22 Novembro 2021
“A questão toda é se vemos a Igreja como 'um hospital de campanha', como Francisco a definiu em sua entrevista de setembro de 2013 com o jesuíta Antonio Spadaro, ou se a vemos como um campo de batalha para as guerras culturais. O campo de batalha consiste em separar aqueles que são amigos daqueles que são os inimigos. Resumindo a famosa frase de Carl von Clausewitz sobre política e guerra, pode-se dizer que na Igreja Católica a extensão da mentalidade do campo de batalha aos sacramentos é a continuação das guerras culturais por outros meios”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, EUA em artigo publicado por La Croix International, 15-11-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Ao longo da história tem havido debates na Igreja – tanto a nível local ou com as autoridades do Vaticano – que tem levado a consequências de longo prazo sobre a história e a vida intelectual do catolicismo.
Um deles, por exemplo, eram os controversos “ritos chineses” nos séculos XVII e XVIII. O debate de outrora influenciou a forma que a Igreja abordaria as tradições e culturas chinesas, assim como o pluralismo religioso, até, pelo menos, o começo do Concílio Vaticano II.
Nós estamos em uma conjuntura semelhante na eclesiologia – isso é, a forma que nós concebemos a Igreja Católica.
Vejamos a recente polêmica em torno dos políticos católicos nos Estados Unidos e o recebimento da Eucaristia. Isso demarcou um “partido” dentro da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA - USCCB contra o presidente Joe Biden e teve novamente revelado que a USCCB não está alinhada à abordagem pastoral do Papa Francisco.
Muitos bispos dos EUA têm cobrado da USCCB para que divulgue um documento que impediria – ou pelo menos intimidaria – os políticos católicos que defendem as leis atuais que legalizam o aborto de receberem a sagrada comunhão na missa.
Isso é algo que já afetou os hábitos litúrgicos de alguns proeminentes políticos católicos, como revelou um senador dos Estados Unidos em uma recente entrevista à revista America, dos jesuítas estadunidenses.
No encontro de verão da USCCB em junho passado, cerca de 73% dos bispos votaram a favor da redação de tal documento.
A proposta foi apoiada por 168 dos 273 prelados com direito a voto. Apenas 55 se opuseram ao plano, enquanto outros seis se abstiveram (os 160 bispos eméritos não podem votar).
Após a votação em junho, uma comissão especial se ocupou na redação de um documento sobre a Eucaristia, que os bispos votarão nesta semana quando se reunirem em Baltimore para a “reunião anual de outono” da USCCB.
O documento não menciona a questão dos políticos e da Comunhão. Mas o caráter da discussão que ocorre nesta semana e no seu rescaldo terá um impacto na Igreja, não importa qual seja a versão final do texto ou se ele for aprovado pela necessária maioria de dois terços.
Os bispos nunca ameaçaram negar a comunhão a políticos conservadores que aprovam outras leis que estão em claro contraste com a Igreja, como a pena de morte.
William Barr, um católico que ativamente promoveu a pena de morte como procurador-geral de Donald Trump, nunca foi submetido ao tipo de tratamento que os bispos estão dando a Biden e outros Democratas.
Ainda assim, não há dúvida de que a maneira como os Estados Unidos vêm legalizando o aborto, muito diferente da abordagem adotada pela maioria dos países da Europa, é altamente problemática para o ensino católico, para dizer o mínimo.
E, certamente, os pastores da Igreja têm o dever de ensinar sobre o assunto.
Mas o problema é que todo o esforço para penalizar os políticos de um partido político não é apenas um acidente. É uma característica das “guerras culturais” do catolicismo contemporâneo, que começou nos Estados Unidos na década de 1980 e continuou a se espalhar na década de 1990.
A década que começou com a queda do comunismo foi marcada por uma busca por uma nova identidade e significado, um novo universo simbólico separado. Então, em 2001, os ataques de 11 de setembro deflagraram a globalização dessas guerras culturais americanas.
A tensão que existe atualmente entre o Vaticano e o contingente de bispos norte-americanos sobre a questão de Biden e a Eucaristia sinaliza uma nova escalada das guerras culturais católicas, que agora invadem o campo dos sacramentos da Igreja.
Este é um fenômeno novo.
Enquanto no século passado alguns na Igreja politizaram certas devoções populares (por exemplo, à Virgem Maria ou o Sagrado Coração), os sacramentos nunca foram politizados per se.
De fato, o Santo Ofício excomungou os comunistas em 1949, durante o pontificado de Pio XII. Mas este não é um exemplo adequado, porque é a história de um fracasso.
Quando o secretário particular do então cardeal Angelo Giuseppe Roncalli lhe disse que alguns católicos excessivamente zelosos se queixaram de ver comunistas recebendo a sagrada comunhão durante uma missa em seu local de nascimento, Sotto il Monte, o futuro João XXIII explicou:
Uma pessoa chega ao confessionário, não o partido ou uma ideologia. Esta pessoa é confiada à nossa catequese, ao nosso amor e à nossa inventividade pastoral. É necessário proceder caso a caso, com extrema cautela. Se você forçar algo sobre eles drasticamente, eles não vão entender você, ou vão entender de trás para frente; se você os rejeitar, eles irão embora e nunca mais voltarão.
O Papa Francisco e seus assessores do Vaticano estão tentando proteger o acesso de Joe Biden aos sacramentos.
Isso ficou especialmente claro em uma carta que o cardeal Luis Ladaria, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, enviou ao presidente da USCCB em maio passado.
A preocupação do papa não é tanto com Biden, mas com o que está acontecendo com o catolicismo nos Estados Unidos.
O que está em jogo aqui é a catolicidade da Igreja Católica – no sentido de não sectária e não partidária.
Não se trata apenas de um problema de credibilidade da Igreja, mas também de sua autocompreensão como sacramento de salvação, como afirma o primeiro capítulo da Lumen gentium, a constituição do Vaticano II sobre a Igreja.
A Igreja Católica vive atualmente um momento que é o mais próximo que podemos chegar do tempo do Concílio.
João XXIII convocou o Vaticano II em 1959 e publicou sua encíclica mais importante, Pacem in Terris, em abril de 1963, poucos meses após a crise dos mísseis cubanos.
O contexto era a Guerra Fria, e a intenção do papa não era apenas contribuir para a paz mundial, mas também proteger a Igreja do choque ideológico absorvente entre o comunismo e o “mundo livre”.
De forma similar, o Papa Francisco reintroduziu uma cultura sinodal na Igreja e a abrir a um “processo sinodal” mundial no contexto das guerras culturais.
Ele está tentando resgatar a capacidade da Igreja de rejeitar os constantes chamados para se alinhar simplesmente à civilização do “nós contra eles” e o identitarismo político – chamados que são especialmente barulhentos dentro do catolicismo estadunidense.
Um exemplo claro de sobre o que o Papa está contrariando são as recentes manifestações do arcebispo José Gomez, presidente da USCCB, que compartilhava um vídeo profundamente sectário para a conferência na Espanha. Gomez chocou muitos católicos por atacar movimento de justiça social, identitários e interseccionais como pseudo-religiões.
Este caso flagrante de politização da USCCB chega em um momento em que a Igreja menos pode pagar.
Como o arcebispo Mark Coleridge, presidente da Conferência Episcopal Australiana, tuitou em 12 de novembro, “Se a Eucaristia estiver entre um marco da diferença (portanto, exclusão) ou um sacramento de comunhão (portanto, inclusão), fiquemos com o segundo mais que o primeiro”.
A questão toda é se vemos a Igreja como “um hospital de campanha”, como Francisco a definiu em sua entrevista de setembro de 2013 com o jesuíta Antonio Spadaro, ou se a vemos como um campo de batalha para as guerras culturais.
O campo de batalha consiste em separar aqueles que são amigos daqueles que são os inimigos.
Resumindo a famosa frase de Carl von Clausewitz sobre política e guerra, pode-se dizer que na Igreja Católica a extensão da mentalidade do campo de batalha aos sacramentos é a continuação das guerras culturais por outros meios.
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Hospital de campanha ou campo de batalha? Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU