posição secundária em relação ao do Objetivo Final - e a primeira pergunta a ser formulada e respondida em qualquer contingência da vida seria: 'De que modo este pensamento ou ato ajudará ou impedirá a consecução, por mim e pelo maior número possível de outros indivíduos, do Objetivo Final do homem?'"
Essa "revolução verdadeiramente revolucionária", como qualificou sua proposta, disse, "deverá ser realizada, não no mundo exterior, mas sim na alma e na carne dos seres humanos", inclusive antes de uma "revolução mais superficial, a política".
Capa do livro Admirável mundo novo (Foto: Reprodução)
Quando li pela primeira vez Admirável mundo novo, uma referência nas reflexões sobre sociedades distópicas, mais de dez anos atrás, fiquei impressionada não só com a capacidade de Huxley descrever os fenômenos que dizem respeito a cada um de nós, mas com o não-dito que comunicava nas entrelinhas: aquilo que está lá, aguardando a nossa maturação, para ser compreendido. E me perguntava: o que ele disse e eu ainda não entendi?
Naquela leitura apaixonada, consegui perceber muito sobre nós mesmos e nosso modo de vida: a obsessão humana por uma felicidade tóxica, a ilusão de acreditar em si próprio e, ao mesmo tempo, recorrer à última moda para encontrar as respostas que procura para responder aos seus anseios, o desejo de ser autossuficiente e a dificuldade humana em lidar com a dor e o sofrimento, a sensação de estar em continuo progresso ao mesmo tempo em que se é incapaz de cuidar e observar a si próprio. À época, eu vibrava a cada página, vendo a natureza humana sendo descrita ali, diante dos nossos olhos, ao mesmo tempo em que era possível perceber nas personagens o nosso desejo por experiências mais profundas do que o mero cotidiano banal, ou seja, tratava-se do eterno desejo humano pela busca de sentido.
Alguns diálogos ressoavam na minha mente, mas à época eu estava tão distante de conhecer e compreender a mística cristã que me limitei a ficar impressionada com a primeira parte do diálogo que se segue. Perguntava a mim mesma: o que ele de fato quer nos dizer com a imagem da Bíblia no cofre? A releitura da obra, mais de dez anos depois, me fez compreender não só porque ele citou a Bíblia, mas a Imitação de Cristo, sem capa.
Diálogo:
"O selvagem, estranhamente, perguntava ao Administrador:
- Eles leem Shakespeare? - perguntou o Selvagem quando, a caminho dos Laboratórios Bioquímicos, passavam diante da Biblioteca da Escola.
- De modo algum - respondeu a Diretora, corando.
- Nossa biblioteca - disse o dr. Gaffney - contém somente obras de consulta. Se os jovens precisarem de distrações, poderão encontrá-las no cinema sensível. Nós não os estimulamos a procurar qualquer tipo de diversão solitária.
No cofre estava depositado, entre outros, um 'grosso volume negro', 'A Bíblia Sagrada, contando o Velho e o Novo Testamento' e outro 'livro pequeno, que tinha perdido a capa', 'A imitação de Cristo'. O Administrador dirigiu-se ao selvagem, rindo e dizendo: 'Deus no cofre e Ford nas estantes', apontando para o amontoado de livros que sobrecarregam as estantes da biblioteca.
- Mas se os senhores não ignoram Deus, por que não falam dele? - perguntou o Selvagem, indignado. - Por que não permitem a leitura desses livros sobre Deus?
- Pela mesma razão por que não apresentamos Otelo: eles são antigos. Tratam de Deus tal qual era há centenas de anos, não de Deus como é agora.
- Mas Deus não muda.
- Acontece que os homens mudam.
- Que diferença faz?
- Um mundo de diferença - retorquiu Mustafá Mond. Levantou-se outra vez e dirigiu-se ao cofre. - Houve um homem que se chamava Cardeal Newman. Um cardeal - explicou, como num parêntese - era uma espécie de Arquichantre.
- 'Eu, Pandolfo, da bela Milão cardeal'. Li alguma coisa sobre eles em Shakespeare.
- Sem dúvida. Bem, como eu ia dizendo, havia um homem que se chamava Cardeal Newman. Ah, eis o livro - retirou-o do cofre. - E já que estou aqui, vou tirar também este outro. É de um homem que se chamava Maine de Biran. Era um filósofo, se é que sabe o que quer dizer isso.
- Um homem que sonha menos coisas do que as que existem no céu e na terra - respondeu prontamente o Selvagem.
- Perfeitamente. Daqui a pouco vou ler uma das coisas que ele sonhou. Por enquanto, ouça o que diz este velho Arquichantre - abriu o livro no lugar marcado com tira: que as paixões se acalmam, que a fantasia e a sensibilidade vão sendo menos excitadas e menos excitáveis, a razão é menos perturbada em seu exercício, menos obscurecida pelas imagens, desejos e distrações que a absorviam; então, Deus emerge como se tivesse saído de trás de uma nuvem; nossa alma vê, sente a fonte de toda a luz, volta-se natural e inevitavelmente para ele; porque, tendo começado a esvair-se dentro de nós tudo aquilo que dava ao mundo das sensações sua vida e seu encanto, não sendo mais a existência material sustentada por impressões externas e internas, sentimos a necessidade de nos apoiarmos em algo que permaneça, que nunca nos traia - uma realidade, uma verdade, absoluta e eterna. Sim, voltamo-nos inevitavelmente para Deus; pois esse sentimento religioso é por natureza tão puro, tão delicioso para a alma que o experimenta, que compensa todas as nossas outras perdas". (...)
"Mustafá Mond fechou o livro e recostou-se na sua poltrona.
- Uma das numerosas coisas do céu e da terra com que sonharam aqueles filósofos é isto - e agitou a mão - ; nós, o mundo moderno. 'Só se pode ser independente de Deus enquanto se tem juventude e prosperidade; a independência não nos levará até o fim em segurança'. Pois bem, agora nós temos juventude e prosperidade até o fim. O que resulta daí? Evidentemente, que podemos prescindir de Deus. 'O sentimento religioso nos compensará de todas as nossas perdas'. Mas não há, para nós, perdas a serem compensadas; o sentimento religioso é supérfluo. E por que iríamos em busca de um sucedâneo dos desejos infantis, se esses desejos nunca nos faltam? De um sucedâneo das distrações, quando continuamos desfrutando todas as velhas tolices até o fim? Que necessidade temos de repouso, quando nosso corpo e nosso espírito continuam deleitando-se na atividade? De consolo, quando temos soma? De alguma coisa imutável, quando temos a ordem".