02 Outubro 2020
"O retrocesso nacional avança na contramão da tendência internacional de valorizar a questão ambiental e climática", escreve Márcio Santilli, sócio fundador do ISA, em artigo publicado por Instituto Socioambiental - ISA, 01-10-2020.
A crise ambiental brasileira agravou-se em 2020. O aumento do desmatamento e das queimadas, em especial na Amazônia, é o seu elemento mais evidente e que mais impacta o meio ambiente e a saúde das pessoas, assim como aumenta as emissões de gases de efeito estufa na atmosfera, agravando o aquecimento global.
O Brasil promoveu, entre 2004 e 2012, a maior redução de emissões havida neste século, o que lhe garantiu, ao lado da sua condição de país com a maior biodiversidade do mundo, grande reconhecimento e protagonismo nas negociações internacionais sobre meio ambiente e mudanças climáticas. Porém, a partir da reforma do Código Florestal, em 2012, e do afrouxamento do combate aos crimes ambientais, o desmatamento voltou a crescer.
A taxa anual apurada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) entre 2018 e 2019 saltou 30%, e os alertas da devastação mais 34%, em 2019-2020, promovendo números recordes de focos de fogo, uma vez que as queimadas são feitas majoritariamente para queimar os restos da floresta, limpando a terra para atividades agropecuárias. Não por acaso, o agravamento da crise ambiental acompanha a chegada de Bolsonaro à Presidência e o decorrente desmonte dos órgãos, políticas, leis e conselhos de meio ambiente.
O retrocesso nacional avança na contramão da tendência internacional de valorizar a questão ambiental e climática. Mais e mais pessoas percebem a erosão dos recursos naturais e os efeitos do aumento da temperatura e das catástrofes climáticas, que já não são mais simplesmente naturais. A consciência da crise ambiental é assimétrica entre povos e países e permeia, de forma também diferenciada, os governos e os agentes do mercado. Mas o fato dela se expressar de forma mais estridente no mundo ocidental não significa que essa percepção seja menor entre povos e países que mais sofrem com superpopulação, desastres e miséria.
Essa tendência também se reflete nos mercados. Ela tem, sim, uma dimensão política e ideológica, pois a consciência ambiental causa indignação frente a práticas predatórias, gerando movimentos de consumidores capazes de impactar cadeias produtivas e relações comerciais entre países. Mas ela tem, antes de tudo, um fundamento econômico primário, que é o custo socioambiental e climático que pessoas, empresas e governos terão de pagar.
Não surpreende, então, o choque entre o retrocesso ambiental no Brasil e o aumento da consciência ambiental. Ainda mais em 2020, em que o impacto econômico da pandemia de Covid-19 levará a uma redução das emissões globais de gases de efeito estufa, enquanto o surto de desmatamento determinará o aumento das emissões nacionais. Quem se surpreende é o governo Bolsonaro que, na lógica da sua negação deliberada da ciência, não esperava reações tão fortes, dentro e fora do país, inclusive de empresas, bancos e fundos de investimento. Afirmações mentirosas do presidente, do vice e de ministros só têm agravado essa situação.
O governo não diz, mas vê o desmatamento como um resultado “natural” e positivo - porque histórico - do aumento da produção agropecuária e da economia do país. Por isso, fala em “combater o desmatamento ilegal”, enquanto propõe legalizar grandes grilos de terras públicas, garimpos em terras indígenas e outras atividades predatórias. Sua estratégia não é combater nem reduzir o desmatamento, mas legalizá-lo, nas suas várias formas, desonerando o governo de qualquer providência ou responsabilidade a respeito.
Na lógica de Bolsonaro, o agro e o ogro são duas faces de uma mesma moeda. A responsabilidade pela imagem negativa do Brasil não é dos que invadem terras públicas, desmatam e queimam florestas, mas dos que denunciam essas ações. Ele não reconhece qualquer legitimidade na defesa do meio ambiente, da biodiversidade e dos direitos dos índios e dos povos da floresta ou no combate às mudanças climáticas, que, para ele, não passam de subterfúgios político-ideológicos fomentados por concorrentes comerciais.
O problema do governo, agora, é enquadrar nessa lógica binária os empresários de diversos segmentos dentro e de fora do país que expressam críticas e preocupações com o desmatamento e as queimadas. Na melhor das hipóteses, seriam inocentes úteis a serviço de interesses inconfessáveis, ou então, terão aderido aos inimigos da pátria, como ambientalistas, índios, artistas, pesquisadores, servidores públicos, jornalistas e quem mais tenha expressado discordância com a destruição das florestas.
A irritação de Bolsonaro e do seu entorno chegou ao extremo na semana passada, quando soube que a União Europeia deve adiar a implementação do acordo comercial negociado com o Mercosul, por causa da devastação na Amazônia, que seria potencializada com o aumento da produção agropecuária e das exportações para o Velho Mundo. Há resistência à sua ratificação em, pelo menos, seis parlamentos nacionais europeus. Em tese, a parte comercial do acordo poderia vigorar sem necessidade de ratificação, que só seria indispensável para a sua parte política, cujas negociações ainda não estão concluídas e cujo teor ainda não foi divulgado. Mas o risco de uma forte reação popular, dada a indignação generalizada à postura predatória do mandatário brasileiro, recomenda esperar um melhor momento para o acordo vigorar.
Bolsonaro esculhambou chefes de estado e seus familiares, atribuiu má-fé às preocupações ambientais dos europeus e desprezou a ameaça climática. Mas, em vez de assumir a responsabilidade pelas consequências da sua postura, quer transferir para quem o contesta a culpa pela horrorosa imagem internacional do país. O chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, ameaçou processar a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) por crime de lesa-pátria, por causa da campanha “Defund Bolsonaro”, que associa o presidente à devastação na Amazônia e atingiu mais de um bilhão de pessoas no mundo todo.
Discursando na abertura da Assembleia Geral da ONU, Bolsonaro atribuiu aos “caboclos e índios” os incêndios florestais e se disse vítima de uma “cruel campanha de desinformação”. Apelou pela imediata vigência do acordo com a União Europeia. Logo após, foi divulgada uma nota patética dos ministérios da Agricultura e das Relações Exteriores, dizendo que o seu adiamento enfraqueceria a proteção do meio ambiente no Brasil. Mas o governo não reconheceu a gravidade da situação e não assumiu qualquer meta para reduzir o desmatamento.
Em vez de rever a sua postura, Bolsonaro acumula ressentimentos até com empresários que ele considera beneficiários das suas políticas, mas que não vêm a público se solidarizar com o governo quando é atacado pela devastação ambiental. Nesse sentido, orientou o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, a pressionar alguns desses homens de negócios a romper os laços que, eventualmente, mantenham com representações corporativas ou ONGs ambientalistas que critiquem o desmatamento e a (falta de) política ambiental.
Foi assim que Bartolomeu Braz Pereira, presidente da Associação dos Produtores de Soja do Brasil (Aprosoja), anunciou sua renúncia a uma das diretorias da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), alegando divergências e falta de sintonia de objetivos, devido à participação dela na Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, que inclui organizações ambientalistas e que divulgou recentemente propostas para melhorar a atuação do governo no combate ao desmatamento. Sob pressão do governo, Bartolomeu preferiu se alinhar ao ogro. Acusou a Abag de prejudicar a imagem do agro, por mencionar a existência de queimadas, quando, na verdade, é ele próprio que a compromete ao querer negar a realidade que o mundo inteiro vê.
Se abstrairmos Bolsonaro e Salles dessa história, ela não faz nenhum sentido. Bartolomeu acusa a Abag de querer impor aos produtores rurais obrigações que vão além das estabelecidas pelo Código Florestal. Mas o documento da coalizão não impõe obrigações a ninguém e faz recomendações com base técnica e científica destinadas, sobretudo, às políticas de governo. Em caso de divergência legítima, ele teria, como diretor, plena condição de discutir os termos desta ou de qualquer outra manifestação subscrita pela Abag ou, mesmo, de disputar a sua presidência dentro das regras do jogo. Mas preferiu induzir as regionais da Aprosoja ao rompimento com a associação do agronegócio.
Se o conteúdo da posição de Bartolomeu é distorcido, a forma é muito pior. Não é costume dos representantes do agro recorrerem a manifestações públicas para tratar das suas questões internas. A linguagem agressiva pode até ser usada contra inimigos, mas não contra concorrentes e, muito menos, contra uma instituição do agro integrada por ele próprio. Como se diz, a atitude de Bartolomeu foi “over”, para se dizer o mínimo. No conjunto da obra, confundiu a imagem do agro com a péssima reputação de Bolsonaro, como quem quer confirmar a todo mundo que o agro e o ogro são, mesmo, indissociáveis.
Outro elemento para entender a atitude de Bartolomeu seria a opção da maioria dos produtores de soja pelos ganhos desregulatórios e benefícios fiscais do governo, tidos como mais vantajosos do que aumento das exportações para a Europa. “Que se virem os produtores interessados nesse mercado para cumprir exigências de certificação!” Eventuais perdas, já estariam sendo compensadas com o aumento das exportações para a China e outros países menos exigentes. Mas, no médio prazo, essa pode ser uma opção suicida.
A China é a maior emissora mundial de gases estufa, mas não nega as evidências e as consequências das mudanças climáticas e tem uma estratégia consistente para enfrentá-las. O país vem fazendo, há anos, investimentos gigantescos para aumentar a geração de energia limpa e substituir o uso do carvão e do petróleo. À Assembleia Geral da ONU, o presidente Xi Jinping anunciou que o país está alcançando seu pico de emissões e que elas se reduzirão de forma consistente a partir de então. Com o negacionismo prevalecendo nos EUA e Brasil, a China já divide com a Europa a liderança no enfrentamento das mudanças climáticas globais.
A suposição do governo e dos sojeiros de que o desmatamento e as queimadas pouco importam para os chineses ignora a evidente diferença entre a postura da China e a falta de postura do Brasil. A imagem de Bolsonaro também é péssima junto ao governo e formadores de opinião chineses. A atual dependência alimentar em relação ao Brasil e a conjuntura de guerra comercial com os EUA explicam o silêncio da China. Mas é uma situação incômoda, que ela buscará superar. A Aprosoja ainda receberá sinais, no suave estilo chinês, de que as emissões evitáveis oriundas do desmatamento importam, sim.
O alinhamento de Bolsonaro aos interesses do governo Trump admite traições ao agro, como no caso da suspensão da taxa de importação para o etanol americano, prejudicando os produtores brasileiros, para prestar-lhe um serviço eleitoral. Além disso, impõe outras contradições para as relações com a China, como demonstram as pressões dos EUA contra a adoção pelo Brasil da tecnologia chinesa para internet 5G. Mais adiante, veremos onde Bartolomeu amarrou o seu (nosso) burro.
O que objetivamente interessa a uma potência agrícola é ter condições para disputar, de forma lícita, qualquer mercado global importante. As escolhas de Bolsonaro e Bartolomeu são restritivas e aumentam a nossa dependência dos ogromercados. Além disso, o Brasil é megadiverso, condição que ambos só sabem usar como falso álibi para a devastação, mas que é, na verdade, o nosso passaporte para o futuro, inclusive o do agro. São as florestas que produzem as chuvas que fazem a diferença na pujante agricultura tropical brasileira.
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Ogronegócio: Aprosoja atende a Bolsonaro e rejeita de vez sustentabilidade. Artigo de Márcio Santilli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU