19 Março 2022
"Como conviver com tanta dor sem ceder à violência, à vingança? Sabendo o que estava acontecendo, eu não podia mais me virar para o outro lado. Não havia nada que eu pudesse fazer para parar aquela loucura, mas eu poderia curar as vítimas".
O comentário é de Gino Strada, publicado por Corriere della Sera, 03-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Gino Strada, nascido Luigi (Sesto San Giovanni, 21 de abril 1948 - Honfleur, 13 de agosto 2021), foi médico, ativista, filantropo e escritor Italiano, fundador, junto com sua esposa Teresa Sarti (1946-2009), da ONG italiana Emergency.
Nascido em Sesto San Giovanni, operário comum do cinturão milanês, cresceu em um ambiente católico sensível à realidade social que se inspirava nas ideias do Concílio Vaticano II, e depois ingressou na corrente comunista universitária. Depois de concluir seus estudos do ensino médio na escola "Carducci", Strada se formou em medicina e cirurgia na Universidade Estatal de Milão em 1978, aos trinta anos, e depois se especializou em cirurgia de urgência. Durante os anos de protesto ele foi um dos ativistas do Movimento Estudantil.
Gino Strada era ateu. Ele era um amigo próximo do conhecido padre de rua Andréa Gallo (1928-2013).
Morreu repentinamente em Rouen, França, aos 73 anos, em 13 de agosto de 2021; ele sofria de problemas cardíacos.
Eu havia frequentado uma das escolas especializadas mais respeitadas da Itália e havia estudado transplantes de coração e pulmão em duas das melhores universidades do mundo. Experiências importantes, tecnicamente sólidas, mas nada que realmente me tivesse preparado para o que veria em um hospital para feridos de guerra do outro lado do mundo.
Durante muitos meses, operei pacientes atingidos por projéteis e estilhaços de bombas, dilacerados por minas terrestres, sem ter tempo ou capacidade para pensar. Eu estava envolvido com o trabalho e ao mesmo tempo atordoado. Apesar de ter trabalhado por anos em cirurgia de emergência, nunca tinha visto feridas tão horríveis, devastadoras (...)
O trabalho me interessava muito, fazíamos a grande cirurgia abdominal, a cirurgia torácica. Eu gostava de aprender e esta era uma cirurgia nova e imprevisível, que todos os dias me apresentava diferentes problemas técnicos e me obrigava a improvisar soluções, a combinar conhecimentos médicos com a imaginação e bom senso. Um trabalho gratificante, que trazia em si o prazer do desafio, talvez da aventura. Às vezes até me orgulhava dos resultados clínicos porque conseguimos salvar muitas vidas e consertar outras, com meios limitados e em um contexto difícil. Não tinha escolhido aquele trabalho porque estava irresistivelmente movido pela necessidade de salvar vidas humanas: simplesmente me achei ali e descobri o quanto gostava de fazê-lo. Quase nunca se falava de guerra no hospital.
A equipe nacional, principalmente refugiados afegãos, raramente a mencionava, com resignação imparcial. Nos momentos de pausa eu sempre tentava saber mais, falando um pouco de inglês intercalado com algumas frases em farsi e pashto. Eu estava interessado em saber o que eles pensavam sobre o que estava acontecendo em seu país, como eles vivenciavam a pressão constante de ajudar os feridos, se temiam por seus entes queridos deixados em casa.
"Jung ast" é a guerra, eles simplesmente comentavam diante das minhas perguntas e aos horrores diários. Todos os dias chegavam feridos, às vezes pessoas morriam durante a viagem, muito longa e cansativa. Não sei se a reação deles era para se defender daquela barbárie ou se efetivamente já estavam acostumados. Quem sabe o que eles haviam visto em sua casa, se a guerra havia tocado de alguma forma as suas famílias. Eles apenas repetiam "Jung ast". Afinal, a guerra, para muitos deles, era a única condição experimentada no curso da vida.
Fiquei em Quetta por quase um ano, todos os dias na sala de cirurgia juntando pedaços da humanidade desmembrada. De volta à Itália, logo descobri que aquela experiência me havia mudado. Não consegui retomar a vida de sempre, não conseguia mais me adaptar à cotidianidade. Na época meus amigos me perguntavam como eu podia querer voltar para um lugar como aquele, para ver todos aqueles mortos e feridos novamente. Eu entendia as suas perplexidades, mas queria voltar justamente porque tinha visto todos aqueles mortos e aqueles feridos. Muitas vezes falei sobre isso com colegas da Cruz Vermelha Internacional, cirurgiões e enfermeiros que eventualmente haviam deixado carreiras seguras ou suas famílias sem poder saber nada delas por meses.
Uma vida intensa, desafiadora, mas também muito exigente do ponto de vista físico e da saúde mental. Depois você pensava, por exemplo, em uma família afegã que morava em uma aldeia, cultivava a terra e criava algum animal. E como alguém havia decidido fazer uma guerra, você, camponês daquela aldeia que nada sabia de objetivos e estratégias, da noite para o dia se encontrava com um filho amputado ou morto. Você tentava imaginar a sua vida em uma daquelas casas de barro, labutando nos campos para alimentar seus filhos com o risco de perdê-los ou vê-los sofrer uma bomba estúpida.
Como conviver com tanta dor sem ceder à violência, à vingança? Sabendo o que estava acontecendo, eu não podia mais me virar para o outro lado. Não havia nada que eu pudesse fazer para parar aquela loucura, mas eu poderia curar as vítimas. Fiquei na Itália por apenas alguns meses, depois parti novamente. Eu tinha escolhido ser um cirurgião de guerra: destino Cabul.
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O ano em que minha vida mudou. Artigo de Gino Strada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU