Irmãos e inimigos: a contingência do mistério e das Igrejas. Artigo de Andrea Grillo

Foto: Pixabay

11 Março 2022

 

A fraternidade exige a lei para se desenvolver, mas não é por ela fundada. Nesse paradoxo, reside a diferença da fraternidade em relação ao par liberdade-igualdade: liberdade e igualdade podem ser reduzidas a “inícios”, enquanto a fraternidade é sempre contingência iniciada.

 

A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Come Se Non, 06-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Uma fraternidade invisível nos dá esperança. A de um filho que morre, pelas mãos dos homens, e que nisso torna todos os homens e mulheres irmãos e irmãs.

 

A solidão com que se inicia a aproximação à Páscoa, o deserto de relações e de coisas, em que se torna mais alta a palavra que tenta – que tenta com a fome, com o milagre e com o poder –, é a reconsideração do que significa ser irmãos.

 

A fraternidade visível, com as suas doçuras, é conflito, luta, defesa de um reconhecimento esperado, desconfiança pelo reconhecimento alheio. Essas histórias de difícil fraternidade atravessam as parábolas e os acontecimentos das Escrituras, a História das nações e dos povos, a consciência das cidades e as fadigas das famílias, as relações públicas e as casas privadas.

 

A fraternidade visível não se salva por conta própria. Ela pode se salvar se se abrir a uma verdade mais profunda e mais árdua, em uma comunhão que tão forte a ponto de se confiar nas mãos e nas mentes de cada ser humano individual. Carregamos a imagem e a semelhança de Deus nas nossas mãos e nas nossas palavras: assim nos tornamos irmãos e irmãs, confiando a Deus e ao próximo a paz das nossas vidas.”

 

Recordo hoje com particular emoção uma lição de Jean-Luc Nancy em um congresso da Faculdade Teológica da Itália Setentrional, de Milão (que indico abaixo [em italiano] e que aconselho a escutar, quase como uma conferência de início de Quaresma), no qual o falecido filósofo, em uma das suas últimas lições, intituladas “Afinal, quem são os irmãos?”, lançou uma luz transversal e singularmente límpida sobre o conceito de fraternidade e sobre o seu valor “central” para a compreensão da humanidade do ser humano.

 

 

O termo “fraternidade” revelou-se muito importante no início da era tardo-moderna, mas também sofreu uma série de “mal-entendidos” devido às associações que sugeria. Falar de “fraternidade” parece enfatizar uma dependência de um “familismo”, de um “machismo” e de um “sentimentalismo” que a tradição tardo-moderna chegou a colocar sob juízo e cobriu de uma densa suspeita.

 

Nancy consegue mostrar com maestria que esse tipo de desconfiança repousa sobre uma incompreensão dos termos “análogos” a que se refere. Por isso, ele defende que a noção de “fraternidade” – para ser verdadeiramente compreendida – deveria pôr em movimento uma profunda reavaliação do papel de termos como “família”, como “relação de gênero” e como “afetividade/sentimento”.

 

 

Uma inversão profética é proposta por Nancy: uma leitura radical da “família”, fora de uma hipótese fundadora e patriarcal, não como “afirmação de um arché”, mas como “comunidade de vida”, permite descobrir que a fraternidade/sororidade é o espaço aberto pelo duplo princípio de sangue/sêmen masculino (e feminino) e aleitamento/nutrição feminina (e masculino).

 

Para que haja fraternidade, não basta uma “geração imediata e paterna comum”, mas também é preciso “gestação, parto, aleitamento e educação materna”, não imediata e descontínua, contingente e repetida. Essa “dupla condição” da fraternidade – uma imediaticidade contínua quase ausente e uma mediação descontínua hiperpresente – realiza-se na “dispersão-emancipação-maturação”. A questão a ser feita é a pretensão de “purificar” a fraternidade do vínculo.

 

A fraternidade permanece sempre também como um “fora” da lei, pois mantém uma exterioridade em relação ao direito à liberdade e à igualdade. Aqui, podemos dizer que a tríade revolucionária indica dois direitos (à liberdade e à igualdade), dos quais o primeiro poderia ser entendido como “absoluto”, e o segundo só pode ser “relativo”.

