21 Junho 2021
No dia em que o país superou marca de 500 mil mortes, movimentos ampliam peso nas ruas para exigir queda de Bolsonaro. Mas, apesar da pressão, atos ainda esbarram na resistência do Congresso em apoiar o impeachment.
A reportagem é de Jean-Philip Struck, publicado por Deutsche Welle, 19-06-2021.
No dia em que o Brasil cruzou a marca de 500 mil mortes por covid-19, movimentos antibolsonaristas capitaneados pela esquerda voltaram a protestar contra Jair Bolsonaro, sinalizando a consolidação da tomada das ruas por multidões contrárias ao presidente.
No dia 29 de maio, mesmo diante do dilema de convocar protestos durante uma pandemia, os adversários de Bolsonaro já haviam feito um ensaio bem-sucedido para retomar as ruas contra o governo e reavivar a pauta do impeachment, reunindo dezenas de milhares de pessoas e quebrando meses de monopólio bolsonarista na organização de manifestações.
Atos contra o presidente voltaram a ocorrer neste sábado (19/06) em todas as 27 capitais. Diante da alta adesão em maio, havia expectativa de que o movimento deste sábado fosse ainda maior. Desta vez, ocorreram convocações em mais de 400 cidades - o dobro da meta das manifestações do final de maio.
Também foram registrados protestos no exterior, em cidades como Berlim, Londres e Lisboa.
No Brasil, os protestos mais significativos ocorreram em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife. Na capital de Pernambuco, mesmo sob chuva, o movimento foi significativamente maior do que a manifestação de maio, e desta vez ocorreu sem episódios de violência policial.
Em Brasília, milhares de manifestantes fizeram uma caminhada pela Esplanada dos Ministérios. Deputados de esquerda discursaram sobre um caminhão de som e vários indígenas tomaram parte no movimento. No Rio de Janeiro, milhares de pessoas caminharam ao longo da avenida Getúlio Vargas. Os organizadores estimaram que 70 mil pessoas participaram. Celebridades como o cantor e compositor Chico Buarque participaram do movimento.
Em São Paulo, dezenas de milhares de pessoas ocuparam vários quarteirões ao longo da Avenida Paulista, o principal termômetro de protestos no país desde 2013. Em maio, os manifestantes já haviam protagonizando no local a maior manifestação antigovernamental no local em mais de dois anos. Um enorme boneco inflável com o rosto de Bolsonaro usando os trajes da figura da morte e segurando uma caixa de ineficaz cloroquina foi colocado em frente ao MASP. Figuras de papelão representando os três filhos do presidente usando trajes de presidiário também foram colocadas no local.
O ato contou com figuras como o petista Fernando Haddad, demonstrando que o PT, que havia evitado se associar diretamente aos protestos de 29 de maio, mudou o tom e abraçou o movimento.
A pauta dos atos voltou a contemplar temas como pressão pela aceleração da vacinação e aumento do valor do auxílio-emergencial, mas também passou a incluir o fim do racismo e o fim da violência contra a população negra. Mas o tema principal continuou a ser a pressão pelo impeachment do presidente e manifestar repúdio à gestão de Bolsonaro - especialmente pelo gerenciamento da pandemia e a política negacionista do Planalto, que não dá sinais de mudança de rumo mesmo recordes de mortes e escassez de vacinas.
Muitos cartazes lembraram os 500 mil mortos pela pandemia no Brasil. Até o fim da tarde deste sábado, o presidente Bolsonaro ainda não havia se manifestado ou lamentado a trágica marca.
Novamente, em contraste com atos bolsonaristas, os organizadores e apoiadores do movimento deste sábado apelaram para que os participantes usassem máscaras e mantivessem distanciamento uns dos outros. Imagens dos protestos pelo país mostraram que a maioria dos participantes continuou a levar o uso das máscaras a sério.
Até o final de maio, os movimentos antibolsonaristas se encontravam em um dilema diante da persistência da pandemia e os riscos que envolvem o estímulo a aglomerações num momento em que as mortes por covid-19 voltaram a acelerar. Mas, no ato de 29 de maio, o ex-candidato à Presidência Guilherme Boulos (PSOL) sintetizou a visão que prevaleceu entre os organizadores: "O governo Bolsonaro é mais perigoso do que o vírus. Não vamos observar passivamente nosso povo morrer de vírus e de fome até 2022", disse o político de esquerda.
A segunda rodada de protestos ocorre em meio a mais uma semana de tensão para o governo, que teve que continuar a lidar com o desgaste da CPI da Pandemia.
Nos últimos dias, o colegiado foi palco do depoimento do ex-governador Wilson Witzel, que lançou acusações contra Bolsonaro, ligando seu nome não só à má gestão da pandemia como a uma suposta perseguição pessoal como retaliação às investigações do caso Marielle Franco. Na sexta-feira, a CPI ainda anunciou que vai passar a investigar membros do círculo de Bolsonaro, como os ex-ministros Ernesto Araújo e Eduardo Pazuello e promotores da cloroquina como a médica Nise Yamaguchi e o empresário Carlos "Wizard" Martins.
Os atos deste sábado contaram com presença mais forte de partidos políticos e sindicatos. No dia 29 de maio, citando preocupações com estímulos a aglomerações durante a pandemia, nem todos os movimentos ligados à esquerda participaram formalmente dos protestos, que oficialmente foram organizados pelas frentes Povo sem Medo, Brasil Popular e Coalizão Negra por Direitos.
Desta vez, no entanto os atos ganharam a adesão oficial de grupos como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Partidos de esquerda como PT, também entraram com mais força nos atos, que já contavam com PSOL e PCdoB, entre outros. O Cidadania, de centro, também divulgou que aderiu ao movimento.
No entanto, a oposição de direita a Bolsonaro ainda evita abraçar o movimento. Movimentos como o MBL e o Vem Pra Rua, que lideraram os bem-sucedidos protestos contra Dilma Rousseff em 2015-2016, vêm mantendo distância das iniciativas dos grupos de esquerda, ainda que afirme que estão rompidos com o bolsonarismo.
Os atos deste sábado também contrastam com a presença tímida registrada na "motociata" bolsonarista de 12 de junho em São Paulo, que passou a ser divulgada pelo presidente logo após os protestos de 29 de maio. O ato bolsonarista contou com a presença de menos de 7 mil motos - segundo dados de uma praça de pedágio pela qual o movimento passou. Um discurso do presidente ao final do ato, em frente ao Parque Ibirapuera, reuniu ainda menos pessoas e chamou mais a atenção pelas falas incendiárias e negacionistas.
Ainda assim, ativistas bolsonaristas e membros da base de apoio do presidente divulgaram falsamente que o movimento teria reunido 1,3 milhão de motociclistas - uma afirmação facilmente desmentida. A presença aquém do esperado nos atos bolsonaristas tem ocorrido mesmo com o presidente direcionando a força de seu cargo para convocar apoiadores. Para tentar atrair participantes à "motociata", um empresário bolsonarista chegou a anunciar o sorteio de uma moto. Imagens do evento também mostram que foram distribuídas marmitas para alguns participantes.
Os últimos atos bolsonaristas comparáveis ao deste sábado e o dia 29 de maio ocorreram em maio de 2019, quando, segundo pesquisas, a base de apoio do presidente ainda era consideravelmente maior. Hoje, o presidente amarga rejeição recorde, segundo pesquisas. Apenas 24% dos brasileiros aprovam a gestão do presidente, segundo levantamento do Datafolha divulgado em 12 de maio.
Nas últimas semanas, Bolsonaro tem se sentido mais confortável em pequenos atos pontuais, organizados pelo Planalto, que normalmente incluem a inauguração de alguma obra de pouca relevância, especialmente na região Norte do país. Regularmente, esse atos com algumas dezenas ou poucas centenas de pessoas, entre curiosos e apoiadores extremados, se confundem com atos antecipados de campanha.
Na sexta-feira, o presidente esteve no interior do Pará, onde entregou títulos fundiários. Ele exibiu uma camiseta com o slogan "Bolsonaro 2022" e deu o microfone a um apoiador que começou a defender garimpeiros e madeireiros ilegais. Como sempre ocorre em atos bolsonaristas, praticamente ninguém usou máscara - há muito tempo bolsonaristas transformaram a rejeição ao acessório num sinal de identidade de grupo. Longe de serem demonstrações de força, esses atos acabam chamando mais a atenção pelas falas negacionistas do presidente e ataques contra adversários políticos, muitas vezes lançadas em reação a episódios de desgaste para o governo, explicitando um comportamento acuado.
Ao longo da semana, mesmo com o número de mortes por covid-19 oficialmente notificadas se aproximando da marca de 500 mil, Bolsonaro continuou a atacar o uso de máscaras, alimentar desconfiança sobre vacinas e chegou a afirmar que a contaminação pelo vírus é mais eficiente do que qualquer imunizante.
Até o momento, Bolsonaro evitou fazer qualquer comentário sobre os atos deste sábado. Em 29 de maio, a reação bolsonarista aos protestos de 29 de maio já havia sido esparsa, sem apresentar uma narrativa unificada, demonstrando que o campo governista também perdeu espaço nas redes sociais. Bolsonaro atacou o movimento dois dias depois, afirmando falsamente que ele havia sido um fracasso. "Você sabe porque teve pouca gente nessa manifestação da esquerda agora no fim de semana? Faltou erva para o movimento. E faltou dinheiro", disse em 31 de maio para apoiadores.
O movimento deste sábado também foi um teste para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que aparece na liderança das pesquisas para a corrida presidencial de 2022.
No dia 29 de maio, o petista permaneceu em silêncio, levantando especulações de que o PT não deseja arriscar mudar bruscamente o cenário eleitoral que se desenha em 2022 com uma eventual queda em curto ou médio prazo de Bolsonaro.
No entanto, desta vez, diante do fortalecimento do movimento antibolsonarista nas ruas, Lula resolveu falar sobre os atos. Na sexta-feira, ele divulgou em suas redes sociais uma lista dos locais dos atos contra Bolsonaro e defendeu publicamente as manifestações. "Fico feliz que o povo esteja brigando pelos seus direitos. E não adianta querer igualar as manifestações. Veja a diferença entre as manifestações contra o genocida e os atos promovidos por ele. Um lado usa máscara, álcool gel, o outro lado vai sem máscara e nega a vacina", escreveu o petista na quinta-feira.
Por outro lado, o petista voltou a evitar participar dos atos. Ele explicitou em uma mensagem qual é seu dilema neste caso. "Não quero transformar um ato político em um ato eleitoral. Não quero os meios de comunicação explorando isso como o Lula se apropriando de uma manifestação convocada pela sociedade brasileira", disse o petista nesta semana.
A volta do antibolsonarismo às ruas capitaneado principalmente por movimentos de esquerda ocorre em um momento delicado para Bolsonaro, com a reprovação do presidente batendo recorde, com pesquisas indicando a desidratação de sua candidatura à reeleição e com o desgaste diário da CPI da gestão da pandemia no Senado.
"A rua está mandando um recado para o Lira. Está dizendo: faltava esse elemento? Está aqui o elemento para instaurar o processo de impeachment", disse o coordenador nacional da Central de Movimentos Populares (CMP), Raimundo Bonfim, um dos organizadores dos protestos deste sábado, ao jornal Folha de S.Paulo.
No entanto, a pressão do movimento ainda não se refletiu sobre o Congresso, ao qual cabe lidar com um eventual processo de impeachment. Após os atos de 29 de maio, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que tem a prerrogativa de dar início ao trâmite, disse que "não é uma caminhada de um grupo numa semana" que vai com que um impeachment ande na Casa. Em 2015 e 2016, a pressão de protestos regulares contra Dilma Rousseff acabaram dando impulso para a debandada do Centrão da base da então presidente no Congresso.
Bolsonaro ainda conta com 24% de aprovação de um núcleo duro que ainda resiste em abandonar o presidente mesmo com o desastre da pandemia, a economia enfraquecida, o avanço da fome, o isolamento internacional e a gestão tumultuada do governo. Não faltam crimes de responsabilidade que embasem um impeachment de Bolsonaro, mas as condições políticas, na visão de muitos parlamentares, têm menos incentivos para a saída do presidente antes de 2022.
Dilma Rousseff, tinha 9% de aprovação em dezembro de 2015, quando seu impeachment foi pautado. E mesmo assim a adesão da maior parte dos parlamentares ao processo só teve impulso com uma combinação de protestos regulares e com participação recorde, adesão de um vice-presidente rompido com o Planalto, e intervenções ilegais da Lava Jato, como ocorreu na nomeação ministerial de Lula, cujo fracasso enterrou qualquer chance que restava ao governo para restabelecer sua base.
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Antibolsonarismo consolida retomada das ruas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU