14 Outubro 2021
"Em poucas palavras, ao falarmos de juventudes no Brasil, resta evidente que há, em andamento, um projeto de destruição do presente e sequestro do futuro", escreve Gabriel Miranda, cientista social, professor e educador popular. Atualmente, é aluno do último ano do doutorado em Psicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Um velho comunista barbudo me ensinou, embora não diretamente, que “o jovem” não existe enquanto uma abstração apartada do conjunto de relações sociais nas quais ele se insere. Afinal, um jovem, seja ele qual for, sempre integra alguma sociedade que o constitui e é constituída por esse sujeito. Em uma formação social como a brasileira, por exemplo, o que existe efetivamente são jovens negros, jovens brancos, jovens indígenas. Nunca apenas “jovens”.
Tratar a juventude como uma categoria universal é algo que, não raras vezes, mais confunde do que promove alguma elucidação, tendo em vista que, além do contexto que marca o tempo histórico em que se vive, o jovem é sempre atravessado por posições de classe, gênero, orientação sexual e raça – para citar apenas algumas –, que serão responsáveis por mediar a sua experiência na sociedade. Nesse sentido, o presente texto pretende levantar algumas questões acerca de como a atual conjuntura posta no Brasil contribui para constranger o exercício da autonomia e a liberdade da juventude em suas mais variadas expressões.
Hoje, cinco anos após um golpe de Estado que deu início a um programa ultraliberal de austeridade e quase três anos após o início de um governo de tipo fascista, o Brasil amarga um cenário assolador para a classe trabalhadora e com implicações específicas para as juventudes. Com o desemprego em alta, a inflação batendo recorde (recentemente, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor apontou a maior alta da inflação no mês de setembro desde o Plano Real) e a consequente diminuição do poder de compra, a fome retornou para o cotidiano de milhões de famílias brasileiras, conforme registram os dados divulgados pelo relatório “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, que indicam que cerca de 59% dos domicílios brasileiros enfrentaram um cenário de insegurança alimentar no último trimestre de 2020.
Enquanto isso, os homicídios seguem acontecendo nas periferias urbanas, as prisões continuam a funcionar como depósitos do refugo da sociedade de mercado e toda semana um novo vídeo viraliza na internet expondo o modo cruel, sádico, perverso e racista como operam as polícias, principalmente a militar. A nível de exemplificação, importa notar que, de acordo com os dados disponibilizados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021, 78,9% das vítimas de homicídio decorrente de intervenção policial eram pretas ou pardas. Ou seja, conforme narrado na introdução da música “Capítulo 4, Versículo 3”, lançada em 1997 pelo grupo de rap Racionais MC’s: “a cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras”. Destaca-se também que, além do caráter racista da distribuição da violência policial, há um elemento geracional igualmente alarmante: 76,2% das vítimas tinham entre 12 e 29 anos quando foram assassinadas.
Ademais, somam-se aos índices elevados de homicídio as milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas se o Governo Federal (com o apoio do Conselho Federal de Medicina) não tivesse atuado de maneira deliberada boicotando estratégias epidemiológicas cientificamente validadas de controle da Covid-19 e investido fortemente em um tratamento farmacológico ineficaz. De acordo com os dados disponibilizados na plataforma Our World in Data, estima-se que pelo menos 480 mil mortes poderiam ter sido evitadas até o dia 10 de outubro de 2020 se a mortalidade por Covid-19 no Brasil tivesse acompanhado a média mundial, fato que se tornou inviável devido ao projeto negacionista que orientou toda a gestão da pandemia, atrasando, inclusive, a aquisição de vacinas.
Nesse contexto que une o pior do velho com o pior do novo e é cinicamente denominado de “novo normal” pelos ideólogos do liberalismo, os jovens são lançados à própria sorte, quase como em uma produção cinematográfica sul-coreana – daquelas com bastante sangue e analogias ao capitalismo. Empreenda, acorde cedo, trabalhe enquanto eles dormem, crie uma startup de inteligência artificial utilizando apenas um sabonete e uma caixa de fósforos. Enfim, todas as narrativas possíveis serão evocadas para fazer com que o jovem se culpe pelas impossibilidades que o capitalismo lhe impõe: sair da casa país, ter um emprego que lhe pague o necessário para sobreviver [1], poder ter momentos de lazer e fruição, viver o presente com dignidade e projetar o futuro com esperança. Se os Estados são instâncias que asseguram ou negam proteção, a tônica do Brasil sob Bolsonaro parece atualizar a máxima foucaultiana de “fazer viver, deixar morrer” para “fazer morrer, deixar morrer e cuspir em cima”. Quem não morre pela ação direta do Estado burguês, está morrendo aos poucos, de inanição, entregue a condições de vida precárias e adoecedoras.
Se o capitalismo dependente nunca permitiu bons ventos para a classe trabalhadora, nos últimos anos a situação tem se apresentado ainda pior, tendo em vista que o projeto ultraliberal-fascista de Bolsonaro e Paulo Guedes tem inflamando as feridas abertas da sociedade brasileira, como a fome, a violência, o racismo, a desigualdade, o machismo, a transfobia e o desemprego. Nesse cenário, embebidos em um discurso meritocrático, diversos jovens adoecem mentalmente [2] devido a internalizar a culpa por um fracasso socialmente produzido ou porque expectativas irreais lhes foram impostas. Outros jovens são assassinados pela polícia, pela milícia e pelo tráfico de drogas. Outros tantos dedicam toda a sua juventude em trabalhos precários, onde são superexplorados e submetidos a condições degradantes. Outros, por sua vez, têm seus saberes e suas práticas culturais produzidas como inexistentes, rechaçadas ou ridicularizadas por instâncias de governo que deveriam atuar para preservá-las. Outras, são violadas: pelos seus parceiros e pelas leis. Em poucas palavras, ao falarmos de juventudes no Brasil, resta evidente que há, em andamento, um projeto de destruição do presente e sequestro do futuro.
Quatro anos após a Contrarreforma Trabalhista que, de forma cínica, prometia gerar um aumento exponencial na oferta de empregos, o Brasil registra hoje uma taxa de desocupação de 13,7% – quase dois pontos maior do que os 11,8% que registrava no último trimestre de 2017 – e contabiliza cerca de 14,1 milhões de pessoas desempregadas, de acordo com os dados do IBGE referentes ao trimestre terminado em julho de 2021. Ainda de acordo com o IBGE, dos cerca de 47 milhões de jovens brasileiros com idade entre 15 e 29 anos, aproximadamente 11 milhões não estudam e nem trabalham, o que evidencia o cenário de falta de oportunidades no qual esse grupo geracional se encontra.
Com um presente marcado pela necessidade de obter alguma fonte de renda, o processo de educação formal se torna um problema a ser evitado e conseguir um trabalho, mesmo que precário, se apresenta como uma “solução”. Mas, com escassas possibilidades de inserção no mundo do trabalho, muitos jovens, como forma de enfrentar o desemprego e conseguir um meio para sobreviver, inserem-se em trabalhos que vão desde atividades ilícitas, como o comércio ilegal de drogas, transitam pelas diversas formas uberização e, por fim, também encontram espaço no camming e na venda de packs de fotos íntimas em redes sociais e plataformas especializadas.
Assim seguem as juventudes brasileiras: diante de inúmeros ataques, escassas oportunidades e violências que se entrecruzam e parecem ser herdadas geração após geração. Nessa conjuntura, preocupa-me que, mesmo após o golpeachment de 2016 e todos os fatos que, dia após dia, atestam que o pleno funcionamento das instituição democrático-burguesas serve apenas para a manutenção da exploração e das opressões, continuemos a ter como horizonte tático-político as eleições de 2022. Aprendi que, na vida e na política, ainda que não devamos perder de vista o passado e o futuro, o que temos de mais potente é o presente. E o nosso presente impõe a necessidade de organizar a desesperança, canalizar a revolta e direcionar o ódio que o neoliberalismo nos induz a jogar contra nós mesmos aos inimigos do povo brasileiro, isto é, à burguesia e aos seus burocratas.
Em um país onde a violência sistêmica contra indígenas e negros sempre figurou como o padrão de normalidade, não há razões para conservar qualquer tipo de saudosismo em relação ao passado. Lá, não estão os tempos de ouro. Do mesmo modo, são ausentes os motivos para, diante do genocídio em curso e da guerra aberta contra o povo brasileiro, jogar todas as apostas para o campo institucional, no qual as regras do jogo democrático se apresentam turvas e as ameaças golpistas de ruptura de regime se expressam constantemente. Se a derrota do bolsonarismo nas urnas urge, urge também a necessidade de um projeto político revolucionário, que busque enfrentar pela raiz os problemas do Brasil que devastam as juventudes, pois um social-liberalismo morno, como prometem as opções eleitorais competitivas do campo progressista, não tem muito a nos oferecer, conforme prova a experiência histórica da República brasileira. Afinal, ser contra a barbárie é importante, mas se quisermos interrompê-la e superá-la, é necessário ser contra a sociabilidade que a produz, isto é, contra o capitalismo.
[1] De acordo com o Dieese, o salário mínimo necessário para o mês de setembro de 2021 deveria ter sido 5.657 reais. Esse valor é 5,14 vezes maior que o salário mínimo nominal no Brasil, que equivale a 1.100 reais.
[2] A pandemia é um didático exemplo acerca de como as sociedades produzem os seus padrões de adoecimento. Do mesmo modo, é importante estabelecer a relação entre o avanço das contradições do capitalismo e os elevados índices de sofrimento psíquico. No que diz respeito ao caso brasileiro, de acordo com o Atlas da Violência 2021, entre os anos de 2016 e 2019 houve um aumento de 17% nos números de suicídios entre pessoas jovens. Quantas dessas vidas poderiam ter sido preservadas se não fossem as condições precárias que colocam a juventude diante de um profundo sentimento de melancolia e desesperança em relação ao presente e ao futuro?
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Destruição do presente, sequestro do futuro: notas sobre ser jovem no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU