“Somos caminhantes, como os magos. Como eles, queremos caminhar como quem segue os melhores desejos do coração, com seus tesouros. Mas, não basta ouvir o chamado do coração: é preciso pôr-se a caminho, correr riscos, expor-se, sem temer a noite, nem a terrível cidade, os terríveis poderes que manipulam e matam. Precisamos criar laços de solidariedade, discernir o lado de quem queremos estar. Pôr-se a caminho é o oposto da passividade e da indiferença que matam.”
A reflexão é de Lúcia Pedrosa-Pádua, teóloga leiga, professora de Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. Ela graduou-se em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, FAJE, Belo Horizonte, e doutorou-se pela PUC-Rio. É bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Estudou no Centro Internacional de Estudos Teresianos e São Joanistas de Ávila (Espanha) e fez estudos de pós-doutorado na Pontifícia Universidade Gregoriana – PUG, em Roma, Itália.
1ª Leitura - Is 60, 1-6
Salmo - Sl 71, 1-2.7-8.10-11.12-13 (R. Cf.11)
2ª Leitura - Ef 3,2-3a.5-6
Evangelho - Mt 2,1-12
A solenidade da Epifania do Senhor marca a fase final do Ciclo do Natal. A palavra “epifania” significa “manifestação”. Deus se manifesta ao mundo, e os magos representam este mundo em sua diversidade e universalidade. Vindos de vários lugares, eles se põem a caminho para adorar o menino nascido em Belém.
Um símbolo importante surge nesta solenidade, a luz. Luz que não apenas ilumina o povo oprimido de Israel, mas todos os povos.
A primeira leitura (Is 60,1-6) traz o convite à cidade de Jerusalém para tornar-se luz. Vencer o desalento, o cansaço, porque Deus se aproxima e a ilumina. Terminou o exílio na Babilônia, os exilados retornam ao seu regaço. Caravanas do mundo inteiro acorrem a Jerusalém, as nações oferecem suas riquezas ao Deus salvador. Lemos no texto: "Põe-te de pé e torna-te luz, pois está chegando a tua luz: a glória do Senhor se levantou sobre ti". As nações vão caminhar para a tua luz e os reis, para a claridade da tua aurora (Is 60,1.3). No Evangelho, os magos que vêm do Oriente vão realizar esta profecia. São reis astrólogos e buscarão o Messias, não em Jerusalém, mas nos seus arredores, Belém, cidade de Davi. Uma misteriosa luz os ilumina, o próprio Cristo.
A segunda leitura (Ef 3,2-3a.5-6) é escolhida em função do tema principal. Proclama o mistério de Deus revelado em Cristo: não apenas Israel, mas também os demais povos são chamados a participar da salvação e da paz oferecidos em Cristo. Participam da mesma promessa. A manifestação de Deus a todos, mediante Cristo, faz parte do mistério do próprio Deus. Paulo tem conhecimento deste mistério e a missão de levar a boa-nova a estes povos.
O Salmo é de adoração (Sl 72[71], 1-2.7-8.10-11.12-13). Proclama que todos os reis servirão ao Deus que cuida da vida dos pobres e dos fracos. Aclama uma grande reviravolta, a de que os reis servirão ao Deus servidor.
O Evangelho de Mateus (Mt 2,1-12) nos diz que os magos do Oriente vão adorar Jesus. Prefigura-se, no início do evangelho de Mateus, a universalidade da boa nova de Jesus. Ao final do Evangelho, escutamos o ressuscitado enviando a Igreja a fazer discípulos de todas as nações (Mt 28,19).
“Toda a liturgia de hoje é atravessada pelo sentido universal da obra de Cristo” [1] . Mas, trata-se de uma universalidade particular. Ela tem um ponto de partida, irradiador de luz. É Belém, um povo que os magos não encontraram no mapa. Aquela cidade menor e aquela manjedoura onde estava Jesus, “o menino com Maria, sua mãe” (Mt 2,11), tornam-se o centro que tudo ilumina e a tudo enche de sentido e valor. Por ali passa a salvação para todos e todas.
Esta salvação se afasta da lógica da grande cidade de Jerusalém, com o poderoso rei Herodes e seus religiosos burocratas e acomodados. Ali há trevas e cegueira. Nada, além do ódio, pode ser irradiado. É poder de morte e para a morte. Com esta lógica não é possível enxergar a luz da estrela.
A luz vem do presépio, da comunidade do “menino e Maria sua mãe” (Mt 2,11), de Jesus pobre com sua família. Ali Deus se manifesta de forma a captar a atenção e o coração dos magos cheios de boa vontade e dispostos a deixarem os seus mágicos presentes, ouro, incenso e mirra.
O que a Epifania acrescenta ao Natal? Acrescenta este poder, ao mesmo tempo atrativo e irradiador, de Cristo e seu mistério aos que vêm de longe, de lugares insuspeitáveis da Arábia, terra de desertos inóspitos... (Is 60,6). São os representantes destas terras longínquas a adorar o menino. Paulo nos diz que o novo povo de Deus, a Igreja, reúne todas e todos para participam da salvação de Jesus Cristo (2ª leitura).
O menino nascido em Belém atrai os que viviam longe. Mas também os pobres, os pecadores, os leprosos, os descartados e descartadas da sociedade. Atrai os que não fazem parte da lógica do poder opressor ou da religião burocratizada e acomodada. Estes recebem o convite de Jesus, deixam-se guiar pela luz da estrela que sentem em seu coração e que veem em suas vidas.
A primeira reflexão - Penso nas estrelas que nos atraem para Deus. Um clamor especial vem dos povos amazônicos: indígenas, ribeirinhos, quilombolas. Francisco, na Exortação Querida Amazônia, sonha com uma Amazônia que lute pelos direitos dos pobres e nativos e ajude sua voz a ser ouvida e sua dignidade promovida; que preserve a riqueza cultural que a caracteriza e na qual brilha a beleza humana; que guarde zelosamente a sedutora beleza natural que a adorna, a vida transbordante que enche os seus rios e as suas florestas; uma Amazônia com comunidades cristãs capazes de se devotar e de se encarnar ali, a tal ponto que deem à Igreja rostos novos com traços amazônicos . Ela não seria, hoje, uma brilhante estrela a nos guiar para a boa nova de Cristo? E nós, nos deixamos guiar, como os magos?
A segunda reflexão - Qual a nossa estrela? Entramos na dinâmica da luz? Também nós podemos perder esta dinâmica e nos burocratizar. As comunidades perdem a luz, e perdem energia missionária, o amor primeiro. Perdem a escuta do Espírito e deixam-se levar pelo neopelagianismo e neognosticismo de que nos fala Francisco na Exortação Evangelii Gaudium (n. 93-97). As sociedades perdem a luz da comunhão e do bem comum, e assumem lógicas de ódio e violência, aporofobia, misoginia, poder dominador. Aqui, a estrela da fé desaparece, por mais que se fale de Deus. Também nós passamos pelas sombras de nós mesmos, pelas sombras comunitárias e pelas sombras sociais.
Somos caminhantes, como os magos. Como eles, queremos caminhar como quem segue os melhores desejos do coração, com seus tesouros. Mas, não basta ouvir o chamado do coração: é preciso pôr-se a caminho, correr riscos, expor-se, sem temer a noite, nem a terrível cidade, os terríveis poderes que manipulam e matam. Precisamos criar laços de solidariedade, discernir o lado de quem queremos estar. Pôr-se a caminho é o oposto da passividade e da indiferença que matam.
Os magos confiam no sinal da estrela, um sinal cósmico. Precisamos também nós de sinais para caminhar. Olhar atento a estes sinais que dão sentido à vida. Sinais cósmicos, amor concreto de justiça social e respeito ao meio ambiente, valores pelos quais lutar. Sinais celebrados na comunidade de fé.
E, no encontro, é preciso adorar. Não matar, como Herodes, mas adorar. Oferecer o presente que cada uma tem e que cada uma, cada um é. Romper com a lógica de considerar as pessoas como meio (e não fim), com a lógica da política de morte que vivemos hoje. Romper com a lógica da religião como idolatria da doutrina ou da lei e ensaiar caminhos coerentes de caminhar juntos – na sinodalidade. Adorar é praticar a gratidão e fortalecer o sentido da gratuidade, tão importantes na retomada de um novo ano.
No nosso caminhar, Deus nos vai avisar divinamente o que fazer. Como será isso? Podemos, fiéis à estrela, discernir as lógicas de Herodes e as lógicas do presépio, onde estão, como nos diz Mateus, “o menino e sua mãe”.
A estrela desaparece às vezes. Que fazer? Como os magos, recompor-se, esperar, discernir, pôr-se a caminho novamente. Porque sempre haverá algo que nos chama. E, se as estrelas se apagam, há sempre uma estrela que torna a se acender. Por que? Porque o mundo está orientado a uma plenitude, à Jerusalém celeste luminosa, à terra sem males do mundo indígena. E, dentro de nós, está Deus. Como diria Santa Teresa, está Deus em nós como um sol no nosso castelo interior de cristal. O sol ilumina, motiva, aquece, atrai e orienta, fortalece e envia.
Um dia Deus será luz total, em nós e em tudo. Mas, hoje, o evangelho nos fala que há a estrela que conduz a Jesus. Precisamos destas pequenas estrelas. Qual é a nossa estrela?
[1] Konings, J. Liturgia dominical. Mistério de Cristo e formação dos fiéis (anos A, B, C). Petrópolis: Vozes, 2003, p. 62.