"Advertido pelos eleitores nas primárias, Fernández vacila em apresentar saídas ao inferno ultraliberal que herdou. É possível recuperar a confiança popular, mas será preciso enfrentar as elites e apostar em projeto de transformação", escreve Ricardo Aronskind, economista e mestre em Relações Internacionais, pesquisador e professor na Universidade Nacional de General Samiento (Argentina), em artigo publicado por El Cohete a la Luna e reproduzido por Outras Palavras, 29-09-2021. A tradução é de Rôney Rodrigues.
O macrismo cresceu como produto de forças metafísicas universais que estão inexoravelmente conduzindo o mundo para a direita? Ou caiu a adesão dos próprios eleitores à gestão da Frente de Todos [coalizão de apoio ao presidente argentino Alberto Fernández]? Algumas análises comparativas muito convincentes falam dessa segunda opção. Se assim for, convém voltar o olhar para estes 20 meses de governo e examinar a relação entre a administração e os problemas reais do eleitorado. Poderia se dizer que o governo chegou às eleições com o slogan “vacinação + recuperação” como proposta central.
O problema é que a vacinação é dada como certa, em grande parte alcançada, mas não é a única ação governamental avaliada. E quanto à recuperação, ela pode entusiasmar os economistas, os empresários e os trabalhadores diretamente envolvidos na produção, que começam a ver seus frutos, mas não o eleitorado amplo e heterogêneo, cujos os resultados econômicos não chegaram de forma contundente. A recuperação em curso é muito positiva, mas dada a estrutura econômica do país, e a quantidade de trabalho informal e empregos precários, não parece que impactar as grandes maiorias no país.
O mercado não está gerando postos de trabalho e renda necessários para sustentar uma recuperação econômica robusta que reduza substancialmente o desemprego e a pobreza. Se pretende obter resultados eficazes a curto prazo, políticas públicas ambiciosas deveriam ser concebidas para garantir um alívio claro desta situação. Nada que já não tenha sido discutido no atual governo, mas que por algum motivo foi descartado.
Nesse sentido, a aposta em um keynesianismo tradicional (atenuado pelo atual governo devido ao medo dos mercados especulativos) não parece gerar os efeitos de bem-estar esperados pelos governantes. Em outras palavras: a atual recuperação econômica está parcialmente divorciando o Estado das maiorias sociais.
Só com “vacinação + recuperação” não se pode ganhar, e o governo deveria ser capaz de transmitir uma visão esperançosa do que pode ser alcançado nos próximos dois anos. Porque também é preciso oferecer alguma expectativa suficientemente atrativa para que seja interessante votar na Frente – e não ficar em casa. O que será feito nos próximos dois anos? Que melhorias claras e visíveis haverá? Não poderão formular duas ou três propostas que estimulem o desejo de apoiar claramente a Frente de Todos, e que jamais poderiam ser implementadas pelo Juntos [por el Cambio, formada em 2019, em apoio ao macrismo]? Alguém acha que com zero expectativas as eleições poderão ser vencidas?
Se, como dizem, a campanha do macrismo foi financiada pelo FMI, concedendo à Argentina um crédito impagável, a campanha da Frente de Todos foi em grande medida realizada pelo próprio macrismo, com sua péssima gestão econômica e social. Essa gestão horrível fez com que a Alianza Cambiemos [liderada por Macri] se afastasse de setores eleitorais altamente voláteis. Sobre este cenário, foi possível realizar uma proposta eleitoral competitiva, cuja arquiteta foi Cristina, aproveitando-se do legado que o kirchnerismo, que voltou a se insuflar sobre o peronismo em termos de atenção aos problemas sociais.
Mas é preciso sempre lembrar: as políticas neoliberais, por serem geneticamente danosas para as maiorias, alienam o eleitorado. Da convivência quietista com seus efeitos econômicos e sociais, não se podem esperar grandes vitórias eleitorais. Os efeitos do macrismo permaneceram – e isso é algo que os eleitores pedem para que seja liquidado. Não é uma história sobre o porquê ele falhou. Boa parte do eleitorado toma suas decisões através dos efeitos tangíveis das ações públicas, e não por disquisições políticas estratégicas. Não tem a capacidade de distinguir se os preços inacessíveis são consequências da ação do Estado ou de decisões das corporações. Em todo caso eles tem o governo para que seja responsabilizado pela carestia infernal. E se a percepção é que os argentinos estão estagnados em 2019 e não há vontade concreta tampouco planos visíveis de sair desse estado de prostração, não haveria muitos motivos para apoiar um governo com essas características.
O governo chefiado por Alberto Fernández não percebe a emergência social existente, que envolve não apenas aqueles que sofrem com a pobreza extrema – uma abordagem característica das organizações internacionais de crédito – mas também os amplos setores da classe média e média baixa. Há emergência ou não há emergência? Até agora, o governo parece não querer romper com o clima gradualista em questões muito sensíveis – mas é preciso recuperar a confiança popular para sinalizar que o Estado está preocupado em protegê-la das inclemências da economia. Ou será que a “confiança” é um valor que só prevalece em relação aos “mercados” e às suas taxas de lucro esperadas?
Felizmente, o mero fato eleitoral do PASO [Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias] – uma democracia reduzida à sua expressão mínima é sempre melhor do que o reset autoritário com o qual parte da direita local sonha – serviu como uma pesquisa de opinião contundente sobre o ânimo coletivo – com a vantagem de que ainda não se cristalizou uma mudança na correlação de forças institucionais. No início da pandemia, Alberto Fernández soube articular uma série de medidas que lhe o transformaram em fiador da saúde pública, disposto a tomar todas as medidas necessárias para proteger a população. Não foi nada mau, mesmo em termos eleitorais futuros. Mas onde será, durante esses 20 meses, que ele perdeu a oportunidade de construir uma imagem de governo protetor, de governo do Cuidado, de governo que olha e atende aos problemas da maioria? Quanto disso se relaciona com o desejo de moderar a ousadia para agradar setores conservadores?
