05 Outubro 2021
Publicamos aqui o texto do apelo conjunto aprovado nessa segunda-feira, 04-09-2021, por ocasião do encontro “Fé e ciência: rumo à COP-26”, promovido pelas embaixadas da Grã-Bretanha e da Itália junto à Santa Sé, em conjunto com a Santa Sé.
Sob o título 'Apelo conjunto', o texto é publicado por Sala de Imprensa do Vaticano, 04-10-1021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Hoje nos reunimos, em fraternidade humana, para aumentar a consciência sobre os desafios sem precedentes que ameaçam a nós e à vida em nossa bela casa comum, a Terra.
Como líderes e estudiosos de várias tradições religiosas, nos unimos em um espírito de humildade, responsabilidade, respeito mútuo e diálogo aberto. Esse diálogo não se limita apenas à troca de ideias, mas se centra no desejo de caminhar em companhia, reconhecendo nosso chamado a vivermos em harmonia uns com os outros e com a natureza.
O encontro de hoje é fruto de meses de intenso diálogo fraterno entre líderes religiosos e cientistas, reunidos em torno da consciência da necessidade de uma solidariedade ainda mais profunda diante da pandemia global e da crescente preocupação com a nossa casa comum.
A natureza é um dom, mas também é uma força que dá vida, sem a qual não podemos existir. Nossas fés e espiritualidades ensinam um dever, individual e coletivo, de cuidar da família humana e do ambiente em que ela vive. Não somos senhores ilimitados do nosso planeta e de seus recursos. Somos zeladores do ambiente natural, com a vocação de cuidar dele para as gerações futuras e a obrigação moral de cooperar na cura do planeta.
Somos profundamente interdependentes uns em relação aos outros e com o mundo natural. Essa conexão é a base para a solidariedade interpessoal e intergeracional, e para a superação do egoísmo. Os danos ao ambiente são um resultado, em parte, da tendência predatória de ver o mundo natural como algo a ser explorado sem levar em conta como a sobrevivência depende da biodiversidade e da manutenção da saúde dos ecossistemas planetários e locais. As múltiplas crises que a humanidade enfrenta estão demonstrando as falhas de tal abordagem; em última análise, elas estão ligadas a uma crise de valores éticos e espirituais.
A fé e a ciência são pilares essenciais da civilização humana, com princípios compartilhados e complementaridades. Juntos, devemos enfrentar as ameaças que afetam a nossa casa comum. Os avisos da comunidade científica estão se tornando cada vez mais nítidos e claros, assim como a necessidade de passos concretos a serem dados.
Os cientistas dizem que o tempo está se esgotando. As temperaturas globais já subiram ao ponto em que o planeta está mais quente do que em qualquer outro momento nos últimos 200.000 anos. Estamos a caminho de um aumento da temperatura de mais de dois graus acima dos níveis pré-industriais. Não é apenas um problema físico, mas também um desafio moral. A crise climática afeta a todos nós, mas não envolve a todos nós igualmente, porque terá efeitos diferentes, mas devastadores, sobre as pessoas em países industrializados e não industrializados. Em particular, ela afeta os mais pobres, especialmente as mulheres e as crianças nos países mais vulneráveis, que são os menos responsáveis por ela.
A humanidade tem o poder de pensar e a liberdade de escolher. Devemos enfrentar esses desafios usando o conhecimento da ciência e a sabedoria da religião: saber mais e cuidar mais. Devemos buscar soluções dentro de nós mesmos, dentro das nossas comunidades e com a natureza, adotando uma abordagem integral. Devemos pensar em longo prazo pelo bem de toda a humanidade, agora e no futuro.
Precisamos expulsar as sementes dos conflitos: ganância, indiferença, ignorância, medo, injustiça, insegurança e violência. Devemos nos focar especialmente naqueles que estão à margem. Precisamos agir juntos para inspirar e energizar uns aos outros. Precisamos viver em paz uns com os outros e com a natureza. Agora é a hora de agir de forma transformadora como uma resposta comum. À medida que a pandemia da Covid se intensifica, o ano de 2021 apresenta um desafio vital para transformar essa crise em uma oportunidade para repensar o mundo que queremos para nós mesmos e para os nossos filhos. O cuidado deve estar no centro dessa conversão, em todos os níveis.
Precisamos de um marco de esperança e coragem.
Mas também precisamos mudar a narrativa do desenvolvimento e adotar um novo tipo de economia: que coloque a dignidade humana no seu centro e que seja inclusiva; que seja ecologicamente amigável, cuidando do ambiente e não o explorando; baseada não no crescimento sem fim e nos desejos que proliferam, mas no suporte à vida; que promova a virtude da suficiência e condene a maldade do excesso; que não seja apenas tecnologicamente orientada, mas também moral e ética.
Agora é a hora de uma ação urgente, radical e responsável. Transformar a situação atual requer que a comunidade internacional aja com maior ambição e equidade, em todos os aspectos das suas políticas e estratégias.
As mudanças climáticas são uma ameaça grave. No interesse da justiça e da equidade, defendemos ações climáticas comuns, mas diferenciadas, em todos os níveis, desde mudanças comportamentais individuais até processos de tomada de decisão política de alto nível.
O mundo é chamado a alcançar as emissões líquidas zero de carbono o mais rápido possível, com os países mais ricos assumindo a liderança na redução das suas próprias emissões e no financiamento da redução das emissões das nações mais pobres. É importante que todos os governos adotem uma trajetória que limite o aumento da temperatura média global a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais. Para alcançar essas metas do Acordo de Paris, a Cúpula da COP-26 deve propor ações ambiciosas de curto prazo por parte de todas as nações com responsabilidades diferenciadas. Há também uma necessidade urgente de realizar ações para cumprir seus compromissos de médio e longo prazo.
Imploramos às nações com maior responsabilidade e capacidade atual que: intensifiquem sua ação climática em nível nacional; cumpram as promessas existentes de fornecer apoio financeiro substancial aos países vulneráveis; concordem sobre novas metas que lhes permitam se tornar resilientes ao clima, assim como se adaptem e enfrentem as mudanças climáticas, com suas perdas e danos, o que já é uma realidade para muitos países.
Acompanharemos as nações na busca de proteção e investimento nos grupos marginalizados e das populações vulneráveis dentro das suas próprias fronteiras, que, por muito tempo, têm suportado fardos desproporcionais e têm estado nas linhas de frente da pobreza, da poluição e da pandemia. Os direitos dos Povos Indígenas e das comunidades locais devem receber uma atenção especial, protegendo-os de interesses econômicos predatórios. Eles têm sido os zeladores da Terra por milênios. Devemos escutá-los e estar dispostos a sermos guiados pela sua sabedoria.
Apelamos aos governos para que aumentem as suas ambições e a sua cooperação internacional para: favorecer uma transição para energias limpas; adotar práticas sustentáveis de uso da terra, incluindo a prevenção do desmatamento, a restauração de florestas e a conservação da biodiversidade; transformar os sistemas alimentares para se tornarem ecologicamente amigáveis e respeitadores das culturas locais; acabar com a fome; e promover estilos de vida e padrões de consumo e produção sustentáveis.
Pedimos que sejam plenamente levados em consideração os efeitos sobre a força de trabalho da transição para uma economia de energia limpa. A prioridade deve ser dada à criação de empregos decentes para todos, particularmente aqueles em setores dependentes dos combustíveis fósseis. Pedimos para que seja garantida uma transição justa, efetiva e inclusiva para baixas emissões de gases do efeito estufa e um desenvolvimento resiliente ao clima. Ao mesmo tempo, pedimos que considerem as consequências sociais e econômicas de curto e longo prazo, e adotem uma abordagem equilibrada que combine o cuidado com as gerações futuras e a garantia de que ninguém será privado do seu pão de cada dia em nosso tempo próprio.
Apelamos às instituições financeiras, bancos e investidores para que adotem financiamentos responsáveis para investimentos que tenham impactos positivos sobre as pessoas e o planeta.
Apelamos às organizações da sociedade civil e a todos para enfrentar esses desafios com coragem e em um espírito de colaboração.
Paralelamente, pedimos aos líderes participantes da COP-26 que garantam que não haja mais perda de biodiversidade e que todos os ecossistemas terrestres e aquáticos sejam restaurados, protegidos e manejados de forma sustentável.
A fim de alcançar esses objetivos, um grande desafio educacional está diante de nós. Os governos não podem lidar com mudanças tão ambiciosas sozinhos. Precisamos que toda a sociedade - a família, as instituições religiosas, as escolas e universidades, as nossas empresas e sistemas financeiros – se envolva em um processo transparente e colaborativo, garantindo que todas as vozes sejam valorizadas e que todas as pessoas estejam representadas na tomada de decisões, incluindo as mais afetadas, especialmente as mulheres e aquelas comunidades cujas vozes são frequentemente ignoradas ou desvalorizadas.
É aqui que nós, líderes e instituições religiosos, podemos dar uma importante contribuição. A humanidade deve repensar suas perspectivas e valores, rejeitando o consumismo e a cultura do descarte generalizada, e abraçar uma cultura do cuidado e da cooperação.
Conscientizar o público é indispensável para a mudança de rumo necessária.
Os seguidores das tradições religiosas têm um papel crucial a desempenhar no enfrentamento da crise da nossa casa comum. Comprometemo-nos a tomar medidas muito mais sérias. Os jovens estão exigindo que escutemos as descobertas científicas e que nós, seus anciãos, façamos muito mais.
Em primeiro lugar, comprometemo-nos a fomentar a transformação educacional e cultural que é crucial para sustentar todas as outras ações. Ressaltamos a importância de:
- Aprofundar nossos esforços para provocar uma mudança de coração entre os membros das nossas tradições na forma como nos relacionamos com a terra e com as outras pessoas (“conversão ecológica”). Lembraremos as nossas comunidades que cuidar da Terra e dos outros é um princípio fundamental de todas as nossas tradições. Reconhecendo os sinais da harmonia divina presente no mundo natural, nos esforçaremos para incorporar essa sensibilidade ecológica de forma mais consciente nas nossas práticas.
- Encorajar as nossas instituições educacionais e culturais a darem prioridade em seus programas a intuições científicas relevantes, a fortalecerem a educação ecológica integral e a ajudarem os estudantes e suas famílias a se relacionarem com a natureza e com os outros com novos olhos. Além da transmissão de informações e de conhecimento técnico, queremos incutir virtudes enraizadas profundamente para sustentar a necessária transformação ecológica.
- Participar ativa e apropriadamente do debate público e político sobre questões ambientais, compartilhando as nossas perspectivas religiosas, morais e espirituais, e fortalecendo as vozes dos mais fracos, dos jovens e de quem muitas vezes é ignorado, como os Povos Indígenas. Ressaltamos a importância de reformular os debates ambientais, deixando de serem apenas sobre questões técnicas para incluir questões morais.
- Engajar as nossas congregações e instituições com seus vizinhos na construção de comunidades sustentáveis, resilientes e justas, criando e desenvolvendo recursos para a cooperação local, por exemplo na agricultura restaurativa de pequena escala e em cooperativas de energia renovável.
Em segundo lugar, destacamos a importância de realizar ações ambientais de longo alcance dentro das nossas próprias instituições e comunidades, informadas pela ciência e baseadas na sabedoria religiosa. Ao mesmo tempo em que apelamos aos governos e às organizações internacionais para que sejam ambiciosos, também reconhecemos o importante papel que desempenhamos. Queremos enfatizar a importância de:
- Apoiar ações para reduzir as emissões de carbono, alcançar a neutralidade de carbono, promover a redução do risco de desastres, melhorar a gestão dos resíduos, conservar a água e a energia, desenvolver energia renovável, fornecer espaços verdes abertos, conservar as áreas costeiras, evitar o desmatamento e restaurar as florestas. Muitas dessas ações exigem parcerias com as comunidades agrícolas e pesqueiras, especialmente os pequenos agricultores e famílias, a quem apoiaremos.
- Trabalhar para fazer planos ousados para alcançar a sustentabilidade plena em nossos edifícios, terrenos, veículos e outras propriedades, juntando-nos à corrida global para salvar o nosso planeta.
- Encorajar as nossas comunidades a adotarem estilos de vida simples e sustentáveis dentro de casa, de modo a reduzir a nossa pegada de carbono coletiva.
- Esforçar-nos para alinhar nossos investimentos financeiros com padrões ambiental e socialmente responsáveis, garantindo uma maior responsabilidade e transparência, já que a tendência de se afastar dos investimentos em combustíveis fósseis rumo a investimentos em energias renováveis e agricultura restaurativa está se tornando cada vez mais difundida. Encorajamos as partes interessadas dos setores público e privado a fazerem o mesmo.
- Avaliar todos os bens que adquirimos e os serviços que contratamos com as mesmas lentes éticas, evitando que dois padrões morais distintos sejam aplicados ao setor empresarial e ao restante da vida social. Por exemplo, aumentaremos a conscientização nas nossas comunidades de fé sobre a necessidade de examinar as nossas escolhas bancárias, de seguros e de investimento, para corrigi-las de acordo com os valores que proclamamos aqui.
Estamos atualmente em um momento de oportunidade e de verdade. Rezamos para que a nossa família humana possa se unir para salvar a nossa casa comum antes que seja tarde demais. As gerações futuras nunca nos perdoarão se desperdiçarmos esta oportunidade preciosa. Herdamos um jardim: não devemos deixar um deserto para os nossos filhos.
Os cientistas nos alertaram que pode faltar apenas uma década para restaurar o planeta.
Imploramos à comunidade internacional, reunida na COP-26, para que tome medidas rápidas, responsáveis e compartilhadas para salvaguardar, restaurar e curar a nossa humanidade ferida e a casa confiada à nossa administração.
Apelamos a todos neste planeta para que se juntem a nós nesta jornada comum, sabendo bem que o que podemos alcançar depende não apenas de oportunidades e recursos, mas também de esperança, coragem, solidariedade e boa vontade.
Em uma época repleta de divisão e desespero, olhamos com esperança e unidade para o futuro. Procuramos servir as pessoas do mundo, particularmente os pobres e as gerações futuras, encorajando uma visão profética e uma ação criativa, respeitosa e corajosa pelo bem da Terra, nossa casa comum.
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Uma só família em uma casa comum: o apelo conjunto aprovado pelo encontro “Fé e ciência rumo à COP26” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU