14 Março 2022
O Papa Francisco obviamente acredita em milagres. Nos nove anos em que é bispo de Roma, ele canonizou mais santos (899) do que a soma total dos seus oito antecessores e canonizará mais 10 em maio. Ele também aprovou um número recorde de 1.475 beatificações.
O comentário é de Robert Mickens, publicado por La Croix International, 12-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nota do Instituto Humanitas Unisinos - IHU: A presente reportagem foi publicada antes do contundente e inquestionável apelo do Papa Francisco proferido no dia 13-03-2022. Veja aqui. Também veja o comentário de Il Sismografo, citado na presente reportagem, clicando aqui.
Quase todos esses santos e alguns desses bem-aventurados (exceto os mártires) foram oficialmente elevados como modelos da fé cristã somente depois que se provou que eles realizaram pelo menos um milagre.
Isso significa que Francisco reconheceu oficialmente a validade de mais de 1.000 milagres durante o seu pontificado.
E agora, mais do que nunca, ele e seus assessores diplomáticos precisam de apenas mais um. E com bastante urgência.
Isso pelo menos se eles acham que há alguma chance de que a Rússia os deixe mediar a crise global extremamente preocupante que o Kremlin desencadeou há mais de duas semanas, quando invadiu a Ucrânia injustificadamente.
Não há dúvida de que o papa de 85 anos e os diplomatas vaticanos estão tão horrorizados quanto qualquer outra pessoa com o terror que Vladimir Putin fez chover sobre o vizinho da Rússia no Ocidente.
E repetiram várias vezes que estão dispostos a fazer tudo o que puderem para impedir o derramamento de sangue e a destruição na Ucrânia.
Francisco até se dispôs a se abster de mencionar a Rússia ou a palavra “invasão” em suas declarações públicas – ou seja, abster-se de nomear e envergonhar Putin – na vã esperança de que isso pudesse convencer o Kremlin de que o Vaticano pode ser um mediador honesto na crise.
Cyril Hovorun, um importante teólogo ortodoxo russo nascido na Ucrânia, lembrou os leitores do La Croix nesta semana que é improvável que isso ocorra.
Ele destacou que Putin desconfia dos líderes do Ocidente, considerando-os “heréticos, malvados e mentirosos, porque são católicos ou protestantes”.
E Bernard Lecompte, um jornalista francês que fez extensas reportagens sobre a Igreja na Europa oriental e escreveu um livro sobre o papel de João Paulo II no colapso do comunismo, concorda que há poucas chances de que o Vaticano possa se envolver em qualquer tipo de mediação.
Ele observou que a Rússia não acredita que a Santa Sé possa ser imparcial, dada a considerável população católica na Ucrânia.
De acordo com o Anuário Estatístico da Igreja produzido pelo Vaticano, existem cerca de 4,8 milhões de católicos entre os 42 milhões de residentes no país – quase 11,5% de todos os ucranianos.
Mas muitos deles são católicos gregos (bizantinos). E seus irmãos e irmãs ortodoxos quase indistinguíveis na Rússia – e especialmente os da Ucrânia – os consideram traidores “uniatas” por causa da sua lealdade ao papa romano.
Então, se há alguma esperança de que o Vaticano desempenhe um papel minúsculo nas negociações entre esses dois países, vai ser preciso um milagre.
No entanto, provavelmente a maioria dos católicos – e certamente os da hierarquia e da Cúria Romana – acreditam verdadeiramente que a Santa Sé continua desempenhando um papel vital e necessário na promoção da paz, da segurança e da dignidade humana em todo o mundo, principalmente por meio do seu antigo e venerável aparato diplomático.
Eles estão corretos, pelo menos parcialmente. Mas se esquecem de que o preço de se sentar à mesa dos ricos e poderosos do mundo pode ser bastante alto para a Igreja – incluindo a perda da sua voz profética.
O aparato diplomático do Vaticano está ligado a um paradigma da Igreja romana que foi moldado pela Cristandade e pelo Ancien Régime, um paradigma que vem desmoronando em várias velocidades e em graus diferentes desde a Revolução Francesa e o Iluminismo.
A diplomacia papal foi criada durante “uma fase em que o poder temporal (da Igreja) ainda existia e o papa era acima de tudo um soberano”, observou o falecido biblista e arcebispo jesuíta cardeal Carlo Maria Martini.
“Esse poder, graças a Deus, acabou e não pode ser restaurado. É uma sorte que tenha acabado”, disse ele em uma entrevista ao jornal La Repubblica em 2009.
O cardeal, falecido três anos depois, questionava se era necessário e compatível com a verdadeira missão da Igreja manter este último vestígio de poder, o serviço diplomático.
“Certamente, existe uma estrutura diplomática da Santa Sé, mas, mesmo assim, composta por sacerdotes cujo fim último é testemunhar a pregação evangélica e o seu conteúdo profético. Eu acrescentaria que a estrutura diplomática, na minha opinião, é redundante demais e consome demasiadamente as energias da Igreja. Nem sempre foi assim. Na história da Igreja, por muitos e muitos séculos, essa estrutura sequer existia e, no futuro, poderia ser fortemente reduzida, senão até desmantelada. A tarefa da Igreja é testemunhar a palavra de Deus, o Verbo encarnado, o mundo dos justos que virá. Todo o resto é secundário” (Carlo Maria Martini SJ, entrevista ao La Repubblica, 18 de junho de 2009).
A Santa Sé goza do status sui generis de ser uma personalidade ou entidade jurídica soberana na comunidade internacional, o que inclui o privilégio de estabelecer relações diplomáticas plenas com os Estados.
Por meio desse arranjo único, ela tentou zelosamente preservar seu legado que estava gradualmente desaparecendo, como um “poder” mundial (ou pelo menos europeu).
A Santa Sé hoje é um vestígio dos antigos Estados Papais (Lo Stato Pontificio), que foram dissolvidos em 1870. Seus líderes clericais sempre defenderam que, ao abrir mão de seu Estado territorial, a Santa Sé abria mão de seu poder temporal e se concentrava em exercer uma autoridade moral global.
Mas essa autoridade foi muito desgastada ao longo do século passado ou mais. Foi quase completamente destruída nas últimas décadas apenas pela crise dos abusos sexuais clericais e seu acobertamento pela hierarquia, incluindo autoridades vaticanas. E, pior, o abuso e o acobertamento continuam até hoje.
O preço por se sentar à mesa com líderes mundiais está sendo pago exatamente agora, durante o ataque militar em curso da Rússia à Ucrânia.
Não só o papa se recusou a culpar publicamente o Kremlin, como o seu esforço para posicionar a Santa Sé como um observador neutro e apartidário atingiu alturas absurdas e embaraçosas, graças a alguns de seus assessores mais próximos.
Nada foi mais chocante do que a declaração pública do cardeal Pietro Parolin sobre o bombardeio russo de um hospital infantil.
O italiano de 67 anos, que Francisco nomeou como seu secretário de Estado em 2013, chamou a ação meramente de “inaceitável”.
O diplomata mais experiente do Vaticano, talvez, era experiente demais pela metade.
Inaceitável é quando o seu filho chega em casa três horas depois do combinado.
Inaceitável é quando alguém falta ao trabalho quatro dias seguidos sem uma desculpa válida.
E inaceitável é quando um padre repreende as pessoas no meio da missa.
Mas bombardear um hospital infantil não é inaceitável. É abominável. É perverso.
O agregador de notícias católicas online Il Sismografo lembrou – com descrença – que Parolin proferiu palavras muito mais fortes em 2015, quando um referendo na Irlanda aprovou o casamento gay.
“Eu acredito que isso não é apenas uma derrota para os princípios cristãos, mas também uma derrota para a humanidade”, disse o cardeal.
De fato, ele e outros hierarcas católicos usaram palavras e frases tão fortes, ou até mais fortes, para descrever todo tipo de outras coisas que a Igreja vê como pecaminosas ou criminosas.
Obviamente, a abordagem do Vaticano neste momento – que está sendo ditada pelo papa – é evitar fazer ou dizer qualquer coisa que possa antagonizar ainda mais Putin. Afinal, o megalomaníaco presidente russo tem um arsenal nuclear.
Mas, em algum momento, Francisco e seus diplomatas clericais devem encarar o fato de que não há nenhum papel de negociação ou de mediação para eles aqui.
De fato, como observou o Il Sismografo, a Santa Sé mediou com sucesso um conflito entre duas nações apenas uma vez nas últimas décadas. Foi o conflito do Canal de Beagle entre a Argentina e o Chile no fim dos anos 1970 e início dos anos 1980.
“Desde então, o Vaticano facilitou processos de reaproximação – muitas vezes com intervenções fracassadas e com sucesso parcial e momentâneo”, destacou o site, citando lugares como República Centro-Africana, Sudão do Sul, Venezuela, Nicarágua, Colômbia e Cuba/Estados Unidos.
Talvez seja hora de o Vaticano e seus apoiadores abandonarem a ideia de que o Romano Pontífice e a Santa Sé ainda são grandes “players” no cenário global e admitirem que têm muito menos peso na esfera geopolítica do que pensam.
Certamente, a intenção é nobre e louvável – usar qualquer prestígio e poder que a Igreja ainda possui para agir como uma força do bem.
Mas é aí que reside o problema.
Será que o fato de ser uma força do bem se baseia, como muitos no Vaticano parecem estar convencidos, em reter e aumentar o prestígio e o poder que advém de ser uma entidade soberana quase estatal? Ou isso pode ser alcançado com a mesma eficácia sendo uma Igreja pobre e missionária?
Talvez, alguns achem que podem ser ambas as coisas, sem abrir mão de seu assento à mesa dos mais poderosos do mundo.
Mas será que isso é possível sem diminuir ainda mais a eficácia histórica (ainda que minguante) de um lado ou sem sacrificar a missão profética e evangélica do outro?
A voz de Carlo Maria Martini continua ressoando.
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“Inaceitável”? As limitações inerentes aos esforços da Santa Sé na esfera geopolítica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU