Apesar de os EUA adotarem outra posição no debate climático, "um dos traços" da Cúpula de Líderes sobre o Clima "foi o tom tecno-otimista, com as esperanças sendo canalizadas para falsas soluções, justamente para evitar que a questão climática seja tratada como a emergência que de fato é", avalia o pesquisador
Se em meados do ano passado ambientalistas sinalizavam um aspecto positivo da pandemia, a saber, que a crise pandêmica levaria à redução das emissões de gás carbônico e, consequentemente, teria um impacto positivo no enfrentamento das mudanças climáticas, hoje, um ano e meio depois, não há muito a comemorar nesse sentido. A previsão, segundo Alexandre Costa, é que haja "um aumento das emissões em 2021 em 4,8%, o que nos recolocaria em um patamar bem próximo ao que foi emitido em 2018 e 2019".
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Costa explica as razões do aumento das emissões no último ano, reflete sobre o "incessante crescimento da demanda energética", atrelado à hiperprodução e ao hiperconsumo, e comenta os desdobramentos da reunião da Cúpula de Líderes sobre o Clima, organizada pelo presidente americano Joe Biden. "Mesmo Biden e os EUA, com uma administração que afirma a disposição de deixar para trás a era das trevas do negacionismo climático de Trump, ainda estão distantes do que é necessário fazer para enfrentar a emergência climática", observa.
Alexandre Araújo Costa (Foto: Reprodução Youtube)
Alexandre Araújo Costa é graduado em Física e doutor em Ciências Atmosféricas pela Universidade do Estado do Colorado, EUA. Foi um dos autores principais do primeiro relatório do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. Militante ecossocialista e ativista climático, edita o blog “O Que Você Faria se Soubesse o Que Eu Sei”, assim como o canal no YouTube de mesmo nome. É um dos coordenadores do fórum de articulação Ceará no Clima. Atualmente, leciona na Universidade Estadual do Ceará - Uece.
IHU On-Line - No início da pandemia, alguns pesquisadores comemoraram a redução das emissões de gases de efeito estufa. O senhor, no entanto, na última entrevista que nos concedeu, destacou o baixo impacto que essa redução teria no enfrentamento das mudanças climáticas, e chamou a atenção para a necessidade de um novo modelo de desenvolvimento. Após pouco mais de um ano da pandemia, há razão para comemoração?
Alexandre Costa - Os alertas que fiz basicamente se confirmaram. Os dados da International Energy Agency - IEA mostram que as emissões caíram apenas 5,8% em 2020 em relação a 2019. A queda foi puxada pela redução na demanda energética em cerca de 4% e foi maior no setor de transportes. Como alertava, esse valor apenas se aproxima do corte anual necessário até 2030 para garantirmos uma trajetória de redução de emissões compatível com um aquecimento global limitado a 1,5°C. Pior que isso, a própria IEA projeta um aumento das emissões em 2021 em 4,8%, o que nos recolocaria em um patamar bem próximo ao que foi emitido em 2018 e 2019.
Como a crise climática é um problema cumulativo, as concentrações de dióxido de carbono e demais gases de efeito estufa continuarão a crescer mesmo com emissões menores, amplificando o desequilíbrio no balanço energético planetário. Isto significa que o aquecimento global só será brecado a partir do momento em que esse equilíbrio energético seja restituído, o que só acontecerá quando as emissões forem drasticamente reduzidas a ponto de serem compensadas pelos sumidouros naturais. Reverter esse aquecimento é algo que só se iniciará algum tempo depois da redução das concentrações. As emissões terão de cair a zero num processo consciente e organizado de substituição acelerada da matriz fóssil por renováveis, revolução no sistema alimentar.
IHU On-Line - Recentemente, o senhor escreveu o seguinte: "Comecei a ler o livro do Bill Gates. Francamente, para quem - como eu - debate há anos a questão da justiça climática, de como a crise climática se liga à desigualdade, o início do livro fez com que Gates descesse ainda mais em meu conceito". Como o debate da justiça climática tem sido feito no âmbito internacional, na sua avaliação, e por que a abordagem de Bill Gates não lhe agradou?
Alexandre Costa - Bill Gates supostamente reconhece a gravidade e urgência da questão. De maneira didática (às vezes até quase simplista) expõe ao leitor a percepção de quão necessário é agir imediatamente para deter as alterações no clima e como, especialmente com a inação reinante até aqui, os impactos serão extremamente violentos sobre a humanidade.
Mas há um problema sério, primeiro no conteúdo do próprio livro. Gates trabalha com a ideia de manter os padrões de vida e de consumo predominantes no centro do capitalismo, no máximo integrando as populações da periferia nesse mesmo modo de vida. A lógica que ele aplica é que haverá um aumento da demanda energética diretamente relacionado à ampliação do consumo. Não há um questionamento sobre o hiperconsumo das parcelas privilegiadas da sociedade nos dias de hoje, que responde pela maior parcela das emissões de gases de efeito estufa. Gates se pretende alinhado à ciência, mas é solenemente ignorada qualquer possibilidade de redução da demanda energética, quando inúmeros estudos mostram que é perfeitamente factível assegurar dignidade para oito ou nove bilhões de pessoas com bem menos uso de energia, se enfrentarmos a lógica da descartabilidade, da obsolescência programada e de incentivo ao consumo perdulário.
Mais do que isso, a coerência não é o forte do “bilionário bonzinho”. Por exemplo, suas empresas financiaram, generosamente, candidaturas do Partido Republicano nas eleições dos EUA, quando se sabe que, sem a maioria nas duas casas, as ações do Governo Biden seriam ainda mais limitadas. Gates é entusiasta das fontes renováveis de energia, mas ao mesmo tempo deposita suas fichas em tecnologias de captura artificial de carbono que, na escala necessária, não existem e provavelmente nunca existirão. Por outro lado, fórmulas absolutamente realistas de saída da crise climática com preceitos de justiça e equidade não são consideradas e mesmo o Green New Deal é desdenhado por Bill Gates como um “conto de fadas”. A sua visão de agricultura, materializada em projetos da Bill & Melinda Gates Foundation, é a de agricultura intensiva. E ao fim e ao cabo, “se nada der certo” (como inevitavelmente não dará se soluções para muito além de sua receita simplória não forem adotadas), Bill Gates aposta na tragédia da geoengenharia, que já foi objeto da devida crítica em nosso blog e canal.
Obviamente, com essa lógica subjacente, Gates termina omitindo um aspecto fundamental do debate climático que é o aspecto político. Temos a necessidade de mudanças sistêmicas que tratem simultaneamente da crise climática e do conjunto das questões ambientais ao mesmo tempo que resolvam a questão da desigualdade socioeconômica e das opressões.
IHU On-Line - Por que é importante tratar a crise climática associada à desigualdade? Qual é a particularidade dessa abordagem e dessa relação?
Alexandre Costa - Em outras espécies, o impacto no ambiente tem uma relação direta com a população, mas no nosso caso, essa relação direta se perde. O impacto, na verdade, está relacionado ao consumo, e este é radicalmente desigual entre nós. Nosso organismo demanda cerca de 2.000 kcal diariamente, que tiramos dos alimentos. Mas um habitante médio dos EUA, por conta do consumo e estilo de vida, utiliza diariamente 200.000 kcal, ou cem vezes mais.
Como bem coloca a Oxfam, o 1% mais rico emitiu, nas últimas duas décadas, mais que o dobro dos 50% mais pobres. Uma pessoa entre os 10% mais abastados dos EUA emite 500 vezes mais CO2 equivalente por ano do que um habitante de Malawi ou da República Centro-Africana ou de Ruanda. Somente 100 companhias respondem por 71% das emissões globais. Direta ou indiretamente, a acumulação de riqueza no sistema econômico vigente esteve profundamente ancorada no uso intensivo de combustíveis fósseis como fonte de energia e na ocupação predatória dos ambientes silvestres e dos territórios de povos originários e comunidades tradicionais.
