06 Março 2022
Problemas estruturais e de formação fortalecem preconceitos e violências contra corpos negros; presença de policiais fazendo ‘bico’ ou na gestão das empresas é um agravante.
Imagem: João Alberto foi espancado até a morte por dois seguranças; um deles sendo um policial militar | Foto: reprodução / mídias sociais
A reportagem é de Caroline Nunes e Juca Guimarães, publicado por Alma Preta e O Joio e O Trigo, 03-03-2022.
A morte de João Alberto Silveira Freitas, espancado por seguranças prestadores de serviço do Carrefour, em novembro de 2020, levantou o debate sobre a existência de racismo estrutural no funcionamento do setor de segurança privada no país.
Na avaliação de José Vicente, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, há um olhar seletivo dos vigilantes, quase automático, que se volta contra a população negra. “Ele se sente como sendo o responsável por manter a ordem. No entanto, este conceito de ‘ordem’ exclui a pele negra. A reação é o olhar de suspeita, a perseguição pelos corredores, a postura intimidadora e o constrangimento. Isso acontece mesmo se o vigilante for negro, por conta do racismo enraizado na sociedade contra os corpos negros”, explica.
O trabalho informal de segurança, realizado normalmente por policiais e chamado de ‘bico’, é proibido por lei no Brasil. No entanto, diversos policiais militares e civis complementam a renda desta forma. Outro fato comum de se ouvir quando acontece algum caso de violência que envolva empresas ou prestadores de serviço de segurança, é que os profissionais causadores da agressão são pessoas despreparadas para exercer tal função.
No entanto, a pesquisa “Escuta de Policiais e demais profissionais da segurança pública do Brasil”, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e publicada em novembro de 2021, revela que 6% dos policiais entrevistados declararam fazer atividades de segurança privada para complementar a renda.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública e com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há aproximadamente 687 mil policiais e bombeiros e 99 mil guardas municipais no Brasil em exercício da função. Logo, o percentual de profissionais que fazem ‘bico’ equivale a pelo menos 47 mil policiais, bombeiros e guardas municipais que também trabalham de maneira informal.
Dados compilados pela Fenavist (Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte de Valores) e publicados na 15ª. Edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelam que o setor formal de segurança privada tem reduzido a quantidade de pessoas contratadas nos últimos anos. Em 2018, havia no país 604.746 seguranças privados aptos a exercer a profissão na ativa. Em 2020, esse número foi reduzido para 526.108.
De acordo com esses dados, nos últimos dois anos, 78.638 seguranças privados foram demitidos no Brasil. Esse contingente pode ser explicado, por exemplo, pela retração da economia em função da pandemia, e/ou a adoção de novas tecnologias e sistemas pelas empresas do setor.
Outra informação disponível no Anuário é que, segundo a Polícia Federal, as empresas privadas adquiriram, em 2020, 17,8 milhões de novas munições, um total 64,7% superior ao de 2019, quando elas tinham adquirido 10,8 milhões de munições. E isso ocorre em um período de pandemia, com queda de cerca de 29% nos crimes patrimoniais, como roubos de carga, entre outros.
A pesquisa ainda mostra que a contratação irregular de seguranças privados só é investigada em casos de repercussão, como ocorreu com o caso de Beto Freitas e a empresa de segurança Vector.
Além disso, os cursos de formação de vigilante têm cerca de 200 horas, completadas em 20 dias, com disciplinas como: primeiros socorros, noções de criminalística e técnicas de entrevista, radiocomunicações, gerenciamento de crises, hino nacional, direitos humanos e relações humanas no trabalho, entre outras.
“Na prática, as matérias oferecidas são muito fragmentadas e com pouca articulação entre si. Além disso, os conteúdos sobre os Direitos Humanos são demasiados abstratos e sem coordenação sensível com a atividade do dia a dia”, aponta a antropóloga Susana Durão, especializada em Sociedades Complexas pela ISCTE-IUL, de Portugal e coordenadora científica do Centro de Estudos e Pesquisas em Segurança, Igualdade e Justiça Racial da Faculdade Zumbi dos Palmares, de São Paulo.
O treinamento de policiais militares e civis para a atividade de segurança pública não é compatível com a função de segurança privado do setor de varejo, explica o delegado de polícia e doutor em Direito Público, Fernando Antonio Alves, do Movimento de Policiais Antifascista.
“Ser policial é uma atividade que requer dedicação exclusiva. Não deveria haver bico em segurança privada, mas acontece. É inconcebível que um policial seja tão mal pago para ser obrigado a desenvolver uma atividade privada para completar o orçamento familiar e puder sustentar a família”, lamenta Alves.
O delegado, que fez mestrado em Ciência Política, aponta que, além da precarização e os baixos salários dos policiais que acabam indo fazer ‘bico’ como segurança, há ainda um grande problema na estrutura de parte das empresas do setor.
“Há casos de oficiais e delegados que montam empresas de segurança privada e colocam laranjas familiares para assumirem e contratam, muitas vezes, ilegalmente ou por meios informais, policiais fora de serviço”, comenta o delegado.
Segundo ele, nessas empresas criadas por policiais, assim como em boa parte do setor de segurança privada, são reproduzidas dinâmicas discriminatórias comuns na estrutura da segurança pública. “Muito racismo e preconceito de classe extremo, identificando, tanto em serviço policial, quanto nos ‘bicos’ o preto e o pobre como bandidos”, continua.
Por conta dessa mentalidade racista, a tortura física e psicológica de pessoas suspeitas de furto em supermercados é comum nas chamadas “salinhas do racismo”, onde os suspeitos são detidos ilegalmente e torturados, com o respaldo de policiais que atuam no setor.
Um dos seguranças do Carrefour preso por envolvimento na morte do Beto Freitas, na loja de Porto Alegre, em 19 de novembro de 2020, é o policial militar Giovani Gaspar da Silva, 25 anos, que era policial temporário e estava fazendo bico para a empresa contratada, na época, pelo Carrefour.
Após a repercussão da morte do Beto Freitas, a rede Carrefour assinou um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com investimentos de até R$ 115 milhões para apoiar a luta antirracista e anunciou que iria romper todos os contratos de terceirização da segurança para contratar equipes próprias, com treinamento interno, para a segurança da rede. A empresa também criou uma programação de treinamento antirracista para todos os funcionários e colaboradores.
“Só mudar o modelo de segurança não resolve. Temos que focar na eliminação dos preconceitos, investir em treinamento e mudar esse olhar que os vigilantes aprendem com o reforço de estereótipos”, defende o reitor da faculdade Zumbi dos Palmares.
O Carrefour foi procurado para comentar se já trocou todas as equipes de seguranças nas lojas brasileiras, quais os efeitos da mudança e quanto custou a alteração no modelo de segurança. Porém, até a conclusão da reportagem não respondeu aos questionamentos.
De acordo com o artigo ‘A disseminação da segurança privada no Brasil: pressupostos e motivações’, de André Zanetic, Doutor e Mestre em Ciência Política pela USP, os serviços de segurança privada expandiram de forma mais significativa no mundo a partir dos anos 1960, estimulados por mudanças importantes nas dinâmicas sociais, em especial, nos grandes centros urbanos.
Ainda nos anos 1960, a indústria da segurança, que até então estava apenas sob o poder das polícias, se encontrava praticamente extinta no Brasil. Isso se explica pela concepção, naquele momento, de que a existência de polícias privadas (ou empresas de segurança privada) traria sérias consequências à paz e aos direitos civis.
Nesse contexto, enquanto a polícia pública estava identificada diretamente com o interesse público, a polícia privada significava um desacordo com tal interesse.
De uma forma geral, as principais causas dessa expansão foram: o incentivo econômico e o espaço legal para o policiamento corporativo, entre os quais o surgimento e a disseminação das “propriedades privadas em massa”; o aumento do crime e da sensação de insegurança; e outros fatores inerentes a esses, como a pressão das companhias de seguros sobre seus clientes para a contratação de serviços especializados de proteção.
“Se, por um lado, houve uma série de incentivos para a emancipação desse mercado, por outro, o contexto para tal emancipação foi possibilitado por mudanças importantes na consciência política, que tornaram possível, na esfera da segurança, criar um sistema integrado, público e privado, entre as atividades do Estado e os avalistas corporativos da paz”, diz um trecho do estudo.
Posteriormente, na década de 1980, os serviços de policiamento privado passam a ser considerados parte da luta contra o crime, tornando-se “parceiros em pé de igualdade” das forças públicas, para além de suas funções de autodefesa e proteção.
Com o êxito dessas colocações, amenizam-se as críticas sobre as polícias privadas, desobstruindo de vez o caminho para seu desenvolvimento sem perturbações, levando o volume desse setor de serviços a atingir números significativos, segundo o artigo.
Para compreender a situação da segurança privada no Brasil e por que a prática ainda é bastante presente nos mais diversos segmentos do mercado, o faturamento anual do nicho serve como exemplo: a área representa um faturamento expressivo, com cerca de R$35,7 bilhões movimentados no setor anualmente.
O Anuário aponta ainda que o mercado de segurança privada conta com 2.471 empresas do ramo. Essas empresas são as que estão regulamentadas e são fiscalizadas atualmente, bem como prestam os serviços de segurança privada por meio de contratação, em conformidade com o Projeto de Lei 1.043, de 2021.
No entanto, existem outras empresas que fazem a segurança privada, de acordo com a pesquisa. Essas prestadoras de serviço de segurança são classificadas como ‘orgânicas’, ou seja, que contratam os profissionais de forma direta – e compõem 1.154 das organizações brasileiras.
As empresas, independentemente de sua natureza, possuem um foco maior em vigilância patrimonial. Essa área é a que mais movimenta o faturamento da segurança privada, sendo responsável por 99,1% das atividades das empresas orgânicas, por exemplo. Além disso, são também comumente direcionadas para atendimentos de segurança pessoal, escolta, transporte de valores, entre outras atividades.
A segurança privada no Brasil é quase predominantemente uma área de atuação masculina. Do total de vigilantes, 91% são homens e apenas 9% são mulheres. As idades dos profissionais que atuam no ramo variam entre 30 e 49 anos na maioria dos casos.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra ainda que 2020 foi um ano muito complexo para o setor. O PIB do país caiu 4,1%. Já no setor de serviços, que contempla a segurança privada, a queda foi de 4,5%. Porém, a grande maioria dos postos de trabalho ainda foram mantidos.
Em 2019, o contingente era de 540.738 profissionais nas empresas especializadas e 24.425 nas orgânicas. Já em 2020, esse número passou a ser de 520.179 nas empresas especializadas. Nas empresas orgânicas, o número chegou a 25.298 profissionais em atuação no setor.
Em 2021, as empresas especializadas contam com cerca de 502.318 profissionais e as orgânicas com 23.790. Esse número é bastante elevado e demonstra que, mesmo com a pandemia, o setor se mostra uma opção sólida de investimento.
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Segurança privada em supermercados reproduz racismo no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU