25 Junho 2021
"Dando uma simples olhada à história da Igreja, pode-se perceber que quase sempre ela foi contrária a toda novidade que trouxesse alguma vantagem aos homens, como se a instituição religiosa, encerrada no sarcófago de sua doutrina, visse com horror tudo o que é novo, ao qual não sabe reagir se não se entrincheirando na defensiva com Vade retro! não apenas quando se trata de temas fundamentais da doutrina, mas também por questões marginais e ridículas", escreve Alberto Maggi, em artigo publicado por Il Libraio, 24-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Alberto Maggi, frade da Ordem dos Servos de Maria, estudou na Pontifícia Faculdade de Teologia Marianum e Gregoriana em Roma e na École Biblique et Archéologique française de Jerusalém.
Biblicista e colaborador de ilLibraio.it, é uma das vozes da Igreja mais ouvidas por fiéis e não fiéis. Fundador do Centro de Estudos Bíblicos “G. Vannucci” em Montefano, cuida da divulgação das sagradas escrituras, interpretando-as sempre a serviço da justiça, nunca do poder. Com a ed. Garzanti publicou Chi non muore si rivede, Nostra signora degli eretici, L’ultima beatitudine – La morte come pienezza di vita, Di questi tempi, Due in condotta, La verità ci rende liberi (conversa com o vaticanista do Repubblica Paolo Rodari ) Seu novo livro é Botte e risposte – Come reagire quando la vita ci interroga (Garzanti).
Non licet!
A única vez em que aparece no Novo Testamento o adjetivo athemitos (At 10,28), que significa "ilícito", "ilegal", "inadmissível", em referência às relações humanas (em 1Pd 4,3 diz respeito ao "culto ilícito de ídolos”), é para desmenti-lo. Pedro está tenazmente apegado à tradição religiosa de seu povo, fundada na ideia da superioridade de Israel sobre as outras nações ("Nós, que por nascimento somos judeus e não pecadores pagãos", Gl 2,15), que levou a formular o indiscutível princípio de que "é contra a nossa lei [athemiton] um judeu associar-se a um gentio ou mesmo visitá-lo" (Atos 10,28). Pedro reluta em se abrir ao mundo pagão, não tem intenção alguma de se encontrar com Cornélio, um centurião romano, e tenta em vão resistir ao poder do Espírito Santo que o impele a se abrir e acolher. Mas quando a ideologia é confrontada com a vida, a doutrina com as pessoas, os preconceitos e os dogmatismos se desvanecerá "como uma névoa que os raios do sol expulsam" (Sb 2,4), assim o tão temido e evitado encontro com um pagão, impuro e pecador, torna-se uma oportunidade de conversão, mas não para o centurião, mas para Pedro, que virá a declarar: "Mas Deus me mostrou que eu não deveria chamar impuro ou imundo a homem nenhum” (Atos 10,28), derrubando assim aquele muro de separação (Ef 2,14) que dividia judeus e pagãos.
Finalmente, Pedro entende o significado profundo do que lhe aconteceu em Jaffa, quando o Senhor lhe mostrou uma toalha com todos os animais da criação e a ordem imperativa de comê-los. Pedro se recusara obstinadamente a comer alimentos não permitidos pelo livro de Levítico (Lv 11): "De modo nenhum, Senhor! Jamais comi algo impuro ou imundo" (Atos 10,14). Ao que o Senhor respondeu severamente: "Não chame impuro o que Deus purificou" (Atos 10,15). E Pedro entende que a questão não dizia respeito apenas aos alimentos, mas sobretudo às relações humanas.
Neste episódio o acolhimento de Pedro do centurião romano, Lucas descreve o lento caminho de abertura e, ao mesmo tempo, de tenaz resistência da comunidade cristã primitiva em relação à humanidade pagã. O próprio Pedro pagará caro por sua abertura e será submetido a um julgamento por parte da comunidade obstinadamente ancorada na tradição judaica que o repreende por ter "entrado na casa de homens incircuncisos" e ter "comido com eles!" (Atos 11,3).
Com grande ironia, Lucas ridiculariza os fervorosos defensores de tradições religiosas que parecem fundamentais e indispensáveis, mas se revelam realidades ridículas: era tudo questão de um prepúcio. Mas Pedro não aceita as acusações e replica tentando ampliar o estreito horizonte dos zelosos defensores da tradição, afirmando que o Espírito Santo, que não controla se os homens têm ou não o prepúcio, "caiu sobre eles, como também sobre nós " (Atos 11,15), para depois concluir: "Se Deus lhes deu o mesmo dom que a nós, quando havemos crido no Senhor Jesus Cristo, quem era então eu, para que pudesse resistir a Deus?" (Atos 11,17).
A leitura desses episódios faz-nos compreender que desde o início a Igreja, chamada a ser uma realidade dinâmica animada pelo Espírito Santo e, por isso, aberta à ação do Senhor que “faz novas todas as coisas” (Ap 21, 5), é tentada a se tornar uma instituição rígida regulada por leis imutáveis. Isso comporta que a Igreja permaneça obstinadamente fechada a qualquer abertura, até ser ultrapassada pelo inevitável caminho da humanidade e, mais por oportunidade do que por convicção, seja então obrigada a ceder e aceitar aquilo que tinha, de todas as maneiras, arduamente combatido.
A Igreja, que pela vitalidade do Evangelho, animada pela sua energia, deveria ser a força propulsiva que conduz a humanidade à sua plenitude através do reconhecimento da dignidade, da liberdade e do direito à felicidade de cada pessoa, muitas vezes se transforma assim em lastro que impede seu movimento, justificando-o com fórmulas obsoletas e inapeláveis, e sentencia, como um disco quebrado, "Non licet!" (último, em ordem cronológica, “Não é lícito abençoar as uniões homoafetivas, mesmo que sejam estáveis”), apenas para depois ser regularmente desmentida pelo caminho da humanidade, que se dirige cada vez mais para o reconhecimento da dignidade de cada ser humano. E as pessoas, crescendo em maturidade e liberdade, entendem que para serem felizes não precisam da autorização de alguma congregação vaticana que, se e quando vier, sempre será tarde demais.
Dando uma simples olhada à história da Igreja, pode-se perceber que quase sempre ela foi contrária a toda novidade que trouxesse alguma vantagem aos homens, como se a instituição religiosa, encerrada no sarcófago de sua doutrina, visse com horror tudo o que é novo, ao qual não sabe reagir se não se entrincheirando na defensiva com Vade retro! não apenas quando se trata de temas fundamentais da doutrina, mas também por questões marginais e ridículas.
Certamente hoje sorrimos diante de tudo isso, mas Giuseppe Sarto, o Papa Pio X, tinha uma obsessão pelo que considerava uma coisa do demônio, a bicicleta, e proibiu seu uso aos padres. Em 25 de maio de 1912, ordenou ao cardeal Giulio Boschi, arcebispo de Ferrara e presidente da Conferência Episcopal da Emilia Romagna, que insistisse “na proibição já feita em outra ocasião ao uso de bicicletas pelos sacerdotes. E para alcançar o fim desejado, eu consideraria necessário que os vigários forâneos fossem obrigados sub gravi a denunciar os desobedientes ao bispo e impor-lhes a pena da suspensão a ser infligida pelo menos por quinze dias após a primeira inútil advertência. É realmente tempo de acabar com este abuso verdadeiramente indecoroso do clero: rogo Vossa Ex.ma Eminência para lembrar aos veneráveis bispos que sejam rigorosos tanto em exigir dos vigários forâneos o cumprimento desta ordem, como em punir imediatamente os culpados". E os pobres padres por causa de uma pedalada arriscavam-se a ficar quinze dias suspensos da celebração da Eucaristia! A devoção ao papa, porém, não impediu os padres, especialmente aqueles do interior, que não hesitaram em escolher entre a proibição pontifícia e a urgência de administrar os sacramentos aos gravemente enfermos. E gradualmente a proibição evaporou.
Agora, em tempos de pandemia, não foram poucas as vozes de membros do clero contra o uso da vacina, que muitos viram como um instrumento do maligno para subjugar a humanidade. Nada de novo. No século XVII a varíola, o mal do século, causou massacres e quando começou a ser entendido que a salvação estava na inoculação da varíola bovina (daí o termo vacina, de vaca) como há muito se fazia na China, muitos teólogos insurgiram vendo essa prática em contraste com a vontade de Deus.
A arrogante presunção da hierarquia eclesiástica de possuir o conhecimento exclusivo da vontade divina é como uma trave cravada no olho; impede de ver que a única vontade de Deus que aparece nos Evangelhos é o amor incondicional do Criador por suas criaturas cujo bem e felicidade ele deseja, mesmo quando isso vai contra os ditames doutrinários. Estes passam, o bem dos homens permanece.
No dia 21 de julho de 2021, às 10h, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU realiza a conferência A Inclusão eclesial de casais do mesmo sexo. Reflexões em diálogo com experiências contemporâneas, a ser ministrada pelo MS Francis DeBernardo, da New Ways Ministry – EUA. A atividade integra o evento A Igreja e a união de pessoas do mesmo sexo. O Responsum em debate.
A Inclusão eclesial de casais do mesmo sexo. Reflexões em diálogo com experiências contemporâneas
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Quando para o Papa a bicicleta era “coisa do demônio”: o biblista Maggi e os fechamentos da Igreja na história - Instituto Humanitas Unisinos - IHU