Já faz muitas décadas desde que começaram a minguar os políticos que se autorrespeitavam e defendiam o valor da atividade política. Eles perderam a autonomia intelectual e pessoal frente ao mundo dos negócios – e se subordinaram a ele. A cada dia, há mais políticos dispostos a se sacrificarem para proteger algum setor do capital, e menos daqueles que aspiram a sobreviver e triunfar por seus próprios termos.
O presidente De la Rúa [1999-2001] poderia ter feito muitas coisas para não cair. Ele pode ter despedido Domingo Cavallo [seu ministro da Economia], pode ter implementado o corralito, pode ter inventado algo a partir da política. Mas ele preferiu ser o para-raios da fúria popular a decepcionar os queridos bancos estrangeiros, que não estavam dispostos a devolver os dólares das poupanças argentinas. Ele se imolou diante do touro furioso da raiva popular, contanto que aqueles que haviam enganado massivamente a população não fossem notados. Desde então, parece ter se espalhado a tradição de ser aspirante à fusíveis dos péssimos planos neoliberais.
Os políticos feitos sob medida aos interesses corporativos, doutrinados no neoliberalismo, preferem se desvanecer no nada a afetar os interesses de qualquer setor do capital. Eles preferem ir mansamente para a fogueira, em vez de revelar a verdadeira trama que sustenta a desigualdade econômica e social. Veremos o quanto disso existe no governo atual – e em que medida a política ainda vive como um exercício criativo e autônomo dos poderes constituídos.
Os interesses comuns de todas os setores da Frente de Todos deveriam prevalecer nesta situação. O mais razoável de tudo é continuar a ter força política, ganhar as eleições e incrementar o seu poder institucional. Não conhecemos ninguém que esteja propondo cometer um suicídio político em um futuro próximo. Mas um objetivo econômico-social que também é um denominador comum em toda a FdT é basicamente melhorar as condições de vida das maiorias. Não estamos falando de grandes feitos de libertação nacional ou social, ou da construção de uma burguesia nacional, ou de qualquer outro objetivo estratégico ambicioso.
Mas de simplesmente aumentar um pouco os salários, as aposentadorias, a AUH [Asignación Universal por Hijo, benefício social para desempregados, precarizados e para aqueles que ganham menos de um salário-mínimo] e outras políticas de transferência, melhorar as condições de vida em geral, ampliar o mercado interno, amparar a população castigada pela história econômica recente. A Frente de Todos, no entanto, encontrou forte resistência do establishment argentino a qualquer ação reparadora. Não apenas em questões importantes, como a desapropriação de Vicentín [empresa agroexportadora que deve volumosas somas ao Estado argentino], mas em questões elementares, como o preço dos alimentos e dos remédios. Cada aumento nominal na renda foi rapidamente destruído pelo aumento incessante de preços.
Uma fração econômica proclamou sua liberdade de reajustar preços de acordo com suas preferências, independentemente das considerações de custo e das condições sociais atuais. O governo não soube enfrentar esta situação, algo que não é apenas mais um erro, mas que corrói o lugar que seus eleitores atribuíram à Frente de Todos na vida política argentina: ser o mitigador do desastre neoliberal.
O sonho não realizado da direita argentina era criar um sistema bipartidário neoliberal, com duas grandes expressões políticas que no campo econômico adotassem o mesmo programa, o que corresponde aos anseios de vários setores empresariais concentradas. Se o Cambienos, o Juntos por el Cambio, ou o Juntos são a pura expressão desse programa fracassado, a ideia é que não pode haver nenhuma força alternativa séria a esse conjunto de aspirações dos “homens de negócio”.
Entre os atores que se dedicam a limitar possíveis mudanças e a reforçar o caminho para uma economia concentrada e raquítica, encontram-se tanto os limites que o FMI pretende impor à ação do Estado argentino, como a constante ameaça de um salto cambial no dólar negro e de alta violenta dos preços por parte de setores concentrados locais. Esses mecanismos nem mesmo foram parcialmente desmontados. Nesse sentido, seria fundamental uma estratégia para garantir que os preços e o acesso a um conjunto de bens básicos de consumo de massa sejam garantidos para a maioria, aconteça o que acontecer com o FMI e os oligopólios formadores de preços. Esse é o escudo que um governo popular deve construir para começar a ser menos dependente da ação disciplinadora dos poderes constituídos. São inúmeras as ideias para isso, fornecidas por personalidades como o engenheiro Enrique Martínez, o ex-prefeito Francisco Durañona ou empresários e cooperativas nacionais que têm propostas práticas e viáveis para produzir alimentos e distribuí-los de forma descentralizada e a preços mais do que acessíveis. Trata-se de enfrentar com firmeza e obstinação uma questão em que se manifestam algumas das piores debilidades da iniciativa política do atual governo.
Congelar no tempo o 9 de dezembro de 2019 [último dia da gestão Macri], pelo menos até que eles retomem totalmente o poder, é a palavra de ordem dos setores da direita econômica. Isso implica em neutralizar todas as ambições transformadoras do atual governo, condenando-o à impotência econômica e à irrelevância política. Nessa luta entre ser e não ser, entre transcender e não transcender, instala-se o governo de Alberto Fernández.