17 Fevereiro 2022
Embora Joe Biden tenha substituído Donald Trump na Casa Branca, as relações entre os Estados Unidos, potência instalada, e a China, potência em ascensão, permanecem extremamente tensas. Certamente, em questões como o combate ao aquecimento global, os dois países mostram vontade de cooperar, mas na maioria das outras áreas o tom é ofensivo. E o número 1 da China, Xi Jinping, alertou recentemente para o risco de “recair em confrontos e divisões da Guerra Fria” na Ásia. O mundo encaminha-se para um novo duelo entre duas potências dominantes e para a constituição de blocos que lhes seriam respectivamente subservientes?
Pierre Grosser é professor de História das Relações Internacionais no Instituto de Estudos Políticos de Paris.
A entrevista é de Yann Mens, publicada por Alternatives Économiques, 05-02-2022. A tradução é do Cepat.
O tom vem subindo há vários anos entre a China e os Estados Unidos, ao mesmo tempo nos níveis econômico, diplomático e militar. Estamos no alvorecer de uma nova Guerra Fria?
A chamada guerra “fria” nem sempre foi fria na realidade. Certamente, nenhum conflito frontal opôs os Estados Unidos e a União Soviética. Por outro lado, os Estados Unidos e a China travaram guerra diretamente na Coreia entre 1950 e 1953. Um confronto extremamente violento que a China celebra hoje de forma massiva, em filmes de ficção em particular, ao chamá-la de guerra de agressão dos EUA contra a China e ignorando completamente os próprios coreanos, quando eles representaram a maioria dos mais de três milhões de mortos no conflito, em comparação com cerca de 200 mil chineses mortos, e que foi o coreano Kim Il-sung quem lançou a guerra com o consentimento de Stalin. A mensagem que as autoridades chinesas enviam assim aos Estados Unidos é que seu país vai detê-los outra vez se eles a atacarem novamente. É até possível que, na mente dos dirigentes chineses, a Guerra Fria nunca tenha realmente terminado.
É certo que com a ascensão ao poder de Deng Xiaoping em 1978, a China manteve um perfil baixo no cenário internacional. Mas não seria porque seus dirigentes aprenderam as lições do colapso da União Soviética e esperaram até que seu país fosse economicamente poderoso o suficiente, mantendo o papel central do Partido Comunista na estrutura de poder, para se reafirmar no mundo? É somente desde que Xi Jinping chegou ao poder em 2012 que eles se sentem desinibidos no cenário internacional, especialmente porque sentem que os próprios Estados Unidos estão em dificuldade, até mesmo em declínio.
Por que a China considera que os Estados Unidos estão em declínio?
Esse discurso chinês na verdade remonta ao início dos anos 1990. De fato, contrariamente a uma ideia dominante hoje, os Estados Unidos não triunfaram quando a Guerra Fria terminou com a queda do Muro de Berlim em 1989 e a dissolução da URSS em 1991. Suas dificuldades econômicas eram muito reais, o que explica, de modo particular, por que George Bush pai não foi reeleito para um segundo mandato em 1992, mas foi derrotado por Bill Clinton. No plano internacional, na época seu rival econômico e tecnológico era o Japão. Mas experimentou uma longa estagnação na década de 1990, enquanto a economia americana recuperava o crescimento. E o termo unipolaridade se impôs apenas a partir de 1995.
Durante vários anos, o discurso chinês assumiu essa ideia de um inevitável declínio ocidental e um retorno da Ásia – Pierre Grosser
Nos últimos anos, o discurso chinês assumiu essa ideia de um inevitável declínio ocidental e um retorno da Ásia, especialmente da China, ao seu devido lugar no cenário internacional. Mas está tingido de uma ideia que já vigorava no final dos anos 1990 em Pequim e segundo a qual o mundo caminha para a multipolaridade. A China não está dizendo que dominará o mundo, mas que vários polos se desenvolverão. É o que vemos com o surgimento de potências médias como a Turquia ou os Emirados Árabes Unidos em áreas de conflito no Oriente Médio ou na África, que as duas grandes potências não podem ignorar. Aos olhos da China, os Estados Unidos sentem essa multipolaridade chegando, o que os torna agressivos. Ao mesmo tempo, os dirigentes chineses também aprenderam há muito tempo a ser cautelosos com as capacidades de recuperação americanas. Quanto aos Estados Unidos, o confronto com a China é percebido como uma maratona. Michael Pillsbury, que foi conselheiro de Donald Trump, usou esse termo em seu livro The Hundred-Year Marathon. China’s Secret Strategy to Replace America As the Global Superpower. A ideia é que os Estados têm atrás de si o sopro da China e que devem imperiosamente acelerar o ritmo de sua corrida, especialmente no campo tecnológico.
