28 Julho 2015
Oito décadas depois, romance de Huxley ganha nova atualidade, ao alertar que sociedades de controle podem apoiar-se, além da repressão, na tecnologia e culto do “progresso”
O texto é de Ignacio Ramonet, publicado pelo sítio Outras Palavras, 24-07-2015. A tradução é de Antonio Martins.
Breve, terão se completado 75 anos da primeira edição brasileira (1941) de Admirável Mundo Novo [1], grande romance perturbador lançado em 1932, na Inglaterra, pelo visionário filósofo e escritor Aldous Huxley.
Diante de tanta “felicidade artificial” em nossos dias, tantas manipulações e tantos condicionamentos contemporâneos, cabe perguntar: seria útil reler Admirável Mundo Novo? Acaso é necessário retomar um livro escrito há mais de oito décadas, numa época tão distante que a Internet não existia e sequer a TV havia sido inventada? Seria este romance algo mais que uma curiosidade sociológica, um best-seller ordinário e efêmero, de que se venderam, em inglês, mais de um milhão de exemplares, já no ano de sua publicação?
Estas questões parecem ainda mais pertinentes porque o gênero a que pertence a obra – ficção científica, distopia, fábula de antecipação, a utopia científico-técnica – possui um grau muito elevado de obsolescência. Nada envelhece mais rápido que o futuro, sobretudo na literatura.
No entanto quem, superando estas reticências, mergulhar nas páginas do romance ficará chocado por sua surpreendente atualidade. Ficará claro que, pelo menos uma vez, o passado capturou o presente. Recordemos que o autor, Aldous Huxley (1894-1963), narra uma história que transcorre num futuro muito distante, próxima ao ano 2500 ou, mais precisamente “no ano 600 da Era Fordiana”, em alusão satírica a Henry Ford (1863-1947), pioneiro norte-americano da indústria automobilística e inventor de um método de organização de trabalho para a fabricação em série e padronização de peças. Tal método, conhecido como “fordismo”, transformou os trabalhadores em algo inferior a autômatos, robôs que repetiam, ao longo da jornada de trabalho, um único gesto.
Sua emergência suscitou, à época, críticas violentas: pensemos, por exemplo, nos filmes Metropolis (1926), de Fritz Lang, ou Tempos Modernos (1935), de Charles Chaplin.
Aldous Huxley escreveu Admirável Mundo Novo, visão pessimista do futuro e crítica feroz do culto positivista à ciência, num momento em que as consequências sociais da grande crise de 1929 afetavam em cheio as sociedades ocidentais, e em que a crença no progresso e nos regimes democráticos parecia vacilar.
Publicado em inglês antes da chegada de Hitler ao poder na Alemanha (1933), Admirável Mundo Novo denuncia a perspectiva “de pesadelo” de uma sociedade totalitária fascinada pelo progresso científico e convencida de poder oferecer a seus cidadãos uma felicidade obrigatória. Apresenta a visão alucinada de uma humanidade desumanizada pelo condicionamento pavloviano [2] e pelo prazer ao alcance de uma pílula (o “soma”). Num mundo horrivelmente perfeito, a sociedade decide totalmente, com fins eugenistas e produtivistas, a sexualidade da procriação.
É uma situação não tão distante da que se vive hoje em alguns países (sobretudo na Europa), em que os efeitos da crise de 2008 estão provocando o ascenso de partidos de extrema direita, xenófobos e racistas. Onde os anticoncepcionais já permitem um amplo controle da natalidade. E onde novas pílulas (como o Viagra e a feminina Lybrido) dopam o desejo sexual e o prolongam até além da terceira idade. Ao mesmo tempo, as manipulações genéticas permitem cada vez mais aos pais a seleção de embriões, para engendrar filhos em função de critérios pré-determinados – inclusive estéticos.
Outra relação surpreendente com a atualidade é que o romance de Huxley apresenta um mundo onde o controle social não dá espaços ao acaso, onde, formadas a partir do mesmo molde, as pessoas são “clônicas”, produzidas em série. A maioria tem garantidos o conforto e a satisfação dos únicos desejos que está condicionada a experimentar, mas perdeu-se, como diria Mercedes Sosa, a razón de vivir [3].
Em Admirável Mundo Novo, a americanização do planeta está completa, a História acabou (como afirmaria, mais tarde, Francis Fukuyama [4]), tudo foi padronizado e “fordizado” – tanto a produção dos seres humanos, resultado de puras manipulações genético-químicas, quanto a identidade das pessoas, produzida durante o sonho por hipnose auditiva: a “hipnopedia”, qualificada por um personagem do livro como “a maior força socializante e moralizante de todos os tempos”.
Os seres humanos são “produzidos” no sentido industrial do termo, em fábricas especializadas – os “centros de incubação e condicionamento” – segundo modelos variados, que dependem das tarefas muito especializadas que serão atribuídas a cada um, e que são indispensáveis para uma sociedade obcecada pela estabilidade.
Desde seu nascimento, cada ser humano é, além disso, educado em “centros de condicionamento do Estado”. Em função dos valores específicos de seu grupo, e por meio do recurso maciço à hipnopedia, criam-se nele os “reflexos condicionados definitivos” que o fazem aceitar seu destino.
Aldous Huxley ilustrava assim os riscos implícitos na tese que vinha sendo formulada, desde 1924, por John B. Watson, o pai do “condutivismo” [5], esta suposta “ciência da observação e controle do comportamento”. Watson afirmava com frieza que podia escolher na rua, ao acaso, uma criança saudável e convertê-la, à sua vontade, em médico, advogado, artista, mendigo ou ladrão, independentemente de seu talento, inclinações, capacidades, gostos e origem de seus ancestrais.
Em Admirável Mundo Novo, que é fundamentalmente um manifesto humanista, alguns viram também, com razão, uma crítica ácida à sociedade stalinista, à utopia soviética construída com mão de ferro. Mas também há, claramente, uma sátira à nova sociedade mecanizada, padronizada, automatizada que se criva à época nos Estados Unidos, em nome da modernidade técnica.
Extremamente inteligente e admirador da ciência, Huxley expressa no romance, no entanto, um profundo ceticismo em relação à ideia de progresso, e desconfiança diante da razão. Frente à invasão do materialismo, o autor engendra uma interpretação feroz às ameaças do cientificismo, do maquinismo e do desprezo à dignidade individual. Claro que a técnica assegurará aos seres humanos um conforto exterior total, de notável perfeição, estima Huxley com desesperada lucidez. Todo desejo, na medida em que possa ser expresso e sentido, será satisfeito. Os seres humanos terão, nesse ponto, perdido sua razão de ser. Terão transformado a si mesmos em maquinas. Já não se poderá falar, em sentido estrito, de “condição humana”.
Mas o “condicionamento” não cessou de se intensificar desde a época em que Huxley publicou o livro e anunciou que, no futuro, seríamos manipulados sem que nos déssemos contas. Em particular, pela publicidade. Por meio do recurso a mecanismos psicológicos e graças a técnicas muito experimentadas, nos mad men da publicidade conseguem que compremos um produto, um serviço ou uma ideia. Este modo, convertemo-nos em pessoas previsíveis, quase teledirigidas. E felizes.
Confirmando as teses de Huxley, Vance Packar publicou The Hidden Persuaders (na edição brasileira, Nova Técnica de Convencer), em meados da década de 1950 e Ernest Dichter e Louis Cheskin denunciaram que as agências de publicidade tentavam manipular o inconsciente dos consumidores. Sobretudo mediante o uso de “publicidade subliminar”, nos meios de comunicação de massas. Em 30 de outubro de 1962, executou-se um teste que demonstrava a eficácia da publicidade subliminar.: durante a exibição de um filme, lançavam-se mensagens “invisíveis” sobre certos produtos, em intervalos regulares. As vendas de tais produtos aumentaram.
Atualmente, a “publicidade subliminar” avançou e existem técnicas mais sofisticadas e mais perversas para manipular a mente do ser humano [6]. Por exemplo, mediante as cores que modificam nostras percepções e influenciam nostras decisões. Os especialistas em marketing sabem disso e utilizam as técnicas para orientar nossas compras.
Num conhecido experimento de finais dos anos 1960, Louis Cheskin, diretor do Instituto de Pesquisa da Cor, pediu a um grupo de donas de casa que experimentassem três caixas de detergentes e decidissem qual delas dava melhor resultado com roupas delicadas. Apesar de as três conterem o mesmo produto, as reações foram distintas. O detergente da caixa amarela foi considerado “forte demais”, o da cor azul foi visto como não tendo “força para limpar”. Ganhou a caixa bicolor.
Em outro teste, duas amostras de cremes de beleza foram dados a um grupo de mulheres: uma num recipiente rosa; outra, num de cor azul. Quase 80% das mulheres declararam que o creme de frasco rosa era mais fino e efetivo que o de frasco azul. Ninguém sabia que a composição dos cremes era idêntica. “Não é exagero dizer que as pessoas não apenas compram o produto per se, mas também pelas cores que o acompanham. A cor penetra na psiqué do consumidor e pode converter-se em estímulo direto para a venda”, escreve Luc Dupont em seu livro 1001 truques publicitários [7].
Nos anos 1950, quando a empresa produtora do sabonete Lux começou a vender seu produto nas cores rosa, verde e turquesa, substituindo o tablete habitual de cor branca, converteu-se na líder de mercado. As novas cores sugeriam delicadeza e cuidado, intimidade e carinho e os consumidores mostraram-se entusiasmados. Mais recentemente, na Europa, o Mc Donald’s deixou sua mítica cor vermelha (uma tonalidade apreciada pelas crianças e que costuma estimular a fome), a favor do verde, numa tentativa de aproximar sua marca da comida saudável e de um estilo de vida sustentável [8].
A leitura de Admirável Mundo Novo alerta contra todas estas agressões [9]. Sem esquecer as manipulações midiáticas [10]. Este romance também pode ser visto como uma sátira muito pertinente da nova sociedade delirante que está sendo construída hoje, em nome da “modernidade” ultraliberal. Pessimista e sombrio, o futuro visto por Aldous Huxley serve de advertência e anima, na época das manipulações genéticas e da clonagem, a vigiar de perto os progressos científicos atuais e seus potenciais efeitos destrutivos.
Admirável Mundo Novo ajuda a compreender melhor o alcance e os riscos e perigos que surgem quando, de novo e por todos os lados, “progressos científicos e técnicos” nos chocam com riscos ecológicos [11] que põem em perigo o futuro do planeta. E da espécie humana.
Notas:
1- No texto original, Ramonet faz alusão aos 80 anos da primeira edição em língua espanhola, publicada em 1935 pelo editor catalão Luís Miracle. No Brasil, a Editora Globo foi pioneira em lançar Admirável Mundo Novo, em 1941, com tradução de Lino Vallandro e Vidal Serrano. Há em catálogo uma edição brasileira (312 páginas, R$ 21). A obra também está disponível, gratuitamente, na Internet. (Nota do Tradutor)
2- Referência a Ivan Pavlov, médico russo, Prêmio Nobel de Medicina em 1904 por seus trabalhos experimentais sobre os “reflexos condicionados”, o mais célebre dos quais é o do “cão de Pavlov”.
3 - https://www.youtube.com/watch?v=-qdIO-0aZk8
4 - Em uma obra extremamente huxleyana, O fim da História e o último homem (1992).
5 - Ver http://www.ilustrados.com/tema/1298/Psicologia-evolutiva-conductismo-John-Broadus-Watson.html
6 - Ler, de Ignacio Ramonet, Propagandas silenciosas, La Habana, 2002; e, de Noam Chomsky e Ignacio Ramonet, Cómo nos venden la moto, Icaria, Barcelona, 1995.
7 - Luc Dupont,1001 trucos publicitarios, Lectorum, México, 2004
8 - Ler La Vanguardia, Barcelona, 13 de enero de 2012.
9 - Ler também, por exemplo, de Mertxe Pasamontes, “Una docena de modos en que nos manipulan para que estemos insatisfechos”. http://unadocenade.com/una-docena-de-modos-en-que-nos-manipulan-para-que-estemos-insatisfechos/
10 - Ler também, de Noam Chomsky, Diez estrategias de manipulación a través de los medios. http://www.revistacomunicar.com/pdf/noam-chomsky-la-manipulacion.pdf
11 - Ler Laudato sí, a Encíclica “verde” del Papa Francisco, Vaticano, 16/6/2015 http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html
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A atualidade chocante de Admirável Mundo Novo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU