18 Junho 2021
Há um novo governo em Israel, mas a coalizão que o apoia “tem muito pouco que a mantém unida” e agrupa forças com posições antitéticas sobre “a questão dos palestinos e a possibilidade de estabelecer um Estado palestino”. A análise dos novos cenários políticos da Terra Santa, proposta pelo padre David Neuhaus, SJ, superior dos jesuítas na Terra Santa, parte dessa constatação simples e decisiva.
A reportagem é da Agência Fides, 17-06-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nascido na África do Sul, filho de pais judeus alemães que fugiram da Alemanha nos anos 1930, o Pe. David também foi no passado vigário patriarcal do Patriarcado Latino de Jerusalém para os católicos de expressão hebraica.
Nesta entrevista, o sacerdote oferece pontos de reflexão concretos e articulados sobre a real consistência da chamada “virada política” ocorrida em Israel e, entre outras coisas, dá como certa a confirmação de fortes relações entre os setores mais influentes da liderança israelense e os grupos de “cristãos evangélicos sionistas” que apoiam Israel “com base em uma leitura fundamentalista da Escritura e partindo da convicção de que Deus escolheu Israel (entendido como o moderno Estado de Israel) e lhe prometeu a vitória”.
O novo governo Bennett/Lapid quer se apresentar como um “governo da mudança”, mas, na opinião do Pe. David Neuhaus, “a principal mudança é que Benjamin Netanyahu não é mais o primeiro-ministro. A coalizão que o substituiu tem muito pouco que a mantém unida, a não ser o desejo de expulsar Netanyahu”.
A nova estrutura de governo “reúne partidos de direita e de esquerda que têm visões radicalmente diferentes sobre o tipo de sociedade que gostariam de promover. Isso é especialmente verdadeiro no que diz respeito à sua abordagem da questão palestina e à possibilidade de estabelecer um Estado palestino”.
A posição das figuras de destaque do novo governo, incluindo o primeiro-ministro Naftali Bennett, “não difere muito da posição de Netanyahu. Eles expulsaram Netanyahu, porque ele não lhes permitia ter acesso a posições de poder e tentou esmagá-los quando se tornaram populares demais. A vingança deles contra ele foi pessoal e organizacional”.
Para realizar a sua revanche contra Netanyahu – observa o jesuíta – “eles estreitaram uma aliança com partidos de centro e de esquerda que se opõem radicalmente à visão política de Netanyahu, estão mais abertos para negociar com os palestinos e para avançar rumo à criação de um Estado palestino. A questão crucial neste momento é se a coalizão vai desmoronar depois de ter conseguido destituir Netanyahu, ou se a colaboração estabelecida para destituí-lo conseguirá reunir esses componentes tão diferentes de uma forma suficiente para governar o país. Enquanto Netanyahu continuar sendo uma ameaça política, eles poderiam realmente investir energias para se manterem unidos, de modo a poder impedir qualquer possibilidade do seu retorno ao poder”.
Diversos meios de comunicação ocidentais têm enfatizado a entrada na coalizão de governo de um partido árabe, apresentando tal evento como um fator de forte descontinuidade em relação ao passado. O Pe. David Neuhaus lembra que “não é a primeira vez que os partidos árabes fazem parte de um governo em Israel, mas o interessante é que, desta vez, Mansour Abbas (o chefe do Partido Ra’am, a única formação árabe que entrou na coalizão governamental) afirma ser um nacionalista palestino e um muçulmano tradicional”.
Sobre Abbas, o jesuíta expressa avaliações articuladas e em aberto: “O partido que ele fundou”, observa o Pe. David, “é conservador em todas as questões sociais e está em contraste com os elementos mais progressistas da sociedade palestina em Israel, em particular com as forças políticas árabes mais de esquerda, das quais ele já foi aliado antigamente. Abbas é um político relativamente jovem, nascido em 1974 e natural de Maghar, uma cidade da Galileia onde os drusos são a maioria e onde os cristãos são mais numerosos do que os muçulmanos. Ele defendeu que chegou a hora de promover os interesses dos cidadãos árabes palestinos de Israel, pressionando por igualdade, em vez de conectar tudo com a questão da ocupação nos Territórios Palestinos conquistados por Israel em 1967, como tendem a fazer os agrupamentos políticos árabes que eram seus aliados. Resta saber se Abbas será capaz de melhorar o destino dos cidadãos árabes palestinos de Israel e se o seu apoio a essa coalizão durará. Ainda não está claro se Abbas é ingênuo, não se dando conta da verdadeira extensão do racismo presente no sistema político israelense e da natureza sistêmica da discriminação, ou se ele é um político experiente, que luta pelo seu povo. Por enquanto, muitos cidadãos árabes palestinos de Israel estão preocupados com o fato de Mansour Abbas ter se associado a partidos que são vistos como defensores da ocupação dos Territórios Palestinos e da discriminação contra os palestinos cidadãos de Israel”.
Com respeito aos fenômenos discriminatórios em curso em Israel, o professor do Instituto Bíblico de Jerusalém expressa considerações claras: “A discriminação em Israel contra os cidadãos árabes palestinos afeta todos os âmbitos da vida, naquele que é definido como o ‘Estado judaico’. De fato, o Estado de Israel é definido legal, política e ideologicamente como um Estado judaico e promove a exclusividade judaica em vários campos, particularmente no campo do desenvolvimento. Os cidadãos palestinos de Israel podem votar nas eleições, mas a discriminação se manifesta com evidência na distribuição de recursos ao setor palestino. Isso fica perfeitamente claro ao se comparar as cidades e os vilarejos árabes com os judeus, em termos de infraestrutura, desenvolvimento, serviços municipais, escolas, parques, bibliotecas, hospitais e assim por diante. O Estado que é definido como Estado judaico reserva aos judeus a parte do leão em termos de recursos. Em 2018, foi aprovada uma lei, a Lei do Estado Nacional, que enfatizou mais uma vez que Israel é o Estado do povo judeu, a sua língua é o hebraico e o seu principal objetivo é promover os interesses judaico. Isso levou alguns a suporem que Israel, na realidade, é um Estado de ‘apartheid’, como é sugerido especificamente pela Betselem, uma importante organização israelense de direitos humanos”.
Os conflitos étnico-religiosos que dilaceram a sociedade israelense, fomentados e alimentados por lógicas de utilitarismo político, tiveram nos últimos dias mais uma manifestação emblemática o caso da “Marcha das Bandeiras”. Como explica o Pe. David Neuhaus, “trata-se de um evento anual que celebra a conquista da Jerusalém árabe por parte de Israel, ocorrida em 1967. Quem marcha provém predominantemente dos partidos religiosos de direita (incluindo os colonos), e a marcha é um evento que, aos seus olhos, enfatiza o controle judaico de Jerusalém, a unidade da cidade e o seu caráter judaico. A marcha sempre provoca tensões à medida que avança pelos bairros palestinos da Cidade Velha de Jerusalém, e alguns manifestantes inevitavelmente entoam slogans racistas contra os árabes e lançam provocações às pessoas que vivem nesses bairros.
Neste ano de 2021, a marcha foi cancelada no último minuto, porque o Hamas havia começado a disparar mísseis contra Israel a partir de Gaza. Naturalmente, esse foi apenas mais um desenvolvimento de uma série de eventos que começaram um mês antes, no início do Ramadã, quando Israel tomou medidas unilaterais para mostrar quem manda na Jerusalém árabe e proibiu os palestinos de se reunirem, como é de costume, no Portão de Damasco. Jerusalém é como um barril de pólvora, sempre pronta para explodir, e essa marcha inevitavelmente joga ainda mais lenha na fogueira. A extrema direita, aliada de Netanyahu, diante do cancelamento anterior da marcha que deveria ter sido realizada no dia 10 de maio, insistiu que ela fosse realizada no dia 15 de junho. Netanyahu, sabendo muito bem que isso poderia causar uma primeira crise no novo governo, deixou a decisão sobre o que fazer ao seu sucessor. Não querendo provocar a direita imediatamente, a marcha foi autorizada. No entanto, o seu percurso foi modificado para que não houvesse muitos atritos entre os manifestantes e os palestinos. Além disso, os EUA e o Egito se mobilizaram para tentar apagar as chamas desta vez”.
Israel impediu que as urnas nas eleições palestinas fossem abertas na parte árabe de Jerusalém, e isso justificou o adiamento do tão esperado turno eleitoral para decidir quais são as atuais relações de força entre as forças políticas palestinas. De acordo com o Pe. Neuhaus, “é improvável que o novo governo mude de posição sobre as eleições palestinas na Jerusalém árabe. As eleições palestinas em Jerusalém são vistas como uma ameaça à soberania israelense na parte árabe da cidade. Isso só poderia mudar se se fizesse uma pressão internacional suficiente sobre Israel (particularmente dos EUA)”.
Sobre as relações da nova estrutura de governo com a liderança política e com os influentes lobbies dos EUA, o Pe. David Neuhaus considera que “é improvável que o novo governo renuncie aos fortes laços com os cristãos evangélicos sionistas de que o governo anterior gozava. Esses amigos de Israel, fortemente antiárabes e antimuçulmanos, apoiam Israel com base em uma leitura fundamentalista da Escritura e a partir da convicção de que Deus escolheu Israel (entendido como o moderno Estado de Israel) e lhe prometeu a vitória. Esses grupos não representam apenas um influente lobby político nos EUA, mas também enviam muito dinheiro e pessoal para promover Israel e os seus interesses, e o novo governo, sem dúvida, buscará o seu apoio, precisamente como fez o governo anterior. Mas convém levar em conta que o novo governo inclui elementos de esquerda ferozmente contrários aos tradicionais ‘valores da família’ promovidos pelos evangélicos, e isso poderia levar a alguns atritos interessantes”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Novo governo de Israel vai confirmar os fortes laços com os cristãos evangélicos sionistas”, afirma jesuíta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU