“Ephathá! Imediatamente seus ouvidos se abriram e sua língua se soltou...” (Mc 7,35).
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 23º Domingo do Tempo Comum, ciclo B do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto de Marcos 7,31-37.
Diz um proverbio chinês que “quando os olhos são liberados, começa-se a ver; quando os ouvidos são liberados, começa-se a ouvir; quando a boca é liberada, começa-se a saborear, e quando a mente é liberada, alcança-se a sabedoria e a felicidade”.
Para nos livrar da autorreferência é preciso “cristificar” nossos sentidos, tornando-os oblativos e expansivos. Talvez, a pior enfermidade que padecemos é a atrofia e petrificação dos sentidos; com isso, perdemos a capacidade de assombro e de agradecimento, a capacidade de abertura ao outro, aos outros e ao Outro.
Segundo o livro do Gênesis, o estado original dos sentidos e da mente é a contemplação e a admiração, e não o instinto possessivo ou a suspeita; através deles transitamos pelo mundo numa atitude receptiva.
Assim, “pensar” a realidade é acolhê-la com gratidão e veneração. Com os sentidos oblativos, a inteligência é chamada a “sentir” o mundo como Tabernáculo de uma Presença, que tudo dignifica e torna sagrado.
A filosofia antiga dizia: “Não há nada no entendimento que antes não tenha estado nos sentidos”.
Todo o corpo humano é expressão: gesto, atitude, palavra...; tudo isto revela interioridade, sentimento, espiritualidade; e os sentidos do outro, se estão atentos, podem captar o que foi expresso.
Cessado o pensamento nós nos transformamos num ser só de sentidos, do jeito mesmo como nascemos.
Nós somos olho, ouvido, nariz, boca, pele. Olhamos, escutamos, saboreamos, cheiramos, tocamos... Só assim entramos em interação com a realidade e com os outros. Os sentidos nos humanizam.
O evangelho deste domingo condensa vários aspectos que se oferecem a nós como luz para des-velar o lugar e a importância dos nossos sentidos. Neste relato encontramos Jesus peregrino, fora de seu país, atravessando terra estrangeira, um espaço habitado por “pagãos”, por aqueles que não professam a fé no Deus de Israel. Jesus, com todos os seus sentidos ativos, quebra distâncias e se faz próximo do diferente, daquele que é rejeitado por não ter as mesmas ideias, a mesma religião, a mesma cultura...
O relato ajuda a nos fixar na corporeidade de Jesus, pois nos fala de suas mãos, de seus dedos, saliva, olhos, respiração..., todo o seu ser a serviço do bem. Jesus mobiliza todos os seus sentidos para “destravar” os sentidos bloqueados do enfermo que é levado até Ele.
Jesus se revela como presença inspiradora e nos apresenta uma maneira original de viver o encontro, a acolhida, o diálogo e a cura. Ele rompe as fronteiras e os pré-juízos, se aproxima e permite que os outros se aproximem dele, oferecendo, na relação, o melhor de si mesmo e despertando o melhor que há na outra pessoa. Assim, para uma relação sadia e compassiva é preciso mobilizar todos os sentidos corporais.
Jesus, com seus sentidos abertos e acolhedores, destrava os sentidos do pobre homem excluído e o capacita a integrar-se na convivência social; com os sentidos abertos, agora ele pode expressar a riqueza de sua interioridade. Uma vez libertado da atrofia dos sentidos, o homem se emancipa, recupera sua autonomia e pode manifestar-se sem bloqueios; nada mais o limita.
No encontro com o enfermo que lhe é apresentado, Jesus começa por usar uma linguagem não-verbal; é a linguagem mais primitiva, anterior à palavra: através dos gestos, o surdo-mudo vai sendo reconstruído em sua humanidade.
Jesus, no início da cura, “o conduz à parte, longe da multidão”; uma ação personalizadora, um afastamento da multidão, para longe da massificação.
E lá, na intimidade do contato, o doente é cuidado na individualidade das suas dores.
- “Colocou os dedos nos seus ouvidos”: literalmente, “pôs o dedo na ferida”.
A mão é fonte de contato, é canal de passagem da energia curativa.
- “Com a saliva tocou a língua dele”: força terapêutica da saliva.
- “Olhando para o céu...”: Jesus olha para o alto, em direção ao Pai. Com o olhar para o alto, encaminha-o para além de si. É preciso remetê-lo ao Pai, origem de toda vida.
- “Jesus suspirou”: com o sopro, prolonga o gesto do Criador no 6º. dia da Criação; re-corda como Deus “fez tudo bem” no início. Traz à memória o sopro do Espírito, que transforma o “caos” existencial do surdo-mudo em “cosmos”, ou seja, a presença do sopro que passará pelas cordas vocais e pela língua, para ser transformado em palavras.
- “E disse-lhe: ‘Effatha’ (que quer dizer: ‘abre-te’)”: palavra dirigida ao coração do surdo-mudo. É como se dissesse: “abre-te à tua identidade! destrava teu interior!”
Depois de tantos gestos não-verbais e primitivos, vem a palavra. E o surdo-mudo desata sua língua e começa a falar. Insere-se nos devotos que ouvem a Deus e proclamam que Ele é o único, com todos os órgãos e sentidos do seu corpo.
A sociedade na qual estamos inseridos requer de todos nós uma nova sensibilidade para facilitar a convivência, a transformação social e acolher a nova visão da existência humana. No entanto, a convivência social se revela cada vez mais conflituosa; uma das grandes dificuldades é a ausência de saber escutar, olhar, sentir...
Vivemos tempos de reclusão, petrificação, ódios e intolerâncias... que são o contrário do “ephatá-abre-te”.
É preciso “ressuscitar os sentidos” para que encontrem seu lugar insubstituível na experiência da relação com os outros e na expressão de nossa fé. E só podemos descobrir o “lugar e o sentido” dos sentidos através do confronto com a “sensibilidade de Jesus”.
Nesse sentido, a conversão evangélica precisa chegar a alcançar a sensibilidade para ser efetiva. Os sentidos se fazem “espirituais”, isto é, tornam-se sentidos transfigurados, habitados, animados pelo Espírito de Deus porque o ser humano é o “templo do Espírito” (S. Paulo).
Assim, uma sensibilidade cristificada revela-se como uma graça que nos permite viver o seguimento de Jesus de um modo sempre original e aberto.
O agir cristão depende da sensibilidade e enquanto esta não for evangelizada não podemos ter certeza de reagir evangelicamente na vida.
Escutar, sentir, perceber as próprias sensações físicas, as emoções primárias, as reações psíquicas...: o corpo é criativo nas suas expressões e na arte da comunicação. A corporalidade, tanto pode ser escutada como sentida. Tendo aprendido a auto-escutar, pode-se olhar, escutar ou sentir as reações vocais, corporais e sentimentais do outro que padece, que sorri, que precisa falar.
Enfim, somos convidados a nos identificar com Jesus Cristo ativando, assídua e amorosamente, os olhos e ouvidos, o tato, paladar e olfato, com a esperança de que fiquem tão banhados e afetados pela sensibilidade d’Ele que, quando mais tarde entrarem em contato com a vida real, possam reagir diante dela com uma sensibilidade nova, diferente, transformada, convertida. Só assim nossa presença será mais evangélica.
O surdo-mudo precisava abrir os ouvidos e soltar a língua, mas todos nós precisamos abrir alguma dimensão de nossa pessoa que está travada, ou talvez alguma capacidade adormecida ou bloqueada. É preciso transitar com Jesus pelos “territórios pagãos” da nossa própria interioridade, onde dimensões da vida estão travadas, palavras estão silenciadas, dinamismos estão atrofiados...
- Deixe ressoar em seu coração: “Ephathá! Abre-te!” - “Abre-te” a outros modos de pensar, a outras visões e culturas, viver aberto(a) à história e à desafiante realidade.
- O que é preciso “desbloquear” em seu interior? Capacidades adormecidas? (amor, ternura, alegria, generosidade, solidariedade, liberdade...); defesas protetoras que se converteram em armadura oxidada? (medos, retraimento, imagem idealizada...); “manias” nas quais se instala, costumes e rotinas que o(a) mantém fechado(a) em uma jaula de um falso conforto...?
- O que parece claro é que a abertura a espaços interiores vem sempre acompanhada da abertura aos outros e a toda a realidade. Esse parece ser o caminho que conduz à descoberta de que todos somos uno com a Fonte.