29 Setembro 2021
Apesar das reclamações dos dois lados do balcão, ficar de fora das plataformas digitais não é uma opção fácil.
A reportagem é de Daniel Giovanaz, publicada por Brasil de Fato, 23-09-2021.
Todos os dias, o entregador Adriano da Costa sai de casa antes das nove, pega dois ônibus até a avenida Paulista e retira a bicicleta elétrica do aplicativo iFood no fim da manhã.
“Começo às entregas entre 11h e 11h30”, relata o morador do conjunto habitacional Vila Nova Jaraguá, zona oeste de São Paulo (SP).
O iFood permite alugar as bicicletas por até quatro horas, a um custo semanal de R$ 24, com direito a duas retiradas por dia.
“Então, eu uso quatro horas, devolvo, e pego outra mais à noite, na hora da janta, para utilizar mais quatro horas.”
No intervalo da tarde, Adriano aluga bicicletas do banco Itaú para continuar as entregas de refeições. Nesse caso, o veículo não é elétrico, o que torna a jornada ainda mais pesada.
São em média dez horas de trabalho diário, e o tempo de deslocamento faz com que ele fique longe de casa o dia todo. Quando retorna, já passa da meia-noite e ele está exausto.
“Eu folgo a hora que quiser. O aplicativo, ligo a hora que quiser. Mas acabo trabalhando de segunda a domingo, pela necessidade. Porque tenho a pensão de um filho para pagar, tenho gastos”, exemplifica.
Há cerca de um ano e meio, Adriano recebe do aplicativo em média R$ 2,8 mil por mês, e arca sozinho com os custos de transporte e alimentação ao longo do dia.
Embora haja decisões divergentes, a Justiça brasileira não costuma reconhecer vínculo laboral entre entregadores e aplicativos.
A falta de uma legislação específica no país gera instabilidade jurídica e faz com que ora eles sejam tratados como autônomos, ora como independentes, e mais raramente como trabalhadores formais, conforme a CLT.
As duas principais reclamações de Adriano dizem respeito ao limite de quilometragem para bicicletas e às altas taxas cobradas pelo aplicativo.
“Em alguns casos, vem entrega de 5 km, 7 km para a gente pedalar, debaixo de sol quente. Essa quilometragem deveria ser só para moto. O limite para nós deveria ser 4 km”, afirma.
“E, às vezes, paga R$ 7 por 6 km. Não compensa. Se o cara ficar 30 minutos esperando sair o pedido do restaurante, perde uma hora para fazer uma entrega.”
O questionamento sobre o valor pago por entrega é o mais frequente entre os motoboys.
João Francisco* trabalha 11 horas por dia em Belo Horizonte (MG) e diz que não houve um reajuste proporcional ao aumento do preço dos combustíveis no país.
“Eu mudei de casa, tive que vir morar em um bairro mais afastado, porque não dava conta do aluguel. Dependendo do dia, eu faço o cálculo e vejo que estou pagando para trabalhar. Não sobra nada”, conta.
“Na primeira oportunidade que surgir um trabalho com carteira assinada, em qualquer área, vou pegar. Mas, hoje, se eu desistir ou for excluído da plataforma, no outro dia vou estar na rua pedindo ajuda”, completa o motoboy, que trabalha para três aplicativos diferentes e preferiu não revelar seu nome para evitar punições.
Além do desemprego, o achatamento dos salários no mercado de trabalho formal também faz com que muitos motoristas, mesmo insatisfeitos com as taxas, permaneçam nos aplicativos.
Adriano da Costa conta que trabalhou por 5 anos e meio como operador de empilhadeira no Grupo Pão de Açúcar, uma das maiores redes varejistas do Brasil, e sua remuneração mensal sempre foi inferior ao trabalho atual, no iFood.
A insatisfação de entregadores com as condições oferecidas pelas plataformas vem crescendo no Brasil. Desde 2020, entregadores de várias cidades têm protestado por melhorias na relação e garantias de direitos.
A manifestação mais conhecida foi o “Breque dos Apps” de julho do ano passado, uma paralisação nacional com grande adesão em São Paulo e outras capitais.
“Já presenciei várias manifestações. E tem pessoas que só não participam, porque naquele mesmo dia precisam fazer dinheiro, porque têm dívida para pagar. Então, essa pessoa quer melhoria, mas não vai parar”, analisa Adriano, que nunca participou de atos contra as empresas do setor para evitar ser excluído da plataforma.
João Francisco diz que procura "passar longe" dos protestos, para não ser confundido com um manifestante e não colocar seu trabalho em risco.
A preocupação deles faz sentido. Um dos articuladores da paralisação nacional em 2020, o entregador Paulo Lima, conhecido como Galo, foi imediatamente banido dos principais aplicativos.
Enquanto os entregadores enfrentam jornadas exaustivas para pagar as contas, do outro lado do balcão a situação também é incômoda.
Segundo informações apuradas pelo Brasil de Fato, as taxas cobradas dos restaurantes pelos aplicativos chegam a 30% por entrega no UberEats.
“Se pudesse escolher, a gente voltaria ao que era antes, sem os aplicativos”, desabafa Luiz Fernando*, dono de uma pizzaria em Porto Alegre (RS).
“Mas, hoje, uma pizzaria como a nossa, que precisa ter um volume grande de entregas para sobreviver, não pode ficar fora de um iFood, um UberEats, se não a concorrência atropela.”
O empresário também prefere não se identificar para não “arrumar problema” com as empresas de aplicativo.
Luiz Fernando lembra que sua pizzaria foi uma das últimas da cidade a se render às plataformas digitais de entrega.
“Chegou uma hora, no meio da pandemia, que não deu mais. Eu via o vizinho, que sempre teve menos clientes, fazendo o dobro de entregas que a gente, só porque estava cadastrado no aplicativo. E o nosso entregador, parado”, explica.
Hoje, esse entregador que trabalhava apenas para a pizzaria de Luiz Fernando realiza entregas por aplicativo na região metropolitana de Porto Alegre.
“Essas empresas acabam comendo boa parte do valor da pizza, mas não tem jeito: se você não entra no aplicativo, não é visto, não é lembrado. O número de pedidos por noite acaba sendo menor”, relata o empresário.
Segundo estimativas da Associação Nacional de Restaurantes, a participação média do delivery no total de faturamento dos restaurantes saltou de 11% para 21% entre o início da pandemia e dezembro de 2020.
Paulo César da Motta é um dos proprietários do café e restaurante Empório do Aroma, no centro de Curitiba (PR). O estabelecimento foi aberto uma semana antes do primeiro lockdown na cidade, em março de 2020.
“A gente estudou a viabilidade de entrar nos aplicativos de delivery. Mas, com as propostas que eles tinham, as taxas, e todo o investimento que nós precisaríamos fazer em relação a embalagens, por exemplo, entendemos que não seria vantajoso”, relata.
Outro fator que inviabilizava essa escolha era que o valor das entregas só entraria na conta dos proprietários 30 dias depois.
Hoje, o Empório do Aroma é um dos poucos cafés da região que sobrevive mesmo sem estar cadastrado em aplicativos.
“Fazendo os cálculos em relação aos preços que eles praticam e ao percentual que a gente teria que deixar para o aplicativo, a gente viu que não valia a pena”, diz.
Ao dialogar com outros empresários do ramo, Paulo César entendeu que entrar no aplicativo geraria um aumento repentino de clientes, mas não traria vantagens a longo prazo.
“O que nos disseram é que o início no aplicativo sempre gera um boom de vendas, o que é uma ilusão. Você fica bem posicionado, acha que aquilo vai ser permanente e faz um estoque de compras maior. Mas, em seguida, entram novos empreendimentos no aplicativo e o seu vai ficando escondido”, afirma o empresário.
Outro motivo para não optar pelas plataformas é a precarização cada vez maior do trabalho dos entregadores.
“Todo trabalho merece uma remuneração digna. Quando a gente viu que o entregador recebia R$ 3 ou R$ 4 para uma distância de mais de 5 km, a gente considerou que, ao entrar em um app de entrega, a gente estaria contribuindo com a exploração do trabalho – e com um mercado de embalagens que estava praticando valores fora da realidade”, completa.
Os aplicativos não trabalham com valor fixo por distância ou por entrega. Segundo o iFood, “por km rodado na distância total, é repassado ao entregador o mínimo de R$ 1. Além disso, há uma taxa adicional se o você estiver longe do restaurante. Na maioria das cidades, essa taxa é adicionada a partir de 5 km de distância.”
Hoje, Paulo César e seu companheiro Vladimir realizam as entregas com carro próprio, mas em horários restritos, para não prejudicar o atendimento presencial e a qualidade do produto.
O Empório do Aroma é uma exceção nas maiores cidades do país. O modelo de entrega por aplicativo se popularizou ainda mais na pandemia, e os protestos de entregadores vêm surtindo efeito em casos pontuais.
“A pressão está valendo a pena”, disse ao Brasil de Fato o motoboy Altemício Nascimento, que acompanhou as negociações do iFood com um grupo de entregadores que entrou em greve em São José dos Campos (SP) em setembro.
Além do reajuste no valor pago por quilômetro ou por entrega, as demandas da greve incluíam o fim dos bloqueios indevidos, a exigência de código de confirmação nas entregas e melhores pontos de descanso.
Em São José, os motoboys recebiam do aplicativo três pedidos ao mesmo tempo.
“No dia 28, eles prometeram mexer nas taxas e tirar os três pedidos. Porque hoje cai direto na tela do ‘motoca’ três pedidos. Ou seja, o cara faz dois pedidos de graça para o iFood. Não tem como”, explicou Altemício.
No interior paulista, a greve contou com apoio de bares e restaurantes, que compreenderam os motivos da paralisação. Ao mesmo tempo, os entregadores foram abertos ao diálogo e voltaram ao trabalho após seis dias, para não prejudicar os empresários.
Os motoboys anunciaram que vão paralisar novamente as atividades se o iFood não cumprir com as promessas.
Luiz Fernando, dono da pizzaria na capital gaúcha, diz que as condições só vão melhorar se motoboys e pequenos empresários reivindicarem direitos juntos.
“Pena que é difícil construir essa ideia. A gente está no mesmo barco, mas, na correria do dia a dia, até discutimos com eles, batemos boca, porque alguns entregadores ficam na porta fazendo pressão para o pedido sair logo”, conta.
“O correto seria a gente fechar com eles mesmo, e dar um jeito de pedir condições melhores para todo mundo. Hoje não está bom para ninguém”, finaliza.
O Brasil de Fato apresentou as críticas às empresas citadas. A reportagem também perguntou quais são e como funcionam os critérios para definição das taxas cobradas dos restaurantes e entregadores parceiros.
O UberEats informou que a resposta ficaria a cargo da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que reúne nove aplicativos do setor.
Confira na íntegra a nota enviada pela Amobitec:
"As empresas associadas à Amobitec estão abertas ao diálogo e trabalham para ajudar os motoristas e entregadores parceiros na geração de ganhos, inclusive realizando revisões e realizando reajustes em diversas cidades do país.
Em relação aos valores das entregas, as empresas associadas da Amobitec têm políticas próprias relacionadas ao tema, porém, em linhas gerais, o valor de cada corrida leva em conta uma série de fatores, como a distância total, o tempo necessário para os deslocamentos, e a demanda por entregas no horário e local específicos.
Entre as medidas adotadas pelas empresas para auxiliar os parceiros a reduzirem gastos estão convênios com redes de postos de combustível que oferecem desconto no abastecimento dos veículos, além de parcerias com empresas para oferecer preços especiais em peças, acessórios e manutenção."
* João Francisco e Luiz Fernando são nomes fictícios, porque o motoboy e o empresário ouvidos pela reportagem não quiseram se identificar.
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Entregadores exaustos, restaurantes “amarrados”: cresce insatisfação contra apps de delivery - Instituto Humanitas Unisinos - IHU