23 Fevereiro 2022
Embora muitos católicos estejam cientes de que o laicato tinha um papel na eleição de bispos, na convocação dos concílios da Igreja e na remoção de clérigos corruptos, muito poucos sabem que há um precedente para o fato de leigos e leigas serem membros com direito a voto em um concílio ecumênico.
A opinião é de C. Colt Anderson, professor de Espiritualidade Cristã na Fordham University, nos Estados Unidos, em artigo publicado em Sapientia, 18-02-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Papa Francisco fez da “sinodalidade” uma marca registrada do seu papado, que completa nove anos no próximo mês. E até levou o processo sinodal para cada diocese com um processo de consulta contínuo de dois anos, que culminará em um Sínodo sobre a Sinodalidade, no Vaticano, em outubro de 2023. O processo é novo para muitos católicos, e a palavra grega “sínodo” (literalmente, “caminhar juntos”) parece tão estranha quanto a ideia de uma ampla consulta.
Até agora, os sínodos sempre foram realizados a cada poucos anos no Vaticano e foram estritamente definidos como Sínodos dos Bispos – se os leigos e leigas fossem convidados a assistir, eles não tinham nenhuma voz real, muito menos voto.
Francisco está mudando essa dinâmica, e muitos católicos têm dúvidas sobre o papel dos leigos e leigas em um processo sinodal. Como seria isso?
Rafael Luciani, teólogo que trabalha no Boston College e consultor do próximo Sínodo dos Bispos, pediu uma cogovernança entre o laicato e o clero no Sínodo.
Como Luciani disse ao Crux, “cogovernança não significa que uma pessoa toma a decisão final e a coloca sobre a mesa, e os outros precisam entender por que essa decisão foi tomada. Ela significa que o discernimento deve ser feito em conjunto, e as decisões devem ser tomadas em conjunto, e não explicadas de cima para baixo”.
Essa atitude nem sempre foi bem-vinda.
Pelo menos desde o século XIX, os bispos católicos ou se opuseram à consulta ao laicato ou procuraram limitar as vozes que seriam ouvidas. Quando São John Henry Newman escreveu um artigo pedindo a consulta aos leigos e leigas sobre assuntos relacionados às escolas católicas em 1859, ele conquistou o desgosto pessoal do Papa Pio IX (1846-1878). Um dos conselheiros mais próximos do papa, o Mons. George Talbot, chamou Newman de “o homem mais perigoso da Inglaterra”.
Em sua defesa, Newman definiu a “consulta” como uma expressão de confiança e deferência, mas não de submissão. Dessa forma, ele tentou dissipar quaisquer temores de que estivesse sugerindo que os bispos deveriam se submeter aos leigos e leigas. Talbot e clérigos como ele continuaram em sua atitude de desdém. Talbot escreveu: “Qual é a competência dos leigos? Caçar, atirar, entreter”. A maioria do clero aceitou a posição de Talbot de que os leigos e leigas não tinham nenhuma competência em assuntos eclesiásticos.
Ao promover a sinodalidade, o Papa Francisco está desafiando o tipo de clericalismo expressado pelo Mons. Talbot. Embora o apoio de Francisco à escuta do laicato possa parecer uma inovação para os críticos abertos do seu impulso sinodal, ele está simplesmente restaurando parte de uma tradição mais antiga que reconhecia a necessidade de consultar leigos e leigas.
De fato, os leigos e leigas também tiveram um papel na governança. Embora muitos católicos estejam cientes de que o laicato tinha um papel na eleição de bispos, na convocação dos concílios da Igreja e na remoção de clérigos corruptos, muito poucos sabem que há um precedente para o fato de leigos e leigas serem membros com direito a voto em um concílio ecumênico.
O Concílio de Constança, que começou em 1414, permitiu que os membros leigos votassem, e eles foram eficazes. O Concílio de Constança acabou com o cisma papal que havia começado em 1378 (quando papas rivais em Avignon e em Roma reivindicavam legitimidade), e Constança é formalmente reconhecido como um concílio ecumênico na Igreja Católica.
Por que você nunca ouviu falar do papel que os leigos e leigas desempenharam? Bem, Constança é um daqueles concílios historicamente problemáticos – problemáticos para o ensino magistral contemporâneo e para o direito canônico. Mas algumas lideranças da Igreja na época não viam nenhum problema. O cardeal francês Pierre D’Ailly, que desempenhou um papel crucial no planejamento de Constança, convenceu os cardeais e os bispos a permitirem que os delegados leigos votassem, com base no princípio de que “o que diz respeito a todos deve ser aprovado por todos”.
D’Ailly, assim como seus contemporâneos, acreditava que toda autoridade deriva principalmente de Deus. No entanto, ele argumentava que a autoridade funcional vem da comunidade. Da mesma forma, os concílios gerais recebem sua autoridade principalmente de Deus, mas sua autoridade vem do consentimento de todos os fiéis de uma forma representativa.
Segundo D’Ailly, o laicato não votava nos primeiros concílios porque os bispos eram eleitos pelas suas comunidades locais. Em termos contemporâneos a nós, ele afirmava que a Igreja primitiva tinha uma forma de governo representativo. Com efeito, sua proposta se baseava na tradição. Dirigindo-se à assembleia de Constança, ele sustentou que nenhum católico podia ser excluído do concílio e que todas as ordens da Igreja deviam poder votar, incluindo os representantes dos doutores em teologia, direito e direito canônico.
A cogovernança dos sínodos seria um passo significativo na restauração das vozes dos fiéis no governo da Igreja. Sem cogovernança, os bispos poderão incluir apenas as vozes daqueles que concordam com eles. Tal abordagem fica muito aquém da representação do tradicional sensus fidelium (senso dos fiéis).
Mesmo que os sínodos apresentem uma governança compartilhada, eles continuam sendo órgãos consultivos. As conclusões dos sínodos podem ser rejeitadas unilateralmente por um papa. Mesmo assim, embora seja certamente verdade que a Igreja Católica não é uma democracia, ela foi muito mais representativa na era patrística dos primeiros séculos do cristianismo.
Se a capacidade de toda a Igreja de reconhecer a verdade é mais do que apenas um slogan, então precisamos encontrar formas para restaurar o papel do laicato no governo da Igreja. Fazer isso significaria dar aos leigos e leigas mais do que um papel consultivo, para que “o que diz respeito a todos seja aprovado por todos”.
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Sínodos e laicato: um encontro marcado na história - Instituto Humanitas Unisinos - IHU