Trazer essa questão à tona é fundamental por vários aspectos, mas vou focar apenas em um. Sabendo que temos um planeta limitado, sabendo que reduzir a demanda de energia torna muito mais fácil a tarefa de substituir as fontes fósseis de energia por renováveis, é preciso dizer sem titubear que o modo de vida da parcela mais rica da população é incompatível com uma solução efetiva e justa da crise ecológica.
Graças ao incessante crescimento da demanda energética, o crescimento acelerado da capacidade instalada em energias renováveis nas duas últimas décadas não apenas não foi suficiente para deter o aumento das emissões como chegamos a ver um aumento da intensidade de carbono na geração de energia! Ou seja, é preciso atacar a questão da hiperprodução e do hiperconsumo – e aí entra a questão do estilo de vida dos segmentos mais abastados. Além disso, a consequente demanda energética induzida, solar e eólica, não apenas irá provocar uma corrida à ocupação de territórios e mineração para sua fabricação e de acumuladores/baterias como sequer será capaz de substituir as termelétricas fósseis e o petróleo. Apenas complementará o suprimento de energia.
IHU On-Line - Desde a eleição do presidente Biden e do retorno dos EUA ao acordo de Paris, aumentou a expectativa em relação à contribuição e liderança dos EUA no esforço de enfrentar as mudanças climáticas. O governo Biden poderá representar uma virada na agenda climática e ambiental internacional? Por quê?
Alexandre Costa - Certamente o cenário atual, após a saída de Trump, a posse de Biden e o retorno dos EUA ao Acordo de Paris melhora significativamente o cenário. A própria convocação da Cúpula do Clima dos dias 22 e 23 de abril deu o tom da nova administração, em que Biden tenta colocar seu país como protagonista do enfrentamento da emergência climática. Isso é relevante para os EUA, inclusive para recuperação de sua imagem na esfera internacional e de exercício de “softpower” na dimensão da geopolítica e obviamente é relevante para o mundo, pois ter o maior emissor histórico e segundo maior emissor do presente desloca, e muito, o centro de massa da política climática.
Na cúpula, Biden afirmou que os EUA terão uma “administração que fará mais do que qualquer uma das anteriores”, mas isso deveria no mínimo ter sido anunciado de forma mais humilde e menos altissonante. Afinal, as administrações anteriores quando não sabotaram os acordos climáticos, como George W. Bush (Kyoto) e Trump (Paris), ficaram a dever, como no próprio período Obama-Biden, cujas ações, como mostramos na época, foram nitidamente insuficientes.
Joe Biden na Cúpula do Clima 2021. (Foto: The White House)
Portanto, é preciso estar consciente de que há limites, contradições e disputas. Primeiro, lembremos que dentro do Partido Democrata, Biden era, entre as principais pré-candidaturas, aquela que tinha o programa mais limitado para o clima, inclusive com a recusa ao banimento do fracking, e que outros nomes, como Bernie Sanders e Elizabeth Warren, propunham programas muito mais ambiciosos. Além disso, as pressões dos lobbies são e serão imensas e a poderosa indústria fóssil dos EUA não aceitará facilmente medidas que venham a encolher seus lucros.
Felizmente, a plataforma de campanha (e agora de governo) de Joe Biden deslocou-se para posições mais avançadas, graças não apenas aos rearranjos internos ao partido, mas também à pressão do movimento climático, especialmente por parte da juventude. Minha aposta para avançar mais está justamente numa crescente mobilização e conscientização, articulando as reivindicações de resposta à crise climática a outras pautas, como das comunidades periféricas, negritude, imigrantes etc.
Em suma, eu não diria que a derrota de Trump e a chegada de Biden representam uma virada, mas uma abertura de oportunidades para avançar na pauta climática a partir das mobilizações e da pressão da sociedade organizada.
IHU On-Line - A imprensa internacional especula que a agenda ambiental americana corre o risco de fracassar porque os países membros da Cúpula do Clima não sinalizaram para a adesão de metas mais ambiciosas para o enfrentamento das mudanças climáticas. Uma das preocupações dos países é em relação às metas chinesas. O país pretende atingir o pico de emissões em 2030 e propõe como meta atingir a neutralidade de carbono em 2060. Quais os efeitos dessa meta? Por que, na sua avaliação, algumas metas apresentadas pelos países são insuficientes, incluindo a dos EUA, que propõem reduzir em 50% as emissões de carbono até o final desta década?
Alexandre Costa - Para contextualizarmos nossa resposta, é importante lembrar que, além do deslocamento dos EUA, três fatores serviram de condição de contorno para reposicionamento ou avanço de algumas metas climáticas:
Primeiro, o “efeito Ciência”. A ciência do clima, após a COP21, em Paris, avançou no sentido de avaliação de impactos e riscos. Em 2018, lançou um relatório especial que mostrava nitidamente como eles cresceriam rapidamente acima de 1,5°C de aquecimento em relação às temperaturas pré-industriais. Aquilo que no Acordo de Paris é citado como um limite “preferencial” mostrou-se, de fato, um imperativo.
Segundo, o “efeito Greta”. A mobilização de jovens, não apenas nos países desenvolvidos, mas também junto ao que vem sendo chamado de MAPA (Most Affected People & Areas) cresceu enormemente. Apesar de contido pelas restrições impostas pela pandemia, não podemos esquecer que esse movimento chegou a colocar mais de quatro milhões de pessoas nas ruas do mundo na histórica Greve Global pelo Clima em setembro de 2019. Lideranças como a própria Greta Thunberg e Vanessa Nakate, de Uganda, têm cumprido um papel fundamental desde então, mesmo sem as mobilizações de massa, através das redes. A esse movimento, somam-se também iniciativas de povos originários, em defesa dos biomas e do clima, com destaque para as ações dos povos indígenas das Américas, incluindo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - Apib e demais entidades no país.
Por último, mas não menos importante, o “efeito Gaia”. A própria realidade de eventos extremos, degelo do Ártico, tem desnudado de maneira eloquente o tamanho do problema com um aquecimento de “apenas” 1,2°C. Incêndios na Antártica, perdas de mais de 70% no gelo marinho do Ártico no verão, taxas de degelo recorde nos mantos da Groenlândia e Antártica, furacões, tufões e ciclones devastadores, como Irma, Maria, Idai... A defesa de posições abertamente negacionistas é cada vez mais dificultada diante desses fatos.
Mas, infelizmente, mesmo com estas pressões, os governos não estão alinhados com a meta de 1,5°C. Segundo o próprio Antonio Gutierrez, somente 18-24% dos investimentos de recuperação econômica pós-pandemia são de baixo carbono.
A China, responsável por 28% das emissões anuais de combustíveis fósseis e cimento, falou de atingir o pico de emissões antes de 2030. No mínimo, precisaria estacionar suas emissões imediatamente. O país aventa banir o carvão, o que seria impensável há poucos anos, no entanto, sem uma data precisa para tal e principalmente sem reduzir a demanda energética daquele país, fortemente pressionada pela demanda de produção de bens de consumo para o mundo todo (especialmente os países desenvolvidos), a tarefa é mais difícil e abre-se a porta para trocar seis por meia dúzia, substituindo o carvão pelo gás fóssil para alimentar termelétricas. Por fim, vale dizer que o discurso de apelo ecológico feito por Xi Jinping é francamente contraditório com a agressiva política de expansão dos negócios chineses em petróleo e mineração.
Mas o problema está longe de se resumir à China. Ainda nos Brics, Putin, por sua vez, abusou do cinismo ao mencionar uma suposta queda nas emissões de seu país e tecer elogios à energia nuclear, afirmando que a Rússia estava no caminho certo. Fato: embora as emissões de CO2 atuais estejam abaixo dos níveis de 1990, o que teve bem mais a ver com crise econômica do que com “reestruturação da indústria”, de 1998 a 2019 elas cresceram em nada menos que 15%. A menção à capacidade de sequestro de carbono pelos biomas russos chega a ser tragicômica ante o aumento de incidência de incêndios florestais na Sibéria, o derretimento do permafrost e o declínio acelerado da cobertura de gelo marinho no Ártico siberiano.
Dos grandes países e blocos emissores, a União Europeia era quem vinha mantendo uma postura mais coerente com os diagnósticos feitos pela ciência sobre a necessária redução das emissões, então a meta de redução das emissões em 55% até 2030 e de “neutralidade em carbono” até 2050 não é nenhuma novidade espetacular. É o mais próximo que temos, entre os grandes emissores, de algo parecido com o que se precisa fazer. Ainda assim, por conta do enorme atraso histórico global, a meta europeia deveria e poderia ser mais forte, especialmente ao lembrarmos que as emissões induzidas em outros países pelo elevado e insustentável padrão de consumo europeu seguem existindo e aumentando.
Separado politicamente da UE, o Reino Unido fez questão de anunciar a “ousadia” do seu plano, em reduzir as emissões em 68% até 2030, relativamente a 1990. De novo, a aparência de um gigantesco esforço não resiste a uma análise dos dados de realidade, afinal de 1990 a 2020 as emissões britânicas já tinham caído 48,8%. Com setores industriais poluentes e intensivos em carbono tendo se deslocado para China e outros países nas últimas décadas, o peso do continente europeu sobre as emissões de hoje chega a parecer relativamente pequeno, mas só se fingirmos não ver as emissões históricas de um lado, e, do outro, as emissões de consumo, contabilizadas nos países em que os bens foram produzidos. Europa e Reino Unido podem, devem e têm obrigação histórica, moral e poderio tecnológico e econômico de fazer bem mais e mais rápido.
Mesmo Biden e os EUA, com uma administração que afirma a disposição de deixar para trás a era das trevas do negacionismo climático de Trump, ainda estão distantes do que é necessário fazer para enfrentar a emergência climática. Apesar da enorme discrepância entre o que se tem hoje e o desastre dos últimos quatro anos, uma meta de redução de emissões em 50 a 52% para os EUA não está alinhada com o que é necessário para limitar o aquecimento global a 1,5°C. Esse é o tipo de porcentagem que é preciso aplicar globalmente, então é evidente que o maior emissor histórico precisa oferecer mais. O corte anunciado pelo vizinho Canadá, através de seu primeiro-ministro Justin Trudeau, de 40-45%, também fica aquém do necessário.
Por fim, as emissões internacionais permanecem como “terra de ninguém”. Aviação e navegação seguem produzindo dióxido de carbono, mas nenhum país assume para si as responsabilidades. Ora, a atmosfera desconhece nossas idiossincrasias. O CO2 nela se acumula e nela altera o balanço energético planetário, quer contabilizemos as emissões ou não.
A conclusão a que chegamos é que apesar de haver propostas de avanços reais, prevaleceu muito do jogo de cena já conhecido de quem acompanhou as COPs. A atmosfera responde à presença de gases de efeito estufa, à maior absorção de radiação infravermelha; não a palavras, discursos e intenções. Muitas das metas propostas soam como “ambiciosas”, mas só o seriam se tivessem sido apresentadas em Copenhague, na COP15, há mais de uma década ou, no máximo, em Paris, na COP21. Após anos de protelação, embromação e negacionismo – aberto ou velado –, nem mesmo o cumprimento pleno dessas novas promessas nos coloca no caminho para 1,5°C. Melhor que nada? Sim. Suficiente? Nem perto.
IHU On-Line - E o Brasil? Como avalia a preocupação de Biden com o desmatamento da Amazônia, a reação do governo brasileiro e o diálogo que o embaixador dos EUA, Todd Chapman, tem feito com o governo brasileiro e lideranças indígenas sobre a Amazônia e a mudança climática?
Alexandre Costa - Eu propositalmente omiti o Brasil na resposta anterior, por se tratar de um caso à parte. Já no seu início, o governo brasileiro chegou a flertar com o negacionismo escancarado de Donald Trump, com o ministro Ricardo Salles tendo se referido à crise climática como uma “questão acadêmica para daqui a 500 anos” e Bolsonaro tendo acenado até com um eventual rompimento com o Acordo de Paris. Ernesto Araújo, o sujeito do “termostato do asfalto”, enquanto compôs o governo, fez questão de afirmar sua ideologia anticientífica delirante, ao criticar o que ele chama de “climatismo”. Nesse contexto, várias mentiras foram sistematicamente utilizadas para construir uma narrativa antiambiental para avançar uma agenda que o próprio Ricardo Salles resumiu como “passar a boiada”. Ataques ininterruptos aos órgãos de monitoramento e fiscalização, incluindo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - Inpe, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - Ibama e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio, aos povos indígenas, a ONGs e personalidades ligadas ao meio ambiente e aos direitos humanos se acumularam, como toras de madeira do desmatamento ilegal.
Do ponto de vista climático, o país segue com a economia em frangalhos, mas com as emissões de CO2 subindo acompanhando a escalada do desmatamento. Ao mesmo tempo, secas se abatem sobre o país, comprometendo a geração de hidroeletricidade, associadas à combinação do aquecimento global e perda de florestas que afetam os chamados “rios voadores”. Extremos de chuva, como a calamidade em Manaus, se multiplicam e ondas de calor e incêndios florestais vão se tornando cada vez mais recorrentes.
Sem falar dos nossos outros biomas, só a Amazônia tem um estoque de carbono tão grande no solo e vegetação que se esse carbono chegasse à atmosfera na forma de CO2, teríamos o equivalente a dez anos de emissões de todos os países juntos. É uma verdadeira “bomba de carbono”, quando temos um climacida na presidência pronto para acioná-la. Por isso mesmo, especialmente após a saída de Trump da Casa Branca, Bolsonaro e Salles se converteram nos maiores vilões climáticos do planeta.
O que é terrível é que mesmo que haja barreiras comerciais, denúncias internacionais etc., não vejo chances de domar o ímpeto devastador de Bolsonaro, cujas alianças são muito bem definidas: é com o que há de mais sanguinário no agro, com grileiros e madeireiras, com garimpo e mineração contra povos indígenas, comunidades ribeirinhas e quilombolas, contra a floresta, contra a vida silvestre.
Mesmo assim, é fundamental que qualquer governo do mundo com um mínimo compromisso sério com a questão climática leve isso em conta em suas políticas internacionais. Que reforcem a fiscalização de suas importações quanto à certificação de origem de produtos agropecuários, florestais, minerais etc., procedentes do Brasil. E que mantenham canais de diálogo e interlocução com movimentos sociais e ambientais abrindo espaço para estes repercutirem o que se passa em território brasileiro, incluindo os inúmeros ataques a povos originários, como os recentes ataques a comunidades Munduruku e Yanomami. A Apib e demais entidades do movimento indígena têm cumprido um papel fundamental nesse sentido e, evidentemente, é bem-vindo qualquer processo que lhes abra espaço, como as interlocuções com parlamentares dos EUA e com o Sr. Chapman.
IHU On-Line - Há um "tecno-otimismo" ou ceticismo demasiado em relação ao "saldo" e ao significado da reunião? Quais os desdobramentos que o senhor observa após reunião da Cúpula?
Alexandre Costa - Um dos traços da Cúpula foi justamente o tom tecno-otimista, com as esperanças sendo canalizadas para falsas soluções, justamente para evitar que a questão climática seja tratada como a emergência que de fato é.
Mostramos como as metas de redução de emissões estão longe do necessário. O problema é mais grave ainda quando percebemos que não se trata apenas de uma aposta na substituição da matriz fóssil por renováveis, incluindo solar, eólica, hidrogênio etc., e redução do desmatamento. Afinal, sabemos que sem redução da demanda energética global e mudanças profundas no sistema alimentar, incluindo uma redução importante na presença de produtos animais na dieta, não há como sequer nos aproximarmos da meta de 1,5°C. Por discursos como os de Boris Johnson e John Kerry, percebe-se que muito se aposta para se chegar à “neutralidade de carbono” em tecnologias de captura e armazenamento de carbono incapazes de servirem como alternativa em grande escala ou até mesmo coisa pior... Embora não tenha sido mencionada, quando o apelo é por supostas soluções tecnológicas, paira sempre o fantasma da geoengenharia como “cartada final”. Como mostrei em diversos momentos, essa via é extremamente perigosa, para dizer o mínimo.