22 Setembro 2021
O jornalista italiano Riccardo Cristiano lê a conversa de Francisco com os jesuítas eslovacos, ocorrida no domingo, 12 de setembro de 2021, na Nunciatura Apostólica de Bratislava, e publicada pela revista La Civiltà Catolica.
O comentário foi publicado em Formiche, 21-09-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O fato de a conversa entre o papa, recentemente submetido a uma cirurgia, e os jesuítas com os quais se encontrou na Eslováquia ter começado com a pergunta “como você está?” é normal. Não é isso que surpreende no relato daquela conversa publicada pela La Civiltà Cattolica. O que surpreende é a resposta:
“Ainda vivo. Embora alguns me quisessem morto. Sei que houve até encontros entre prelados, que achavam que o papa estava mais grave do que o que era dito. Preparavam o conclave. Paciência! Graças a Deus, estou bem. Fazer aquela cirurgia foi uma decisão que eu não queria tomar: foi uma enfermeira que me convenceu. Os enfermeiros, às vezes, entendem mais a situação do que os médicos, porque estão em contato direto com os pacientes”.
Não é exatamente um exemplo de “proximidade” com o sucessor de Pedro, enquanto a proximidade é o que ele sugere a quem lhe pergunta o que é preciso ter no coração no trabalho pastoral: proximidade com Deus, proximidade com os coirmãos, proximidade com o bispo, proximidade com o povo de Deus:
“Vocês devem ser como nos disse Paulo VI em 3 de dezembro de 1974: onde há encruzilhadas de estradas, de ideias, lá estão os jesuítas. Leiam bem e meditem aquele discurso de Paulo à 32ª Congregação Geral: é a coisa mais bela que um papa já disse aos jesuítas. É verdade que, se formos realmente homens que vão às encruzilhadas e aos limites, criaremos problemas. Mas o que nos salvará de cair nas ideologias estúpidas é a proximidade com o povo de Deus. E assim poderemos seguir em frente e com o coração aberto. [...]”.
Assim, Francisco adverte para o problema do desejo de voltar atrás: é uma das passagens mais importantes da conversa e deve ser citada na íntegra:
“Estamos sofrendo isto hoje na Igreja: a ideologia de voltar atrás. É uma ideologia que coloniza as mentes. É uma forma de colonização ideológica. Não é um problema realmente universal, mas antes específico das Igrejas de alguns países. A vida nos dá medo. Repito uma coisa que eu já disse ao grupo ecumênico que encontrei aqui antes de vocês: a liberdade nos dá medo. Em um mundo que está tão condicionado pelas dependências e pela virtualidade, ficamos com medo de ser livres. No encontro anterior, eu usei como exemplo o grande inquisidor de Dostoiévski: ele encontra Jesus e lhe diz: ‘Por que você deu a sua liberdade? É perigosa!’. O inquisidor repreende Jesus por ter nos dado a liberdade: bastaria um pouco de pão e nada mais. Por isso, hoje, volta-se ao passado: para buscar seguranças. Temos medo de celebrar diante do povo de Deus que nos olha na cara e nos diz a verdade. Temos medo de seguir em frente nas experiências pastorais. Penso no trabalho que foi feito – o padre Spadaro estava presente – no Sínodo sobre a família para fazer com que se entendesse que os casais em segunda união não estão já condenados ao inferno. Temos medo de acompanhar pessoas com diversidade sexual. Temos medo das encruzilhadas dos caminhos de que falava Paulo VI. Esse é o mal deste momento. Buscar a estrada na rigidez e no clericalismo, que são duas perversões. Hoje, creio que o Senhor pede à Companhia para ser livre, com oração e discernimento. É uma época fascinante, de um fascínio belo, mesmo que fosse o da cruz: belo para levar em frente a liberdade do Evangelho. A liberdade! Essa volta atrás, vocês podem viver na comunidade de vocês, na província de vocês, na Companhia. É preciso estar atento e vigiar. Não se trata, da minha parte, de um louvor à imprudência, mas quero lhes assinalar que voltar atrás não é a estrada certa. Ao invés disso, trata-se de seguir em frente no discernimento e na obediência.”
Portanto, os grandes temas dos divorciados recasados e dos homossexuais como exemplos de uma Igreja que não tem medo, que vai em frente, que não volta atrás, que caminha com o ser humano na história e entende melhor o que lhe foi dito. É o momento da investida contra as ideologias, equivocadas por não terem carne e osso:
“A ideologia sempre tem o fascínio diabólico, como você diz, porque não é encarnada. Neste momento, vivemos uma civilização das ideologias, isso é verdade. Devemos desmascará-las pela raiz. A ideologia do ‘gênero’ de que você fala é perigosa, sim. Do que como eu a entendo, ela é perigosa por ser abstrata em relação à vida concreta de uma pessoa, como se uma pessoa pudesse decidir abstratamente à sua vontade se e quando ser homem ou mulher. A abstração, para mim, é sempre um problema. Isso não tem nada a ver com a questão homossexual, porém. Se existe um casal homossexual, nós podemos fazer pastoral com eles, seguir em frente no encontro com Cristo. Quando eu falo de ideologia, falo da ideia, da abstração para a qual tudo é possível, não da vida concreta das pessoas e da sua situação real.”
Nesse ponto, a conversa parece voltar atrás, para quem olha com desconfiança para o papa dentro da Igreja. Francisco diz que um canal de televisão católico fala mal do papa continuamente e observa que ele, como pecador, pode muito bem merecer isso, mas a Igreja não, e ele define isso como obra do diabo. E, como voltar atrás está fora da agenda do possível, ele acrescenta:
“Agora espero que, com a decisão de parar o automatismo do rito antigo [os limites impostos à celebração em latim, isto é, aquele que mais adiante será chamado de vetus ordo], seja possível voltar às verdadeiras intenções de Bento XVI e de João Paulo II. A minha decisão é fruto de uma consulta a todos os bispos do mundo feita no ano passado. De agora em diante, quem quiser celebrar com o vetus ordo deve pedir permissão a Roma, como se faz com o birritualismo. Mas há jovens que, depois de um mês de ordenação, vão ao encontro do bispo para pedir isso. Esse é um fenômeno que indica que estamos voltando para trás.”
Quando chega a hora da inevitável pergunta sobre os migrantes, o papa parece responder a um cardeal que afirma tê-lo convencido a repatriar os migrantes que migram lotam o seu país:
“Eu acredito que é preciso acolher os migrantes, mas não só: é preciso acolher, proteger, promover e integrar. São necessárias todas essas quatro passagens para acolher verdadeiramente. Cada país deve saber até onde pode fazer isso. Deixar os migrantes sem integração é deixá-los na miséria, equivale a não os acolher. Mas é preciso estudar bem o fenômeno e entender as suas causas, principalmente as geopolíticas. É preciso entender o que está acontecendo no Mediterrâneo e quais são os jogos das potências que se aproximam desse mar para o controle e a dominação. E entender por que e quais são as consequências.”
O papa pode ter passado por uma cirurgia, mas parece oferecer uma bússola para quem está desorientado.
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O papa, os conspiradores e a Igreja que não volta atrás - Instituto Humanitas Unisinos - IHU