O Espírito sopra onde quer, não apenas no clero

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15 Setembro 2021

 

Imaginem ver um padre pregando do púlpito em uma língua pouco compreensível para um auditório mudo e perplexo, que lentamente se levanta dos bancos para deixar a igreja; ou um círculo fechado em que os membros, todos homens, se confrontam apenas entre si: vocês terão, assim, uma ideia da situação na Igreja, como emerge da análise de Paule Zellitch, presidente da Conférence catholique de baptisé-e-s francophones (Ccbf), rede que conta com mais de 10 mil membros e simpatizantes e que desde 2010 promove a inclusão de leigos e mulheres na Igreja, não tem medo de ir direto ao ponto: a paixão pelo Evangelho desta teóloga engajada, de 68 anos, a autoriza a não poupar ninguém.

A reportagem é de Federica Tourn, publicada por revista Jesus, de setembro de 2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

Brilhante e cheia de entusiasmo, ela é uma verdadeira história de conversão no estilo Paulo de Tarso. Parisiense, com formação jurídica, antes dos cinquenta anos era uma conceituada perita em antiguidades e nem lhe passava pela cabeça entrar na igreja: "Nenhum dos meus amigos era católico e eu não conhecia nenhum católico que me desse o desejo de me tornar católica", conta. Porém, sua família paterna é muito observante e seus ancestrais incluem padres e bispos: Angelo Roncalli também passou pela casa de seu avô, quando ainda era núncio apostólico em Paris: "Ajudava meu pai nos deveres de casa quando ele era criança", conta Zellitch. Seu pai tem uma relação atormentada com a fé, cheia de culpa, enquanto sua mãe transmite a Paule o amor pela liberdade, “que é uma conquista e um empenho”, diz a teóloga hoje, “porque a educação não te prepara para a liberdade: no entanto, não é perigosa, pelo contrário; perigosos são os espaços fechados”.

Um dia, enquanto estava vendendo um Cristo do século XV a um colecionador, ele observa: "Você tem fé, não é?" “Fique quieto!” ela retruca. “Uma reação impensável em um contexto formal como aquele”, comenta hoje. O cliente insiste: "Amanhã você virá à missa comigo." E assim aconteceu: “Entrei na igreja e tudo ficou evidente para mim. No dia seguinte pedi o batismo”, recorda com um sorriso.

Mas converter-se também é atravessar o deserto: depois de ter deixado o trabalho para começar a estudar teologia, amigos e familiares lhe deram as costas por uma escolha tão radical e pouco convencional. Mas ela não se arrepende: "Começar uma vida nova do zero me rejuvenesceu", ela ri.

A franqueza é uma das primeiras coisas que se nota ao falar com ela. “Não devemos ter medo de dizer a verdade: a Igreja na França está em declínio e as coisas estão piorando.

Chegamos ao paradoxo de que, na fé baseada na Palavra, é precisamente a palavra dos fiéis que foi confiscada", explica ela, no que parece ser uma disputa linguística, mas que é um verdadeiro j’accuse contra a instituição eclesiástica: “É uma Igreja monocromática, herança do pontificado de João Paulo II”, enfatiza Zellitch. “Os bispos apoiaram a tendência de Wojtyla de reduzir a influência dos teólogos e a possibilidade de fazer novas propostas. Não há contraditório nem debate, os discursos são planos, e este certamente não é sinal de saúde na Igreja”.

Os números falam por si: hoje na França 34% dos habitantes se declaram católicos, mas apenas 2% são praticantes; então, a quem os bispos falam? Se considerarmos também que a Comissão Sauvé sobre os abusos sexuais nas paróquias estima que tenha havido 10 mil casos nos últimos setenta anos, entende-se que a situação está em alerta vermelho. “Para reagir ao desastre, é necessário conseguir interceptar os católicos que, embora confusos e decepcionados, ainda não abandonaram o navio”, explica Zellitch, “é hora de conjugar a justa verticalidade com uma horizontalidade sadia, porque se é verdade que a Igreja Católica não é uma democracia, também não é uma ditadura”.

Os leigos, e a mulher na fila da frente, estão cansados de serem marginalizados, tratados como crianças incapazes de tomar uma direção, suas competências são ignoradas e seus carismas subestimados. “As hierarquias parecem esquecer que o Espírito sopra onde quer, não apenas no clero”, acrescenta com um sorriso.

“As hierarquias temem a liberdade de pensamento dos leigos: mas obediência não significa abdicar da inteligência e do espírito crítico, significa seguir Cristo”.

Na Igreja, as mulheres são as mais discriminadas: “É deprimente ver que quem é menos capaz te dá ordens só porque é um padre: mas ser padre não é em si uma garantia de competência”, conclui Zellitch. O envolvimento dos leigos na gestão da Igreja é agora fundamental para superar a crise: “O sacramento da Ordem sacerdotal pede expressamente que se dê visibilidade ao Cristo irmão”, explica a teóloga. “Devemos pensar a Igreja não como um fim, mas como um meio, um instrumento sempre capaz de se modernizar para alcançar a meta, a Palavra viva de Cristo”.

É claro que nem todos os sacerdotes são iguais e muitos participam das atividades da CBF, felizes por colaborar com os leigos na construção de uma Igreja mais aberta e inclusiva. “O cristianismo contribuiu muito para o pensamento ocidental”, acrescenta Zellitch, “mas hoje, infelizmente, parece não ter mais os recursos intelectuais para fazê-lo”. Por outro lado, a separação entre Igreja e Estado é na França um excelente anticorpo contra as derivas de um determinado clericalismo: “O laicismo é em certo sentido uma bênção porque constitui uma barreira além da qual a Igreja não pode ir”, confirma. Hoje basta muito pouco para transbordar o vaso, mas Paule Zellitch certamente não desanima: “Devemos parar a hemorragia dos crentes antes que seja tarde demais e na Conférence estamos prontos para este belíssimo desafio”.

Paule Zellitch estudou Direito e depois, seguindo seu caminho de conversão, também se formou em Teologia no Institut Catholique de Paris. Após 23 anos como empresária e antiquária especialista em antiguidades, hoje leciona Bíblia no Centro Sèvres, na Faculdade Jesuíta de Paris, e Teologia e Bíblia no Instituto Católico Cetad, Centro de ensino de teologia a distância. Desde 2019 é presidente da Conférence catholique de baptisé-e-s francophones (Ccbf). De 2006 a 2012 foi vice-diretora "informal" do Serviço para as Vocações da Conferência dos bispos franceses.

 

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