11 Dezembro 2021
A palavra “clericalismo”, que apareceu na linguagem comum na França em meados do século XIX, designou durante um certo período a vontade dos católicos de se envolverem nos assuntos do Estado. Hoje, indica um mal interno à Igreja: o do excesso de poder dos padres.
A reportagem é de Luc Chatel, publicada em Le Monde, 09-12-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
História de um conceito. “Clericalismo? Eis o inimigo!”, afirmava Léon Gambetta no dia 4 de maio de 1877 na Câmara dos Deputados, citando o amigo jornalista Alphonse Payrat. O clericalismo ao qual se referia então o deputado do departamento do Sena simbolizava as tensões entre o campo republicano e o campo católico. E, mais precisamente, a tentação da Igreja de invadir os poderes legislativo e executivo.
“Chegamos a nos perguntar se o Estado agora não está na Igreja, ao contrário dos princípios segundo os quais a Igreja está no Estado”, declarava Gambetta.
A palavra “clericalismo” apareceu na linguagem atual na França por volta de 1855, para designar a vontade de influência do clero católico no poder político. Depois que a lei de 1905 estabeleceu a separação entre as Igrejas e o Estado, a palavra reapareceu com outro significado.
A partir dos anos 1950 e especialmente a partir dos anos 1970, em particular sob a influência do Concílio Vaticano II de 1962, o termo designa tanto o lugar central do padre na vida das paróquias quanto o modo como este pode abusar do seu poder. Do controle de uma instituição sobre outra, passamos ao controle de um indivíduo sobre os outros; da tutela da Igreja sobre o Estado, passamos para a do padre sobre os fiéis.
Um dos casos mais precoces e mais surpreendentes de uso do termo na nova acepção foi revelado pelo Abbé Pierre a propósito da sua ordenação presbiteral, em 14 de agosto de 1938. Padre Henri de Lubac, futuro cardeal, dera-lhe este conselho na época: “Amanhã, quando você estiver deitado no chão da capela, faça uma única oração ao Espírito Santo: peça-lhe que lhe conceda o anticlericalismo dos santos!” (“L’abbé Pierre, une âme d’acier trempé dans l’amour. Homélie du cardinal Roger Etchegaray”, publicado no La Croix em 16 de abril de 2013).
Desde os anos 1950, teólogos e intelectuais católicos se interrogam sobre o lugar do padre na Igreja. “Há um anticlericalismo cristão legítimo e necessário... Quando os fiéis manifestam demasiada passividade na sua submissão à autoridade, falta-lhes aquela caridade respeitosa que devem à hierarquia”, afirmava o historiador Henri-Irénée Marrou em 1955, por ocasião de uma conferência intitulada “A Igreja não é clerical!”, proferida junto com outro historiador católico, René Rémond.
A corrente da teologia da libertação (nos anos 1970) e grandes figuras como as do filósofo Jacques Maritain (1882-1973) ou do teólogo Yves Congar (1904-1995) contribuíram muito, com os seus escritos, para a tentativa de dessacralizar a função do padre e de aproximar a instituição católica das comunidades dos fiéis.
Em 1977, Paulo VI se tornou o primeiro papa a usar esse termo publicamente, quase exatamente um século depois de Gambetta. No seu “Discurso aos bispos da região Norte da França”, de 28 de março de 1977, ele afirmou: “O clericalismo é para os padres aquela forma de governo que tem mais a ver com o poder do que com o serviço”.
Com a chegada de João Paulo II a Roma em 1978, depois com a de Bento XVI em 2005, terminou o tempo das reformas e da abertura litúrgica. A luta contra o clericalismo deixou de estar entre as suas prioridades, e a palavra quase nunca apareceu nos seus discursos. No entanto, muitos católicos continuaram se interrogando sobre o funcionamento de uma Igreja que, na opinião deles, é realmente hierárquica e dogmática demais, e na qual tudo passa pelo padre.
Em 1995, o livro “Funcionários de Deus”, do padre e teólogo Eugen Drewermann, denunciou, com o apoio da psicanálise, o clericalismo católico. Nesse best-seller, o autor se expressa em favor de “uma pastoral em que a palavra de Deus não exclua mais o desenvolvimento e a realização do indivíduo, mas, pelo contrário, os exija e os favoreça”.
No Vaticano, foi necessário esperar a eleição de Francisco, em março de 2013, para que o tema se tornasse uma prioridade. No dia 16 de dezembro do mesmo ano, por ocasião de uma meditação em Roma, o Papa Francisco declarou: “Senhor, livra o teu povo do espírito do clericalismo”. Mas a sua intervenção mais forte foi a do dia 20 de agosto de 2018, na “Carta ao Povo de Deus”, que condenava as agressões sexuais cometidas por padres: “O clericalismo, favorecido tanto pelos próprios sacerdotes quanto pelos leigos, gera uma cisão no corpo eclesial, que fomenta e ajuda a perpetuar muitos dos males que hoje denunciamos. Dizer não ao abuso significa dizer não fortemente a qualquer forma de clericalismo”.
No rastro de Francisco, muitos católicos que não estavam particularmente preocupados com esse tema, fizeram da luta contra o clericalismo uma das suas prioridades. Como o jornal católico La Croix, que publicou, em 29 de agosto de 2018, um dossiê intitulado: “Pistas para sair do clericalismo”. Pistas que correspondem aos pedidos cada vez mais frequentes de muitos católicos: conquistar mais espaço para as mulheres e os leigos, mais liberdade de expressão, mais colegialidade e mais debate na Igreja.
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Clericalismo, de inimigo dos republicanos a inimigo dos católicos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU