Seguem na pauta da corte casos que podem definir o futuro dos povos originários e de suas terras.
A reportagem é de Isadora Costa e Oswaldo Braga de Souza, publicada por Instituto Socioambiental - ISA, 02-07-2021. A edição é de Oswaldo Braga de Souza.
Previsto para começar no Supremo Tribunal Federal (STF), anteontem (30), o julgamento mais importante para os povos indígenas no Brasil em três décadas foi adiado para 25/8. Os ministros não conseguiram concluir a análise dos itens anteriores da pauta. Como o recesso da corte começa hoje e termina em 31/7, a decisão ficou para o fim de agosto.
O caso que pode definir o futuro das demarcações é o da reintegração de posse de uma área da Terra Indígena (TI) Ibirama-La Klãnõ (SC), dos povos Xokleng, Kaingang e Guarani. A TI fica a cerca de 240 km a noroeste de Florianópolis (SC), entre os municípios de Doutor Pedrinho, Itaiópolis, Vitor Meireles e José Boiteux. Em 2019, o processo foi alçado à condição de “repercussão geral”, ou seja, seu resultado vai fixar a jurisprudência sobre o assunto, servindo de diretriz para o governo e o Judiciário em relação a todos os procedimentos demarcatórios.
O julgamento estava marcado anteriormente para 11/6, em plenário virtual, mas foi suspenso por um pedido de destaque do ministro Alexandre de Moraes, um minuto após começar. Os demais ministros sequer chegaram a depositar seus votos, embora o do relator, ministro Edson Fachin, tenha sido divulgado. Depois disso, Fux recolocou o caso na pauta da quarta passada.
Ele ganha ainda mais relevância porque a gestão de Jair Bolsonaro é a pior na oficialização de territórios indígenas desde a Redemocratização. Em dois anos e meio, nenhuma TI foi declarada ou homologada ‒ as duas principais etapas do complexo e demorado processo de demarcação, de responsabilidade do Ministério da Justiça e da Presidência da República, respectivamente. O recorde negativo anterior foi de Michel Temer, cuja administração declarou apenas 3 áreas e homologou uma.
Manifestação indígena no STF, em 29/6/2021 (Foto: Matheus Veloso)
Temer e Bolsonaro paralisaram as demarcações usando como justificativa o Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU). Entre outros pontos, ele incorpora o chamado “marco temporal”, pelo qual os povos indígenas só teriam direito às terras que estivessem sob sua posse em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Alternativamente, se não estivessem na terra, teriam de comprovar a existência de disputa judicial ou conflito material sobre ela na mesma data.
Defendida pelos ruralistas, a tese restringe os direitos indígenas, desconsidera as expulsões, remoções forçadas e todas as violências sofridas pelos povos originários até a promulgação da Constituição. A interpretação também ignora que, até 1988, eles eram tutelados pelo Estado e não podiam entrar na Justiça de forma independente para lutar por seus direitos.
O “marco temporal” e o Parecer 001 serão analisados no julgamento do fim de agosto, entre outros temas. O parecer foi suspenso por Fachin, no ano passado. No voto divulgado agora no processo, o ministro votou contra as teses ruralistas.
Além disso, a decisão sobre a "repercussão geral" pode ter impacto sobre a tramitação do Projeto de Lei (PL) 490/2007, cujo texto principal foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, na semana passada. Na terça passada, o colegiado rejeitou os oito destaques da oposição que pretendiam reduzir os retrocessos aos direitos indígenas da redação.
A proposta prevê o "marco temporal", entre outros pontos que também estão em debate no Supremo, e pode ser considerada a maior ameaça aos direitos indígenas no Congresso desde a promulgação da Constituição, em 1988. O PL está pronto para ir ao plenário da Câmara.
O sócio fundador do ISA, Márcio Santilli, lembra que a CCJ deixou de analisar várias inconstitucionalidades do projeto que já estavam patentes. "Se a maioria do STF acompanhar o voto do relator, Edson Fachin, essas inconstitucionalidades ficarão caracterizadas definitivamente, especialmente o 'marco temporal'", comenta. "Se o projeto for aprovado pelo plenário da Câmara antes da decisão do Supremo, caberá ao Senado corrigir as inconstitucionalidades que vierem a se caracterizar. Se o PL vier a se transformar em lei nos termos em que se encontra, certamente será contestado na corte, que dará a palavra final sobre a matéria", conclui.
O sentimento entre lideranças indígenas após receberem a notícia do adiamento do julgamento no STF foi de decepção. Mas elas prometem continuar promovendo mobilizações para sensibilizar os ministros do Supremo até a retomada do caso.
“Seguimos juntos mobilizados contra o marco temporal e reafirmamos o direito originário dos povos indígenas aos seus territórios tradicionais”, disse Luís Eloy Terena, advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “O ministro [Fux] encerrou a sessão deixando claro que é um processo importante para os povos indígenas e, por isso, deixou esse compromisso de pautá-lo ainda em agosto”, informou.
"Estamos aqui hoje mais uma vez fazendo esse chamado para o ‘agosto indígena’. Voltaremos em agosto para Brasília, para lutar contra todos esses retrocessos, contra todas essas medidas anti-indígenas que tramitam no âmbito dos três poderes”, prometeu Sonia Guajajara, da coordenação da Apib.
Cerca de 1,2 mil indígenas, de 50 povos diferentes e de todas as regiões do país, passaram pelo Acampamento Levante pela Terra (ALT), instalado ao lado do Teatro Nacional e da Esplanada dos Ministérios, em Brasília, desde o início de junho. Concluída hoje, a mobilização teve o objetivo de sensibilizar os ministros do STF e protestar contra a agenda anti-indígena do Congresso e do governo.
Sonia Guajajara, da coordenação da Apib, em protesto em frente ao Congresso, em 1/7/2021 (Foto: @webertdacruz / @retratacaocoletivo)
Mas não é apenas nesse caso que o STF tem nas mãos o futuro dos direitos indígenas. Há, pelo menos, outros dois processos decisivos sobre o assunto na corte hoje.
O primeiro é a Ação Cível Originária (ACO) nº 1.100, que pretende anular a portaria do Ministério da Justiça de 2003 que declarou a mesma TI Ibirama-La Klãnõ. Na ação, o governo de Santa Catarina questiona, em especial, o que considera a “ampliação” do território, de cerca de 14 mil hectares para 37 mil hectares.
O julgamento foi iniciado, no dia 18/6, mas interrompido por um pedido de destaque do ministro Gilmar Mendes. Não há nova data para que seja retomado.
No processo, o povo Xokleng argumenta que seu território original era muito maior e lembra que uma barragem construída dentro de suas terras já reduziu drasticamente a área disponível para a agricultura, inviabilizando a produção de alimentos.
Manifestação indígena no STF, em 29/6/2021
(Foto: Tiago Miotto | Cimi)
A advogada do ISA, Juliana de Paula Batista, ressalta que a redução do território já demarcado ameaça a sobrevivência física e cultural dos Xokleng, confinados em uma área extremamente pequena após o contato com os colonizadores.
“O que ficar decidido neste caso valerá apenas para a TI Xokleng, pois não é um processo que tem o chamado ‘efeito vinculante’”, explica. Quando uma decisão do STF tem “efeito vinculante”, deve ser seguida obrigatoriamente por todo o Judiciário.
Apesar disso, a expectativa em torno da ACO vai além dos interesses das comunidades indígenas locais e do governo catarinense. Votos dos ministros poderiam antecipar posições sobre questões comuns importantes, como o próprio “marco temporal”, e até influenciar o julgamento da “repercussão geral”, segundo advogados que acompanham os dois casos.
O advogado da comunidade Xokleng e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Rafael Modesto, aposta que a ação deve voltar em breve à pauta do STF, mas depois da “repercussão geral”, cuja análise foi marcada para 25/8. Na avaliação dele, o pedido de destaque de Gilmar Mendes teria justamente esse objetivo de dar prioridade ao segundo caso na pauta da corte.
“Nossa expectativa é que o recurso extraordinário com repercussão geral seja julgado antes, para tão somente depois [o processo da ACO] receber a carga decisória do Supremo, tomada no âmbito da repercussão geral”, comenta. “Nós contamos que o Supremo venha a julgar o caso, para manter hígido o Artigo 231 [dos direitos indígenas], como a vontade do constituinte originário, e garantir que as futuras demarcações indígenas ocorram sem prejuízo aos povos indígenas”, completa.
Indígenas em vigília no STF, em 10/6/2021 (Foto: Erik Terena)
O povo Xokleng habitava grandes extensões de terra em toda a Região Sul. Em Santa Catarina, com a chegada dos colonizadores, os indígenas tiveram o território disponível reduzido gradualmente à área onde estão hoje, no leste do estado.
Um grupo permaneceu isolado até 1914, quando o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) estabeleceu um posto de atração e contato. No mesmo ano, foi reservada uma área de 40 mil hectares para a comunidade.
Em 1954, o líder indígena Brasílio Pripá viajou à sede do SPI, no Rio de Janeiro, para denunciar as invasões e a perda de terras. Foi assassinado ao regressar. Em 1956, a demarcação foi oficializada pelo SPI, mas com apenas 14 mil hectares.
Vivendo já com seu território reduzido, os Xokleng habitavam em apenas 15% desses 14 mil hectares. O resto era mata preservada. Então, em 1975, um decreto federal declarou como de utilidade pública parte da terra, para a construção de uma barragem no Rio Itajaí do Norte. A represa foi construída, em 1992, na única área agricultável do território e a comunidade foi obrigada a se retirar de lá.
“A terra demarcada para os povos indígenas vai garantir [proteção ambiental] não só para os povos indígenas, mas para toda a sociedade brasileira. Que seja votada a repercussão geral e que respeitem todos os povos indígenas do Brasil e também a sociedade brasileira”, pede Brasílio Priprá, liderança indígena e neto do outro Brasílio Priprá, assassinado em 1954.
Outro processo fundamental para os povos indígenas que está no STF é a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709/2020. Ela foi apresentada, em julho do ano passado, pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), junto com partidos de oposição e organizações parceiras, inclusive o ISA, para obrigar o governo a combater a pandemia entre as populações originárias.
A ADPF é um tipo de ação que busca evitar, suspender ou reparar dano a algum princípio básico da Constituição resultante de ato ou omissão do Poder Público.
No dia 16, o tribunal determinou, por 11 votos a zero, que o governo federal adote providências imediatas para garantir a proteção e a saúde dos povos indígenas na TIs Yanomami (RR) e Mundurucu (PA), ambas alvos de intensas invasões de garimpeiros ilegais. O problema recrudesceu no governo Bolsonaro, em especial do meio do ano passado para cá.
A decisão referendou integralmente uma liminar do ministro relator da ADPF, Luís Roberto Barroso, de 24/5. Barroso também ordenou a apresentação de relatórios sobre a situação das duas áreas e sobre as ações em ambas para a retirada dos invasores, além da proibição da divulgação de informações que possam atrapalhar o sigilo das operações.
“O ministro determinou que a União deve tomar todas as medidas para proteger os Munduruku e os Yanomami. Isso significa que a União deve agir no sentido de debelar qualquer ameaça ou escalada de conflitos nas duas TIs”, explica Juliana Batista.
Em seu voto, Barroso afirmou que estão demonstrados os indícios de ameaça à vida, saúde e segurança das comunidades Yanomami e Munduruku. “Tais indícios se expressam na vulnerabilidade de saúde de tais povos, agravada pela presença de invasores, pelo contágio por Covid-19 que eles geram e pelos atos de violência que praticam”, escreveu.
“Com relação ao governo federal, [a expectativa] é que se mobilizem as forças de segurança, as instituições do governo de fiscalização como o Ibama, a própria Funai”, acrescenta Rafael Modesto. “Que o governo possa mobilizar um contingente suficiente para fazer essa ação de extrusão de retirada dos garimpeiros”, completa.
O pedido de retirada dos invasores das TIs Munduruku, Kayapó e Trincheira-Bacajá (PA), Yanomami (RR), Araribóia (MA), Uru-Eu-Au-Au e Karipuna (RO) foi o único não atendido por Barroso, em sua primeira decisão sobre a ADPF, em julho do ano passado. Em vez disso, ele requisitou da administração federal um plano para realizar essas operações nas sete áreas. De lá para cá, o governo apresentou pelo menos quatro versões do planejamento. Todas foram rejeitadas pelo ministro. Agora, ele exigiu um documento aceitável mais uma vez.
Na decisão de 24/5, o ministro informou ainda que voltará a analisar o pedido de retirada dos invasores das sete terras após manifestação da União e da Procuradoria-Geral da República.
Em sua primeira decisão do ano passado, ele exigiu ainda que o governo instalasse barreiras sanitárias contra a Covid-19 nas TIs; que todos os moradores dessas áreas tivessem atendimento médico, independente da etapa de demarcação do território; e que os indígenas que moram em cidades também tivessem garantida assistência na pandemia. De acordo com a Apib, essas e outras decisões tomadas no âmbito da ação foram atendidas só parcialmente ou ignoradas.
Desde o início de maio, a aldeia Palimiú, na TI Yanomami, sofre ataques armados consecutivos de garimpeiros ilegais. Há indícios de que facções criminosas que comandam presídios e o tráfico de armas e drogas em Roraima atuem junto com os invasores. Lideranças Yanomami confirmaram que duas crianças, uma de 1 ano e outra de 5 anos, morreram afogadas durante a primeira investida.
Cratera de garimpo, TI Yanomami, 2021 (Foto: Divulgação | ISA)
Até o início desta semana, a Polícia Federal e o Exército haviam feito apenas incursões rápidas à comunidade, deixando os moradores expostos a mais ataques e ao vírus da Covid-19, apesar dos esforços da Hutukara Associação Yanomami (HAY) para denunciar a situação e pedir proteção policial, e da determinação da Justiça Federal de que a União mantenha tropas permanentes no local.
O Ministério da Justiça autorizou a ida da Força Nacional à TI apenas no dia 14/6. As operações na área começaram só na terça (29). Até ontem, pelo menos seis acampamentos garimpeiros tinham sido destruídos na região de Homoxi, mas ninguém havia sido preso.
Entre janeiro e dezembro de 2020, uma extensão equivalente a 500 campos de futebol de florestas foi devastada pelo garimpo na TI Yanomami, um aumento de 30% em relação ao ano anterior, de acordo com análise da HAY e Associação Wanasseduume Ye’kwana (Seduume). Cerca de 2,4 mil hectares já foram desmatados em toda a área.
Garimpo na TI Munduruku, 2021
(Foto: Marizilda Cruppe | Amazônia Real)
As invasões também aumentaram, e muito, nos últimos anos na TI Munduruku: a área degradada pela atividade aumentou 363%, de janeiro de 2019 até agora, conforme levantamento do ISA.
Em maio, atendendo a uma determinação de Barroso na ADPF 709, o governo realizou uma operação para a desativação dos garimpos. Foram cometidos erros graves: informações foram vazadas, o Exército desistiu de apoiar as ações na última hora, lideranças indígenas contrárias às invasões ficaram sem proteção e os agentes de segurança deixaram a região pouco depois do início da ação.
Por causa das falhas, os policiais enviados à Jacareacanga, no sudoeste do Pará, foram hostilizados na cidade e tiveram de conter tumultos organizados por políticos e os chefes do garimpo. Duas casas de indígenas foram incendiadas pelos criminosos.
Há duas semanas, nova operação da Força Nacional foi feita no município para executar prisões, buscas e apreensões de alvos ligados ao garimpo, aos tumultos e crimes realizados durante a operação de maio. Os agentes de segurança deixaram o município logo depois.