 

Imagem: ilustração de fraternidade

 

 

Podemos acreditar que temos o direito de ser absolutamente livres, de fato, mas é difícil concebermos um direito à igualdade sem um termo de comparação. Se somos iguais, devemos nos perguntar: em relação a quê?

 

Com a fraternidade, porém, é realmente difícil concebê-la como um direito, senão mediante uma redução quase completa da experiência. Antes, é mais um “dever”. Ou, ainda mais, é ao mesmo tempo um fato e um dom: a fraternidade tem a contingência dos fatos dados e dos dons pressupostos.

 

O que é certo é que a fraternidade custa a ser reconduzida simplesmente a si mesma. Ela tem uma exterioridade invasiva e constrangedora – exterioridade do irmão/irmã, mas antes ainda exterioridade paterna e materna – que a mina precisamente enquanto a constitui.

 

Para o sujeito tardo-moderno, já é problemático reconhecer que é “genito”, ou seja, gerado, relacionado estruturalmente com uma origem. Sob certos aspectos, ainda mais problemático é aceitar ser “con-genito”, ou seja, ter em comum com outros/outras não só a geração, mas também a nutrição, a educação, a formação.

 

É verdade que somos “postos” e “supostos” – embora de forma abstrata – como livres e como iguais. Mas, como irmãos, somos “congênitos”, “compartilhados”, “cuidados”, “acompanhados”, “educados”.

 

Aqui reside – segundo Nancy – a raiz da “suspeita” tardo-moderna sobre a heteronomia da fraternidade, mas também a força de um conceito que se abre a uma comunhão não fundada em um “status”, mas por um “actus”. Quem são, portanto, os irmãos? Aqueles que reconhecem, não abstratamente em um status genético, mas em um ato de genealogia paterna e materna, a comunhão de vida – de alimentação, de necessidade e de desejo – como aquilo que está aquém e além da lei.

 

A fraternidade exige a lei para se desenvolver, mas não é por ela fundada. Nesse paradoxo, reside a diferença da fraternidade em relação ao par liberdade-igualdade: liberdade e igualdade podem ser reduzidas a “inícios”, enquanto a fraternidade é sempre contingência iniciada.

 

 

As diversas “contingências fraternas” mostram a força da fraternidade visível, mas também o seu limite não necessário e violento. A fraternidade universal é a mais contingente e a mais frágil, mas também a mais decisiva. Ela se alimenta de fé, de esperança e de caridade. É recebida como um dom. Se tentarmos traduzi-la simplesmente em direitos e deveres, podemos perdê-la ou confundi-la com as formas visíveis, mas violentas, do fato de sermos irmãos “mais velhos” ou “mais novos”.

 

Ser irmãos e irmãs todos iguais e todos diferentes é ao mesmo tempo a mais alta utopia e o mistério mais delicado. Pobre e inerme como todo verdadeiro mistério.

 

O ato de se fazer visível do mistério da fraternidade universal em Cristo e na Igreja que segue o seu Senhor torna as Igrejas responsáveis por essa universalidade “não étnica”, “não familiar”, “não nacional”. Difícil tarefa “católica” de cada Igreja. Alimentar as formas históricas do ato de ser irmãos e irmãs, sem cair na violência dos “irmãos russos”, dos “irmãos ucranianos” e dos “irmãos da Itália”.

 

O mistério da fraternidade pede deserto e pede festa. A Igreja introduz nesta “vida fraterna” homens e mulheres lavados, perfumados e nutridos, na contingência dos gestos elementares e primários. Os gestos familiares, transfigurados na morte e ressurreição, levam, no Espírito, à paz e à comunhão.

 

A diferença entre fraternidade visível e fraternidade invisível atravessa os gestos da primeira fraternidade para acessar, por dom e por tarefa, a segunda. Se as Igrejas não mantiverem bem firme essa relação delicada entre formas visíveis e graça invisível, ou resvalarão para a etnia violenta ou decairão no formalismo indiferente.

 

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