O confronto no cerne da Guerra Fria foi, pelo menos em parte, ideológico. Existe hoje um confronto de modelos entre os Estados Unidos e a China? Ou apenas um confronto de poderes rivais?
A dimensão ideológica continua importante, mas de uma forma totalmente diferente do que era na época. Não há, em torno da China, o equivalente à Terceira Internacional, depois do Kominform que reuniu os partidos comunistas próximos à URSS e ditou seu comportamento até meados da década de 1950. Hoje, a China está em uma posição bastante defensiva. Apresenta-se como defensora da ordem internacional tal como foi instituída em 1945. Ou seja, uma ordem baseada na soberania dos Estados. Nesse sentido, opõe-se a tudo o que os Estados Unidos e a Europa acrescentaram desde os anos 1990, ou seja, um discurso pós-soberano, de ingerência, de condicionalidade democrática, que deveria reger as relações internacionais. Esta defesa da soberania nacional por parte de Pequim seduz, evidentemente, certos dirigentes de países do Sul que se recusam a receber sermões e/ou que são hostis ao imperialismo ocidental, especialmente porque a China parece ser um antigo país pobre que “conseguiu” e que constitui uma alternativa a pesar nas negociações com os credores.
Os Estados Unidos, por sua vez, desde a chegada de Joe Biden ao poder, demonstraram seu desejo de formar uma espécie de aliança de democracias. Uma ideia, na realidade, que remonta ao final da década de 1990, que foi relançada por volta de 2008 e que volta ao modo defensivo.
De qualquer forma, não acredito que a China queira oferecer aos países em desenvolvimento um plano como sendo em parte o marxismo e o maoísmo durante a Guerra Fria. Ela está tão orgulhosa de seu próprio modelo de desenvolvimento hoje que não acredita que seja replicável. Por outro lado, pretende promover seus interesses econômicos e estratégicos no mundo por meio de projetos como as Novas Rotas da Seda. Mas os países com os quais faz acordos nesse contexto, principalmente financeiros, não querem necessariamente depender muito disso. Especialmente porque, ao longo dos anos, a China se tornou cada vez mais intratável nas negociações, tão segura de si mesma. Por sua vez, a suspeita do colonialismo paira sobre Pequim.
Durante a Guerra Fria, as duas grandes potências não eram mutuamente dependentes em termos econômicos. Pelo contrário, hoje os Estados Unidos e a China o são. Isso é um grande obstáculo para o aumento das tensões?
É grande a tentação de usar a história para responder. No entanto, devemos sempre ter cuidado ao tirar lições categóricas do passado. Certamente, em 1914 como hoje, os capitalistas e os financistas geralmente não são belicistas, porque muitas vezes temem que a guerra prejudique seus negócios. No entanto, a forte interdependência econômica entre os países europeus no início do século XX, Alemanha e Grã-Bretanha em particular, não impediu a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Não podemos, portanto, prever que, graças à interdependência econômica e tecnológica, o custo da guerra será muito alto. Especialmente porque as várias interdependências podem ser usadas como armas. Além disso, em algumas áreas, a interdependência entre as duas grandes potências diminuiu nos últimos anos. Os Estados Unidos não são mais tão dependentes do poupador chinês para colocar sua dívida, por exemplo.
Há, mais amplamente, nos dois países em questão, um discurso sobre a necessidade de desconectar seus respectivos sistemas econômicos e tecnológicos. A China gostaria de não mais depender de fornecedores estrangeiros de microprocessadores, por exemplo, ou desenvolver sua própria nuvem. Mas esse desejo de “dissociação” ao mesmo tempo esbarra no desejo de cada uma das duas potências de ver seus padrões tecnológicos, digitais em particular, impostos em todo o mundo. Os chamados teóricos “realistas” das relações internacionais, como John Mearsheimer, acreditam que é natural, inevitável, que uma grande potência econômica queira primeiro se tornar uma grande potência militar, para depois impor seu poderio estrutural, ou seja, seus padrões, seu vocabulário no cenário internacional para garantir sua dominação. É o que os Estados Unidos fizeram, então seria natural que a China também quisesse fazer isso. Tudo isso, portanto, não teria nada a ver com a ideologia, mas seria o resultado de uma dinâmica natural de poder.
A China tem vontade de formar um bloco, como a União Soviética durante a Guerra Fria?
A China não tem absolutamente nenhum desejo de formar uma aliança militar estruturada, como a OTAN, que é dominada pelos Estados Unidos. Por outro lado, a Rússia e a China mantêm um discurso ambíguo sobre sua relação bilateral. É uma forma de aliança ou não? E isso preocupa os Estados Unidos. Uma situação que lembra as preocupações de Washington ao longo da década de 1950 e até o rompimento entre Moscou e Pequim no início dos anos 1960. Hoje, se a Rússia lançasse uma grande operação militar na Europa Oriental durante o ataque da China a Taiwan, os Estados Unidos se encontrariam em uma situação militar extremamente complicada.
Podem os Estados Unidos estabelecer um diálogo de segurança com a China para evitar um conflito frontal, como fez com a União Soviética?
Houve de fato durante a Guerra Fria, desde a morte de Stalin em 1953, uma série de cooperações entre os Estados Unidos e a União Soviética no seio das instituições internacionais, por exemplo no campo da saúde para combater epidemias. Em seguida, acordos de redução de armas estratégicas, a partir dos anos 1970 e principalmente após 1987, graças ao diálogo estabelecido entre Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev. Hoje, a preocupação dos Estados Unidos, que não têm experiência de diálogo bilateral com a China na área nuclear, é tentar incluí-la nos tratados sobre arsenais e mísseis nucleares que foram negociados com a URSS, depois a Rússia. Porque, como evidencia seu último relatório ao Congresso, o Pentágono está convencido de que Pequim está modernizando a todo custo seu arsenal, que permaneceu modesto por muito tempo. Os Estados Unidos enfrentam a gestão de um cenário nuclear multipolar, especialmente na Ásia, se incluirmos o projeto nuclear norte-coreano. Amanhã, se os republicanos retornarem à Casa Branca, eles aceitarão, como Donald Trump deu a entender, que o Japão e a Coreia do Sul desenvolvam suas próprias armas nucleares?
A Europa pode ajudar a aliviar as tensões entre os Estados Unidos e a China?
Os otimistas esperam que a Europa possa navegar habilmente entre esses dois polos de poder, garantir que eles não a prejudiquem ou até mesmo agir como mediadora. Na verdade, foi isso em parte durante a Guerra Fria. Os britânicos, por exemplo, tentaram apaziguar os Estados Unidos durante o conflito coreano. Mas hoje, a União Europeia aparece em grande medida como uma potência adormecida à mercê dos predadores, especialmente a China, Rússia e Estados Unidos, impotente contra as suas ações, bem como as das potências regionais, na sua periferia estratégica. No início do século XX, era a China, pelo contrário, que parecia adormecida e presa dos predadores imperialistas! Na realidade, não existe um pensamento estratégico comum na União Europeia. Claro que é natural que não vejamos o mundo da mesma forma a partir da Polônia ou de Portugal; que, devido à sua posição geográfica e sua história, os diferentes Estados-Membros têm prioridades estratégicas diferentes. Mas, além disso, cada sociedade europeia está hoje muito dividida sobre quem é amigo e quem é inimigo, o que torna a ação pública extremamente complicada.
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“Para os dirigentes chineses, a Guerra Fria talvez não terminou”. Entrevista com Pierre Grosser - Instituto Humanitas Unisinos - IHU