A primeira Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe é um momento importante porque é uma imagem das perspectivas muito diferentes sobre a sinodalidade no catolicismo global. O caminho rumo à sinodalidade para as Igrejas de outros continentes não será tão natural quanto para a América Latina.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos, em artigo publicado em La Croix International, 30-11-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Papa Francisco lançou o “processo sinodal” no início de outubro em Roma, e, dois meses depois, os católicos da sua terra natal, a América Latina, se juntaram à iniciativa de forma séria e organizada.
Bispos, padres, religiosos e religiosas e fiéis leigos se reuniram entre os dias 21 e 28 de novembro no Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe, no subúrbio da Cidade do México, para a primeira “Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe”.
Esse encontro sem precedentes foi organizado pelo Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam) com suas 22 conferências episcopais nacionais e pela Confederação Latino-Americana de Religiosos e Religiosas (CLAR).
O evento ocorreu em duas fases.
A primeira fase consistiu em sessões de escuta em toda a região, enquanto a segunda foi a assembleia propriamente dita.
Cerca de 100 representantes de toda a América Latina e Caribe se reuniram para a assembleia, um número reduzido devido à pandemia da Covid-19. Mas mais de 900 outras pessoas participaram virtualmente.
De acordo com os organizadores, os bispos, padres, religiosos e religiosas representaram 60% da assembleia (20% em cada categoria), enquanto os outros 40% dos participantes eram leigos e leigas. A participação de diáconos permanentes foi marginal.
Se você tem a impressão de que se trata de uma participação de uma Igreja Católica de duas camadas no “processo sinodal” – com a América Latina na liderança e o resto do mundo atrás – você está certo.
Esse tipo de “assembleia eclesial” é dificilmente imaginável em outras partes do mundo, pelo menos por enquanto. Ela foi possível pela forma particularmente viva com que a Igreja na América Latina abraçou e implementou o Concílio Vaticano II (1962-1965).
O arcebispo peruano Héctor Miguel Cabrejos Vidarte, presidente do Celam, disse à assembleia que era hora de uma “segunda recepção” do Vaticano II.
Isso é algo que os católicos estadunidenses não ouvem das lideranças de sua conferência episcopal há muito tempo.
Durante seu discurso à assembleia eclesial, o cardeal Mario Grech, secretário-geral do Sínodo dos Bispos, também enfatizou o papel do Vaticano II na preparação da Igreja latino-americana para o processo sinodal.
“É uma contribuição em continuidade com a história e a experiência da Igreja na América Latina, que, desde o Concílio, têm se caracterizado pela sua forma particular de ‘caminhar juntos’”, afirmou o cardeal.
“Suas Assembleias Gerais [do Celam] não são apenas reuniões de bispos; nem sequer são reuniões nas quais há apenas alguns bispos”, disse ele.
Ele deixou claro que a Igreja na América Latina está dando essa contribuição graças também à eleição do Papa Francisco. Ele disse que é uma contribuição para toda a Igreja.
“Na lógica da catolicidade como intercâmbio de dons entre as Igrejas, indicada pelo Concílio Vaticano II, a Igreja deste continente tem também outro dom a oferecer a toda a Igreja, um dom que vocês valorizaram melhor do que as outras Igrejas: o dom de entender a Igreja como Povo de Deus”, continuou o cardeal maltês.
“Não é casualidade que essa perspectiva, entregue à Igreja pelo Concílio Vaticano II no capítulo II da Lumen gentium, tenha ressurgido fortemente com a eleição do Papa Francisco”, sublinhou.
Essa primeira assembleia eclesial é um momento importante porque é uma imagem das perspectivas muito diferentes sobre a sinodalidade no catolicismo global. O caminho rumo à sinodalidade para as Igrejas de outros continentes não será tão natural quanto para a América Latina.
Aqui a sinodalidade vem de uma cultura de governança compartilhada da Igreja no continente entre os bispos do Celam.
Mas também decorre de um senso de propriedade da Igreja pelo Povo de Deus e do espírito eclesial dos teólogos que gozam da confiança dos bispos e do povo mais do que parece ocorrer em outros continentes.
Um exemplo dessa relação saudável entre os diferentes componentes da Igreja surgiu na fala (feita remotamente) de Rafael Luciani, teólogo leigo venezuelano que é professor no Boston College.
Luciani, que foi nomeado pela Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos como perito da comissão teológica para o processo sinodal, foi recebido com um forte e longo aplauso de toda a assembleia.
A situação em outros lugares é diferente.
Nos Estados Unidos, os esforços para iniciar um processo sinodal são prejudicados por uma mentalidade de guerra cultural que se tornou exatamente o oposto da ideia de “caminhar juntos”.
É uma guerra de todos contra todos: o clero e os leigos, os teólogos e outros “agitadores”, assim como um bom número de bispos que são contra o Papa Francisco.
Na Europa, existe um conselho que abrange todas as conferências episcopais nacionais (CCEE). E tem um líder muito bom em seu comando, o cardeal jesuíta Jean-Claude Hollerich, de Luxemburgo (que falou à assembleia eclesial no México).
Mas o papel da CCEE é muito diferente do Celam. E as Igrejas na Europa devem reconstruir uma consciência eclesial dos sínodos como a mais antiga instituição de governo da Igreja.
O “Caminho Sinodal” alemão é a representação mais avançada da sinodalidade na Europa. Lançado em 2019, a sua segunda assembleia ocorreu entre os dias 30 de setembro e 2 de outubro. O próximo encontro está programado para fevereiro de 2022.
A África e a Ásia são áreas enormes com Igrejas muito vitais, cuja missão é trabalhar com uma pluralidade muito complexa de tradições e culturas, inclusive dentro do catolicismo.
A situação nesses dois continentes é muito diferente do catolicismo latino-americano, onde a diversidade é mais coesa, graças também às suas tradições linguísticas comuns.
Um exemplo muito interessante de um processo sinodal em curso é o Concílio Plenário na Austrália, cujas sementes, na realidade, são anteriores à eleição do Papa Francisco.
Sua primeira sessão ocorreu em outubro de 2021, e a segunda será realizada em julho de 2022.
A plenária australiana pode contar com uma mistura peculiar de catolicismo “ocidental” e de inculturação criativa no Pacífico, que é bastante distinta da tradição europeia.
Como disse Rafael Luciani, a Igreja na América Latina é claramente uma fonte para a Igreja Católica universal (“una Iglesia fuente para la Iglesia universal”) nesse processo sinodal.
Mas há pelo menos algumas razões para esperar no futuro da sinodalidade e na “sinodalização” do catolicismo, até mesmo em relação às Igrejas fora da América Latina.
A primeira é a vitalidade da tradição do Concílio Vaticano II, que é a chave para a implementação da sinodalidade.
Em contextos geográficos e culturais muito diversos, o Vaticano II ainda é capaz de dar sentido a esta nova palavra – sinodalidade – que recupera uma tradição muito antiga.
O problema é que, em algumas áreas, como os Estados Unidos, o Vaticano II infelizmente se tornou parte de uma narrativa politicamente partidária. Esse é um grande problema, embora seja uma exceção.
Mas, mesmo nos Estados Unidos, o Concílio não foi esquecido – pelo contrário, é uma memória desconfortável e perigosa para os defensores do status quo.
A segunda razão para esperar que a sinodalidade criará raízes é que o catolicismo não foi construído como uma coleção de Igrejas independentes: não apenas de Roma, mas também umas em relação às outras.
O conceito de “communio ecclesiarum”, a comunhão das Igrejas, significa que a Igreja Católica funciona como um sistema de vasos comunicantes.
É como um conjunto de contêineres conectados de forma a equilibrar todos os contêineres, independentemente da sua forma e volume.
Foi o que aconteceu com a recepção do Vaticano II neste último meio século.
A onda de teologia e de ensino magisterial conciliares também alcançou as Igrejas católicas que participaram apenas marginalmente no evento conciliar.
Algumas lideranças católicas latino-americanas disseram sobre o Vaticano II: “No hay quien lo pare” – não há quem o pare.
Com todas as devidas distinções, é provável que isso ocorra também com a sinodalidade.
O que está se desdobrando na América Latina, Austrália, Alemanha, Roma e em outros lugares se espalhará, mais cedo ou mais tarde, de formas diferentes, para todas as Igrejas.